domingo, 25 de maio de 2025

A Velha Princeton como Matriz Teológica da Formação Pastoral Presbiteriana (séculos XIX e XX)

No imaginário teológico protestante, a chamada “Escola de Princeton” do século XIX é comumente vista como um bastião do Calvinismo confessional clássico, herdeira direta da ortodoxia reformada dos séculos XVI e XVII. Entretanto, Annette G. Aubert propõe uma releitura sofisticada desse legado ao demonstrar que, longe de ser um reduto isolado de resistência ao pensamento moderno, o Princeton Theological Seminary esteve profundamente enredado nas redes intelectuais transatlânticas da erudição teológica europeia, em especial da teologia alemã. Essa constatação permite deslocar o foco da historiografia tradicional — marcada por um excessivo peso no realismo do senso comum escocês — para uma compreensão mais dinâmica, em que o legado de Princeton se revela como uma resposta crítica e seletiva aos desafios epistemológicos, filosóficos e hermenêuticos do século XIX.

Antes dessa virada, a teologia sistemática — especialmente na tradição escolástica reformada pós-Reforma — operava predominantemente por um método dedutivo. Partia-se de axiomas doutrinários (por exemplo, os atributos divinos ou os decretos eternos), e a teologia era então estruturada logicamente a partir dessas premissas. Autores como Francis Turretin (1623–1687) representaram essa tradição que enfatizava a coerência interna do sistema mais do que a exposição analítica da Escritura como base da teologia. O pensamento teológico era assim marcado por categorias abstratas herdadas da metafísica aristotélico-tomista, ainda que ressignificadas no interior do protestantismo confessional.

A Escola de Princeton, especialmente por meio de Charles Hodge (1797–1878), rompe com essa orientação ao propor uma teologia construída indutivamente, isto é, baseada na coleta e análise dos “fatos” das Escrituras — em analogia direta com os métodos das ciências naturais. Hodge, influenciado por Francis Bacon (1561–1626), sustentava que a teologia deveria ser uma ciência empírica, metodicamente construída com base nos dados bíblicos. Isso implicava um deslocamento epistemológico radical: a Revelação deixava de ser contemplada sob a ótica de uma metafísica sistemática e passava a ser examinada sob o prisma das ciências modernas — filologia, crítica textual, historiografia e lógica. Ocorre aqui um fenômeno ambivalente: ao buscar garantir objetividade e racionalidade à teologia, Princeton termina por enredá-la em uma racionalidade instrumental, típica da modernidade, que privilegia a verificabilidade, a coerência lógica e a abstração sistemática.


A influência da teologia de Princeton na formação pastoral brasileira, embora indireta, foi profunda e estruturante, especialmente no contexto presbiteriano. Através das missões norte-americanas do século XIX, cujos obreiros estavam alinhados à ortodoxia confessional da Old Princeton, o pensamento de Charles Hodge, A. A. Hodge e B. B. Warfield chegou ao Brasil como matriz doutrinária para os primeiros seminários presbiterianos. Obras desses autores circularam amplamente — direta ou indiretamente — em programas de formação ministerial, consolidando uma teologia sistemática voltada à defesa da inerrância bíblica, da autoridade das confissões reformadas e da apologética clássica.

Essa recepção, porém, foi seletiva: adotou-se a rigidez doutrinária e o método sistemático, mas perdeu-se a interlocução crítica que Princeton mantinha com a erudição teológica europeia. Em sua transposição para o Brasil, Princeton foi reinterpretada como símbolo de segurança confessional em um cenário de instabilidade cultural e eclesial, o que favoreceu seu uso como marco identitário contra tendências tidas como liberais ou pluralistas. A tradição princetoniana, assim, tornou-se mais uma referência de ortodoxia dogmática do que um modelo de investigação teológica viva e dialógica — processo que contribuiu para tendências ao fechamento hermenêutico ainda perceptíveis em certos setores do protestantismo brasileiro.

Contudo, como já alertava Karen Armstrong, a modernidade produziu não apenas sujeitos emancipados, mas também ansiedades, angústias e reações religiosas radicais. Ao analisar o surgimento do fundamentalismo no protestantismo americano — o mesmo contexto histórico de Princeton — Armstrong mostra que esse movimento é uma resposta simbiótica à crise de significado provocada pela secularização. O fundamentalismo protestante, longe de ser arcaico, é profundamente moderno em sua forma: adota métodos racionais, científicos e organizacionais para tentar defender conteúdos religiosos ameaçados. Nesse sentido, o modelo hodgiano — com toda sua pretensão de objetividade científica aplicada à Escritura — pode ser compreendido, retroativamente, como um elo entre o conservadorismo teológico e o fundamentalismo moderno.

Se Armstrong estiver certa ao afirmar que o fundamentalismo é uma tentativa de transformar mythos em logos, então Princeton representa uma transição delicada. Ao tratar a Bíblia como “fonte de fatos, Hodge realiza uma operação que, embora metodologicamente sofisticada, colabora com a racionalização excessiva do texto sagrado — esvaziando sua dimensão simbólica, ritual e espiritual, que sempre dependeram da linguagem do mythos. Como Armstrong argumenta, a separação entre mythos e logos — típica do mundo pré-moderno — foi obliterada no século XIX. A teologia princetoniana parece ilustrar essa confusão: ela reafirma a ortodoxia reformada, mas faz isso em linguagem moderna, científica e juridicamente controlada, antecipando formas de literalismo bíblico que mais tarde seriam mobilizadas por movimentos abertamente fundamentalistas.

Esse é o ponto nevrálgico da crítica. Ao transformar o texto bíblico em depósito de proposições objetivas, o modelo de Princeton contribui, ainda que de forma não intencional, para o ambiente interpretativo em que a leitura literalista das Escrituras se desenvolve como manual científico, característica típica dos criacionistas e defensores do “design inteligente. Isso ajuda a entender por que a recepção brasileira dessa tradição — especialmente em contextos confessionais influenciados por seminários reformados de orientação conservadora — assume características que se aproximam do fundamentalismo moderno, conforme descrito por Armstrong: a teologia princetoniana, em sua tentativa de responder à modernidade sem abrir mão da ortodoxia, termina por acolher o espírito moderno sem o seu pluralismo, e a racionalidade científica sem o seu ceticismo epistemológico.

É preciso considerar, aqui, as categorias weberianas de desencantamento e racionalização, que iluminam o processo pelo qual o universo simbólico da fé reformada se reconfigura sob as exigências da razão instrumental. Ao perder sua ancoragem litúrgico-mítica e ser transformada em sistema lógico-dedutivo ou empírico-indutivo, a teologia reformada moderna corre o risco de se tornar uma ortodoxia tautológica, voltada à reprodução de si mesma. Ao invés de operar como hermenêutica da existência, a teologia torna-se mecanismo de legitimação de doutrinas, num esforço constante de normatividade e controle. Benjamin B. Warfield (1851–1921), herdeiro direto de Hodge, levará essa lógica ao extremo com sua doutrina da inerrância verbal, reforçando o fechamento do texto sagrado ao mistério e ao símbolo, e abrindo caminho para o esvaziamento da experiência de fé como encontro com o Outro radical.

Assim, o que em Hodge e Warfield era tentativa legítima de defesa confessional, no contexto brasileiro converte-se frequentemente em mecanismo de delimitação doutrinária mais rígida, resistência à crítica teológica e fetichização da ortodoxia. O mito bíblico — enquanto narrativa que orienta a vida, estrutura o culto e sustenta o imaginário simbólico da fé — é dissolvido na lógica da precisão exegética e do controle dogmático. O cristianismo, ao perder seu substrato simbólico e experiencial, torna-se um sistema racional fechado, pronto para ser defendido — ou promovido — dentro da lógica de uma guerra cultural. Tal racionalização da fé parece caracterizar certas expressões contemporâneas do neocalvinismo, cuja recepção no Brasil, sobretudo a partir do século XXI, consolidou um ethos combativo, apologético e doutrinariamente blindado. Aqui, já nos movemos no terreno da recepção brasileira do neocalvinismo holandês, reinterpretado em chave reativa e identitária. Essa, segundo Armstrong, é a tragédia do fundamentalismo: ele é uma modernização fracassada da fé.

Ao destacar os vínculos de Princeton com a erudição europeia, Aubert nos convida a pensar a tradição calvinista não como um bloco monolítico, mas como um espaço de negociações teóricas, disputas hermenêuticas e redes transnacionais. Mas essa promessa só se realiza quando Princeton é lida não como cânone, e sim como momento histórico, com suas possibilidades e suas limitações. No Brasil, talvez o desafio esteja em recuperar essa tensão criativa — entre fé e crítica, entre herança e diálogo — sem repetir os engessamentos de uma ortodoxia que, ao tentar proteger a Escritura, termina por reduzi-la.

A recepção brasileira da teologia de Princeton revela não apenas uma apropriação parcial, mas frequentemente acrítica, dos seus pressupostos epistemológicos e dogmáticos. Ao ser importada como modelo de ortodoxia inconteste, a teologia princetoniana tem sido usada como referência estratégica de legitimação identitária em contextos eclesiásticos marcados por polarizações ideológicas e culturais. Em vez de operar como ponto de partida para o diálogo entre fé reformada e os desafios do mundo contemporâneo — pluralista, desigual e em transformação — ela se torna instrumento de reprodução de uma teologia apologética pouco disposta ao dissenso e pouco sensível às mediações culturais. Ao cristalizar-se como sistema, ela deixa de ser tradição viva e passa a funcionar como símbolo de segurança doutrinária em tempos de incerteza, mas à custa do esvaziamento hermenêutico e da complexidade da experiência de fé. Para evitar esse destino, é necessário recuperar uma epistemologia teológica aberta ao simbólico, ao mítico e ao provisório, reconhecendo que toda linguagem teológica é situada, hermenêutica e historicamente condicionada — jamais absoluta ou impermeável à crítica.

Referências
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
AUBERT, Annette G. Old Princeton and European Scholarship. In: GORDON, Bruce; TRUEMAN, Carl R. (org.). The Oxford Handbook of Calvin and Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 2021. p. 251–270.
CASIMIRO, A. D. O discurso presbiteriano: a teologia de Princeton e sua influência na formação dos pastores nordestinos. Revista Ciências da Religião - História e Sociedade, [S. l.], v. 1, n. 1, 2010. Disponível em: https://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/2356. Acesso em: 25 maio. 2025.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Entre a Palavra e o Rito:

 A beleza da forma no pensamento de Calvino

O protestantismo evangélico brasileiro desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma espiritualidade marcada pela resistência às formas litúrgicas, pela negligência dos sacramentos e pela valorização quase absoluta da subjetividade individual. Com frequência, tais tendências são apresentadas como herança legítima da Reforma. No entanto, uma leitura cuidadosa das Institutas da Religião Cristã revela que, para João Calvino, culto público, oração comum e celebrações sacramentais não são acessórios da fé, mas meios ordinários pelos quais o Espírito Santo comunica a graça de Cristo à sua Igreja. Formas, para Calvino, não são meras estruturas externas, mas veículos espirituais da presença viva de Deus no meio do seu povo.

No Livro IV das Institutas, Calvino descreve o culto dominical como o momento em que Deus “nos nutre ainda em nossa peregrinação terrestre”, reunindo-nos em torno da Palavra e dos sacramentos (Inst. IV.1.1). O culto, nesse horizonte, é um ato eclesial no sentido mais profundo: um encontro do povo com seu Senhor, mediado pelo ministério da Palavra, pela oração da comunidade e pela celebração dos sinais visíveis da graça. Reunir-se para adorar, ouvir, orar e comungar é responder ao chamado de Deus que forma seu povo, não apenas como indivíduos regenerados, mas como corpo vivo, unido em Cristo.

A oração do Senhor ocupa um lugar especial no Livro III, capítulo XX, em que Calvino apresenta o Pai Nosso como “regra e modelo perfeito” da oração cristã (Inst. III.20.34). Longe de vê-lo como uma repetição mecânica, ele o considera a expressão ordenada dos desejos que convêm aos filhos de Deus. Nele, aprendemos a subordinar nossas vontades ao Reino, a desejar o pão necessário, a viver do perdão e da confiança. Abandonar tal oração em nome de uma espontaneidade desregulada não é, para Calvino, sinal de maturidade espiritual, mas sintoma de desorientação teológica. A oração ensinada por Cristo à sua Igreja é forma viva que nos educa no caminho da fé.

A centralidade da forma em Calvino se evidencia também na recepção do Credo dos Apóstolos (Inst. II.16.18) , tratado com rigor teológico e reverência pedagógica no Livro II, capítulo XVI das Institutas. Longe de funcionar como adereço litúrgico, o símbolo da fé é, para ele, uma matriz expositiva da doutrina cristã: um “sumário autorizado da fé apostólica”, desde que submetido ao juízo da Escritura. O Credo forma a Igreja pela confissão comum — linguagem partilhada que antecede a subjetividade e sustenta a unidade. Ao professar “creio na santa Igreja católica”, Calvino interpreta “católica” como a comunhão espiritual de todos os fiéis reunidos sob a Palavra, e não como jurisdição institucional. Sua adesão ao símbolo demonstra que a forma verbal herdada — como a oração, os sacramentos e o culto — é também espaço de formação eclesial e mediação fiel da verdade evangélica.

Essa mesma reverência às formas se expressa na doutrina dos sacramentos. Nos capítulos XIV a XVII do Livro IV, Calvino trata com profundidade o Batismo e a Ceia do Senhor, os únicos sacramentos instituídos por Cristo. Ele os define como “sinais visíveis de uma graça invisível” (Inst. IV.14.1), eficazes não por si mesmos, mas pela Palavra a eles unida e pela fé que os recebe. O Batismo infantil, em especial, manifesta a natureza da aliança: a graça antecede a resposta, e Deus se compromete com o crente e com sua descendência. “As crianças são batizadas porque pertencem à aliança, e a promessa lhes é tão válida quanto aos adultos” (Inst. IV.16.6–7). O batismo, assim compreendido, é expressão da catolicidade da fé: um ato que insere na história da salvação aqueles que ainda não têm palavra, mas pertencem ao povo de Deus.

Essa compreensão do culto como estrutura pedagógica e espiritual da Igreja não é um detalhe periférico no pensamento de Calvino, mas sua espinha dorsal eclesiológica. A Igreja não subsiste sem a pregação fiel da Palavra nem sem a administração regular dos sacramentos (Inst. IV.1.9–10). Por isso, a tendência contemporânea de reduzir o culto à performance, a oração à improvisação e os sacramentos a meras cerimônias ocasionais representa não um retorno às fontes da fé, mas um distanciamento de sua forma mais bíblica e reformada.


A realidade que hoje se impõe em muitos contextos evangélicos é a de um culto dissolvido em emoção, uma fé privada de corpo, uma Igreja sem forma. O que se perdeu não foi apenas uma estética da adoração, mas a própria capacidade do culto de formar, orientar e sustentar a vida cristã. Calvino via na liturgia — mesmo em sua simplicidade reformada — uma estrutura espiritual ordenadora, que ao mesmo tempo limita os excessos da subjetividade e revela a beleza do Deus que se dá na Palavra e no sinal. Reduzir o culto à espontaneidade é esquecer que a verdadeira liberdade do Espírito se manifesta, muitas vezes, na obediência a formas que nos antecedem e nos conformam à imagem de Cristo.

Resgatar essa visão do culto não é saudosismo, mas exercício de fidelidade teológica. O culto dominical, com suas leituras, suas orações herdadas, sua administração dos sacramentos e sua escuta coletiva, é o coração visível da fé cristã. Nele, a Igreja não apenas recorda, mas participa do mistério pascal; não apenas fala, mas é falada; não apenas crê, mas é formada na fé.

Hoje já não frequento as igrejas reformadas, tendo me afastado por razões teológicas e existenciais que foram se acumulando ao longo dos anos. Ainda assim, confesso: a forma do culto — sua sobriedade reverente, sua fidelidade à Escritura, sua beleza austera — sempre me cativou. Havia nela algo da catolicidade da fé cristã: não como pertença institucional, mas como continuidade viva com a Igreja de todos os tempos, que ora, batiza, parte o pão e espera o Reino. Lamento que tal herança, outrora guardada com zelo, tenha se degenerado em tantos contextos evangélicos. A forma sobrevive hoje, com nobreza e solenidade, na liturgia romana e em pequenos guetos ecumênicos — fragmentos de uma memória viva que a espiritualidade contemporânea parece ter esquecido. E com ela, esquecemos também que a fé se faz corpo, que o corpo precisa de forma, e que a forma, quando nascida da Palavra, é expressão da verdade que salva e sustenta.

Esta breve reflexão, ao recuperar a centralidade do culto, da forma e dos meios visíveis de graça no pensamento de Calvino, se constitui como um contraponto deliberado a outra reflexão que escrevi, nascida da experiência de desenraizamento e da crise com a identidade evangélica contemporânea. Ali, movido por Kierkegaard e Barth, afirmei que a fé se manifesta, muitas vezes, como escândalo contra a própria religião; que Deus irrompe como juízo — sobretudo contra as formas que o pretendem conter. Afirmei, com convicção, que o Evangelho clama “fora dos portões”, onde o Cristo crucificado desautoriza os poderes da religião cooptada. A saída da instituição, nesse horizonte, não é desobediência, mas possibilidade escatológica: uma recusa a tudo que se apresenta como sagrado e absoluto sem acolher o escândalo da graça.

Contudo, este texto se volta à dimensão construtiva da forma, não como dominação ou estética vazia, mas como hospitalidade da fé no tempo. Se, naquele escrito, o culto era suspenso como gesto de ruptura, aqui ele ressurge como forma fraterna e ordenadora da esperança. Entre a denúncia profética e a permanência litúrgica, não há contradição: há tensão. A mesma fé que se refugia fora das formas pode, em outros momentos, precisar ser sustentada por elas. O culto de Calvino, com sua sobriedade e fidelidade à Palavra, é expressão dessa tensão reconciliada. Forma que não pretende conter Deus, mas acolher sua vinda. Palavra que não substitui o Espírito, mas o aguarda. Sacramento que não é mágica, mas memória viva do dom. E se hoje tais expressões sobrevivem, com beleza e profundidade, sobretudo na liturgia romana e em pequenos círculos ecumênicos, é talvez porque, fora delas, a fé, ao se livrar das formas, também corre o risco de perder sua carne. Esta reflexão, assim, não contradiz a anterior, mas a prolonga: onde antes houve rasura, aqui se recupera o traço — ainda que tremido — de uma forma capaz de sustentar a fé como espera, como escuta e como comunhão.

Entre Genebra e Westminster

A recepção brasileira do calvinismo e seus paradoxos históricos

A teologia de João Calvino (1509–1564) não surgiu como um sistema acabado, nem como base para uma ortodoxia confessional rígida. Pelo contrário, emergiu em meio a um contexto plural e tenso: a Reforma Suíça, na qual figuras como Ulrico Zwinglio (1484–1531), Heinrich Bullinger (1504–1575), Pedro Mártir Vermigli (1499–1562) e Wolfgang Musculus (1497–1563) também desempenharam papéis fundamentais. Junto com Calvino, esses teólogos se dedicaram à tarefa de repensar a fé cristã a partir das Escrituras, em oposição aos excessos da tradição medieval. Genebra não era o único centro, mas sim parte de uma rede descentralizada em que diferentes enfoques coexistiam: exegese bíblica, formação pastoral, organização eclesiástica e espiritualidade comunitária. A singularidade de Calvino não reside em uma pretensa autoridade normativa, mas em sua habilidade para integrar doutrina e prática numa abordagem hermenêutica aberta, distinta do rigor de um sistema fechado.

Contudo, ao longo dos séculos XVI e XVII, o pensamento reformado passou por um processo de confessionalização. Frente aos desafios representados por católicos, luteranos e arminianos, a tradição reformada viu surgir documentos normativos que sistematizaram sua doutrina, como os Cânones de Dordrecht (1619) e a Confissão de Fé de Westminster (1646). Conforme analisa Richard A. Muller, esse movimento provocou uma mudança metodológica significativa: da exposição pastoral e bíblica para uma estruturação escolástica e logicamente rigorosa. Nesse contexto, Calvino foi elevado a uma posição simbólica; sua obra não foi necessariamente seguida com fidelidade estrita, mas utilizada como referência autoritativa. O chamado “calvinismo” é, portanto, uma construção posterior, marcada por escolhas seletivas e reelaborações teológicas. O próprio termo teve origem controversa, inicialmente pejorativa, e apenas posteriormente tornou-se uma identidade adotada, embora sempre contestada.

Nesse cenário, a Confissão de Fé de Westminster emerge como um documento emblemático. Produzida durante a guerra civil inglesa, sob forte influência do presbiterianismo escocês e do puritanismo, a CFW responde a necessidades institucionais e políticas específicas. Sua estrutura sistemática, rigor lógico e ênfase na teologia do pacto revelam preocupações distintas das de Calvino. Embora compartilhem certos elementos doutrinários, os objetivos são diferentes: Calvino escreveu com o propósito de formar consciências e promover a piedade pessoal e comunitária; Westminster, por outro lado, buscou estabelecer fronteiras confessionais precisas, regulando o culto, o ministério e a vida cívica sob uma matriz teológica rigorosa.



Essa situação se torna ainda mais complexa ao considerar que a própria tradição anglo-saxônica, herdeira direta da CFW, também passou por revisões significativas ao longo do tempo. No evangelicalismo dos séculos XVIII e XIX, figuras como Jonathan Edwards (1703–1758), Andrew Fuller (1754–1815) e Thomas Chalmers (1780–1847) empreenderam releituras críticas do calvinismo clássico. Esses autores suavizaram aspectos da doutrina da predestinação, enfatizaram o livre-arbítrio compatibilista, e centralizaram a experiência religiosa na conversão individual e na devoção afetiva, incorporando influências pietistas e racionalistas. Conforme analisado por David W. Bebbington, tais adaptações demonstram que a Confissão de Westminster foi frequentemente reinterpretada ou mesmo relativizada por seus herdeiros teológicos. Assim, o calvinismo britânico moderno, em vez de manter uma adesão estrita à teologia da CFW, tornou-se um espaço de experimentações pastorais e doutrinárias adaptadas às circunstâncias históricas específicas.

Este contexto lança luz sobre um paradoxo notável: enquanto na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a tradição reformada foi sendo revisada e adaptada às transformações culturais, filosóficas e missionárias, no Brasil — sobretudo em círculos conservadores — a CFW adquiriu status de norma absoluta. Essa recepção brasileira explica-se, em parte, pela herança missionária norte-americana, que no século XIX trouxe ao país não o Calvino histórico, mas uma versão já institucionalizada do calvinismo confessional. A Confissão de Westminster foi introduzida no Brasil como ferramenta pedagógica e doutrinária, rapidamente naturalizada como símbolo máximo da ortodoxia e pureza reformada, tornando-se uma identidade estável diante das diversas expressões religiosas locais.

Contudo, essa recepção brasileira constitui uma construção teológica de segunda ordem: trata como absoluta uma confissão produzida em um contexto britânico específico do século XVII, que já se distanciava das ênfases originais de Calvino e que, em suas próprias regiões de origem, foi continuamente revista e flexibilizada. Tal paradoxo — a absolutização periférica de uma tradição já relativizada em sua origem — apresenta-se como um fértil campo de investigação para a historiografia da teologia, convidando-nos a refletir sobre por que e como certos documentos teológicos ganham centralidade simbólica fora de seus contextos originais, e quais são as implicações hermenêuticas e eclesiais desse fenômeno.

Reconstruir criticamente o percurso da tradição reformada não implica desvalorizar a Confissão de Westminster, mas sim questionar sua sacralização acrítica. Trata-se de reconhecer que o legado reformado não é estático, mas dinâmico; suas fontes devem ser compreendidas em sua historicidade e pluralidade interna. Calvino não deve ser considerado como o fundador de um sistema rígido, mas como proponente de uma abordagem teológica situada, plural e aberta ao mistério e à constante renovação do pensamento. Recuperar essa dimensão original da Reforma significa reafirmá-la como movimento dinâmico e crítico, restabelecendo à teologia reformada sua vocação interpretativa, pastoral e dialogal.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.
CAMPI, Emidio. Calvin, the Swiss Reformed Churches, and the European Reformation. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 119–143.
BEBBINGTON, David W. Calvin and British Evangelicalism in the Nineteenth and Twentieth Centuries. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 282–305.
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Calvino, um Padre da Igreja?

Uma releitura teológica da catolicidade reformada


Há duas décadas, quando me debrucei pela primeira vez sobre a figura de João Calvino em minha monografia de graduação do então STPRJ, a imagem que se impunha era a de um reformador austero, zeloso da ortodoxia, comprometido com a liberdade cristã como ruptura com os mecanismos de controle e opressão da Igreja Romana. Calvino aparecia, então, como símbolo da resistência protestante à autoridade hierárquica, defensor da centralidade da Escritura e da autonomia da consciência diante da mediação eclesiástica. Essa leitura, embora sustentada por elementos teologicamente consistentes, estava em diálogo com uma tradição de recepção marcada pelo anticatolicismo estrutural do protestantismo de missão — especialmente no contexto brasileiro — e pela valorização da Reforma como gesto de emancipação moral e institucional.

A releitura aqui proposta, construída em diálogo com o ensaio de Diarmaid MacCulloch no volume Calvin and His Influence, 1509–2009, representa um deslocamento hermenêutico significativo em relação àquela perspectiva inicial. Em vez de um Calvino essencialmente oposto à tradição católica, emerge uma figura profundamente enraizada nela, cujas contribuições teológicas dialogam diretamente com os quatro grandes Doutores Latinos da Igreja — Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno. Longe de um símbolo de cisão, Calvino é apresentado como reformador da continuidade, alguém que aspirava à catolicidade, à ortodoxia trinitária e à fidelidade patrística. Essa mudança de ênfase não nega o papel de Calvino na Reforma, mas permite compreendê-lo de modo mais complexo e inserido na história maior da tradição cristã ocidental.

A proposta de considerar João Calvino como um possível “quinto Doutor Latino da Igreja” não constitui uma simples provocação anacrônica nem uma concessão ecumênica. Trata-se, antes, de uma tese historicamente fundamentada e teologicamente densa que busca reavaliar a estatura de Calvino à luz de seu enraizamento na tradição ocidental — especialmente nos eixos estruturantes da catolicidade doutrinária, da ortodoxia cristológica e trinitária, da autoridade patrística e da formação eclesial duradoura. É nesse horizonte que Diarmaid MacCulloch propõe a inclusão simbólica de Calvino ao lado de Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno, não como ruptura, mas como continuidade crítica no seio da tradição latina.

A tese de MacCulloch afirma que Calvino almejou — e em larga medida realizou — uma exposição da doutrina cristã com escopo e profundidade comparáveis às dos grandes doutores da Igreja antiga. Sua teologia, especialmente nas sucessivas edições das Institutas da Religião Cristã (1559), revela-se uma síntese sistemática, pastoral e doutrinal que retoma, com extraordinária fidelidade, os fundamentos agostinianos da tradição ocidental. A centralidade da graça, a doutrina da predestinação, a análise rigorosa da depravação humana e a função pedagógica da Lei configuram, em Calvino, uma atualização crítica do legado de Hipona. Sua adesão aos termos do Concílio de Calcedônia e sua defesa inequívoca da Trindade, sobretudo após as acusações de triteísmo em sua juventude, demonstram sua inserção consciente e positiva no consenso dogmático da Igreja antiga.

É crucial, nesse ponto, recuperar um dado de formação que frequentemente passa despercebido: Calvino estudou no Collège de Montaigu, em Paris — centro de formação marcado pela teologia escolástica tardia, com forte presença do tomismo e do nominalismo. Ainda que esse ambiente tenha influenciado sua juventude, Calvino não trilhou o percurso acadêmico tradicional da teologia universitária. Sua formação principal deu-se no Direito e nas letras clássicas, especialmente sob o influxo do humanismo renascentista. Essa trajetória lhe conferiu recursos filológicos e argumentativos que, mais tarde, resultariam numa teologia distinta da erudição escolástica: menos especulativa, mais bíblica; menos disputacional, mais pastoral. Sua crítica à escolástica, como observa MacCulloch, não é iconoclasta, mas seletiva — Calvino “recicla minério das escórias” medievais para forjar uma teologia enraizada na Escritura e nos Padres, especialmente em Bernardo de Claraval, cuja espiritualidade monástica ele valorizava.


Sua eclesiologia também exprime essa tensão entre reforma e continuidade. Calvino não via a Igreja medieval como apóstata irreversível, mas como uma instituição corrompida, ainda assim preservada em certos elementos essenciais, como o batismo infantil. Essa teologia da aliança, que reconhece a permanência da ação divina mesmo sob estruturas degradadas, lhe permite reivindicar a Reforma como restauração (e não como cisma). A comunidade eclesial de Genebra — com sua liturgia, sua disciplina e sua academia — é concebida como a expressão visível da Igreja una, santa, católica e apostólica. Por essa razão, Calvino rejeitava o rótulo “calvinismo”, preferindo ver sua obra como fiel à tradição cristã universal. Para MacCulloch, essa recusa revela o ethos católico de sua teologia: não uma nova igreja, mas a reforma da Igreja.

Também no plano litúrgico, sua contribuição é notável. Embora não tenha composto os salmos genebrinos, Calvino foi responsável pela estruturação de um culto centrado na Palavra e no canto congregacional. A salmodia em Genebra não era mero adorno estético, mas instrumento de formação espiritual e ordenamento afetivo da comunidade. O reformador via-se, por vezes, como um novo Davi: não o rei guerreiro, mas o poeta-sacerdote cuja missão era harmonizar doutrina, oração e louvor. Sua teologia da música e da adoração é, assim, expressão de uma eclesiologia integral que busca conformar o coração da comunidade à Palavra de Deus.

No plano estilístico, Calvino distingue-se por uma prosa clara, concisa e acessível, em contraste com a prolixidade da escolástica tardia. Essa sobriedade argumentativa amplia a recepção de sua obra e permite sua adaptação a diferentes contextos pastorais. Longe de indicar superficialidade, sua concisão é fruto de rigor lógico e de uma concepção profundamente pedagógica da teologia. Assim como os doutores antigos escreviam para instruir a Igreja, Calvino escreve para formar, corrigir e edificar — não apenas para disputar.

A proposta de MacCulloch, portanto, fundamenta-se na convergência de diversos elementos: fidelidade patrística, ortodoxia dogmática, capacidade sistemática, impacto litúrgico, produção pastoral e legado duradouro. Calvino aparece, nesse quadro, não como fundador de uma nova tradição, mas como restaurador da tradição antiga. Seu projeto reformador não visava abolir o passado, mas resgatar a verdade católica nele obscurecida. A sua figura, lida sob essa ótica, torna-se não um divisor, mas um elo entre a Igreja antiga e a Igreja reformada.

Essa releitura adquire valor crítico particular no contexto brasileiro, onde o calvinismo — em especial aquele derivado de missões presbiterianas do século XIX — tem se constituído historicamente como identidade por negação. Marcado por um anticatolicismo sistemático e muitas vezes culturalmente enraizado, o calvinismo brasileiro tende a reduzir Calvino a uma caricatura de opositor da Igreja Romana, esvaziando a densidade católica de sua teologia. Essa postura resulta não apenas de disputas doutrinárias, mas de um projeto eclesiológico que construiu a própria identidade reformada em oposição à hegemonia católica no país. E, segundo Rubem Alves, o efeito dessa construção é uma alienação da própria tradição: ao rejeitar o passado comum, muitos calvinistas brasileiros negam precisamente aquilo que em Calvino mais se aproxima da grande tradição da Igreja.

A proposta de MacCulloch, portanto, tem potência desconstrutiva e reconstrutiva. Ao reinserir Calvino no cânone dos grandes mestres da fé cristã ocidental, ela oferece ao protestantismo brasileiro a oportunidade de rever sua autocompreensão — não como herdeiro do cisma, mas como interlocutor crítico da tradição. Longe de diluir as diferenças teológicas entre Reforma e catolicismo romano, essa releitura amplia o horizonte de diálogo e complexifica a gramática eclesial. Em lugar de um calvinismo ressentido, exclusivista e identitário, ela propõe um calvinismo consciente de sua origem, maduro em sua crítica e aberto à catolicidade como vocação teológica.

Reconhecer Calvino como um “Doutor da Igreja”, ainda que simbolicamente, não é trair a Reforma — é, ao contrário, restaurar sua ambição mais profunda: ser fiel à verdade do Evangelho na comunhão dos santos que atravessa os séculos. Esse exercício de releitura, ao confrontar percepções formadas há quase vinte anos com os desenvolvimentos interpretativos mais recentes, revela não apenas novas possibilidades hermenêuticas, mas também um processo pessoal de amadurecimento teológico, crítico e histórico diante das tradições que herdamos e das que, por fidelidade ao próprio Evangelho, somos chamados a reconstruir.

Referências
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982.
MACCULLOCH, Diarmaid. Calvin: fifth Latin doctor of the church. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (ed.). Calvin and his influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 3–24.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Por que não sou mais evangélico?

(“Tornou-se difícil dizer Deus; e a oração, um silêncio inquieto”)

Esta breve reflexão nasce da crise, não como lamento, mas como forma teológica. Nasce da experiência de desenraizamento que muitos têm vivido: a percepção de que, em muitos contextos, a identidade “evangélica” passou a conflitar com a radicalidade do Evangelho que anuncia. Não se trata de uma deserção moral, mas de uma ruptura operada pela confrontação com o escândalo da fé: a constatação de que Deus não habita os templos que construímos para abrigá-lo, e que sua Palavra, quando de fato irrompe, aparece como juízo — também e sobretudo CONTRA a religião. A crise da fé, nesse sentido, não é seu oposto: é seu caminho. Assim como em Kierkegaard e Barth, é apenas pela negação das formas religiosas que a possibilidade da fé se oferece, não como certeza, mas como abismo. É a partir dessa ferida que se propõe aqui uma leitura: teológica, crítica e contemporânea, sobre o paradoxo de crer fora dos portões da religião.

A relação entre Søren Kierkegaard e Karl Barth é marcada por uma afinidade crítica diante da religião instituída (e por uma ênfase comum no caráter escandaloso da revelação cristã). Ambos partem da constatação de que há uma ruptura intransponível entre Deus e o ser humano — uma diferença qualitativa infinita que desautoriza qualquer tentativa de assimilação teológica por meio de categorias éticas, psicológicas ou culturais. No pensamento kierkegaardiano, essa ruptura se expressa na figura do paradoxo, do escândalo e da decisão subjetiva diante do absoluto. Barth, ao retomar essa tradição na “Carta aos Romanos”, desloca o centro da crítica do sujeito psicológico para a Palavra de Deus como evento que irrompe desde fora — ab extra — julgando tanto o mundo secular quanto a própria religião. Assim como Kierkegaard escreve contra a cristandade burguesa de sua época, Barth, em sua teologia da crise, escreve contra a complacência liberal da teologia do século XIX, denunciando-a como idolatria antropocêntrica travestida de fé.

Essa interlocução não é apenas conceitual, mas textual e exegética. Em Romanos 1,1, ao comentar a autoidentificação de Paulo como “servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo” (Παῦλος δοῦλος Χριστοῦ Ἰησοῦ, κλητὸς ἀπόστολος), Barth recorre à linguagem kierkegaardiana do paradoxo para sustentar que o chamado apostólico não se explica por categorias psicológicas, sociais ou religiosas. A autoridade de Paulo não decorre de sua biografia ou de seu contexto, mas da irrupção da Palavra divina que o torna, em Barth, uma “exceção impossível” — linguagem que remete diretamente à noção kierkegaardiana de salto qualitativo e ruptura com a normatividade. Já em Romanos 12,3 (μὴ ὑπερφρονεῖν… ἀλλὰ φρονεῖν εἰς τὸ σωφρονεῖν), ao tratar da humildade cristã como resposta à graça, Barth cita Kierkegaard para descrever a “grande perturbação” operada pela fé: um movimento interior que desfaz as garantias do eu e o lança diante de um outro absoluto. Nessa passagem, o amor de Deus é descrito, com Kierkegaard, como um “EGO infinito” cuja presença desestabiliza toda pretensão de autocentralidade, inclusive a religiosa. Em ambos os casos, Barth mobiliza Kierkegaard para enfatizar que a verdade da fé jamais coincide com suas mediações institucionais ou culturais, mas se anuncia como ruptura — e como juízo.

Nesse horizonte, a instrumentalização política da religião por líderes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil marca uma inflexão crítica na história recente da Igreja evangélica. Em ambos os contextos, o discurso cristão foi amplamente apropriado por projetos nacionalistas e autoritários, travestindo-se de moralidade religiosa para legitimar interesses de poder, exclusão e violência. A adesão acrítica de amplos setores evangélicos a tais figuras políticas, em nome de uma suposta defesa da fé, expôs a fragilidade teológica de suas bases e a capitulação do sagrado ao espírito do tempo. O resultado tem sido o afastamento crescente de indivíduos que, embora marcados por uma experiência genuína de fé, não encontram mais nas igrejas tradicionais um lugar de escuta, profecia e denúncia. Esse movimento não é apenas sociológico — ele pode ser interpretado teologicamente como nova forma do paradoxo: o Evangelho, mais uma vez, clama de fora dos portões, onde Cristo foi crucificado, e onde agora se refugiam aqueles que recusam uma fé cooptada por ideologias de dominação.



Esse movimento de deslocamento da fé para fora das formas religiosas tradicionais encontra ressonância também em Dietrich Bonhoeffer, cuja proposta de um cristianismo a-religoso — uma fé “não religiosa” — expressa o anseio por um seguimento de Cristo liberto das roupagens culturais, institucionais e metafísicas que historicamente o sufocaram. Em suas cartas da prisão, Bonhoeffer não propõe um abandono da fé, mas sua depuração mais radical: uma cristologia que recusa os amuletos da religião e confronta o mundo “a partir do centro da sua realidade secular”. Tal como em Barth e Kierkegaard, a fé não se localiza na adesão a uma forma culturalmente sancionada, mas na disposição de ser atingido, desestabilizado e convocado pela Palavra. A “fé não religiosa” não é um projeto subjetivista ou secularizante, mas uma forma de obediência que emerge no silêncio das formas esvaziadas, como escuta do Deus que age no oculto (o Deus absconditus, de Lutero!), e que, por isso mesmo, continua falando.

É nesse sentido que a saída da igreja institucional, por parte de muitos crentes contemporâneos, não deve ser interpretada como apostasia ou descompromisso com a vida cristã, mas como sinal escatológico: uma recusa às formas mortas que já não hospedam a presença viva do Espírito. A eclesialidade, aqui, não é negada — ela é deslocada para outro regime de visibilidade, exigindo reconfiguração. A igreja, para continuar sendo Igreja, precisa reaprender a falar profeticamente, a habitar as margens, a renunciar à aliança com os poderes deste século. Mais do que jamais se institucionalizar, a fé eclesial é chamada a existir em fidelidade ao Cristo que foi crucificado fora da cidade: não em guetos ideológicos ou trincheiras identitárias, mas na comunhão dos que esperam — juntos — por um Reino que não pode ser administrado, apenas testemunhado. O êxodo das formas, portanto, não dissolve a igreja: pode, paradoxalmente, ser sua salvação.

A possibilidade de atualização contemporânea dessa constelação teológica passa pelo reconhecimento de que, hoje, o paradoxo da fé pode se manifestar na vivência a-religiosa da existência cristã. Se a religião, em sua forma institucional, tornou-se frequentemente um instrumento de justificação cultural, política e moral — um “trabalho humano” no vocabulário barthiano —, então a fé autêutica talvez se desloque para fora dos círculos religiosos tradicionais, para as margens, os interstícios, os lugares em que a graça não pode mais ser confundida com privilégio ou identidade. Como Kierkegaard sugeria ao denunciar a cristandade como caricatura do cristianismo, e como Barth ecoa ao declarar que toda religião é julgada pela revelação, é possível conceber que os verdadeiros crentes estejam hoje ocultos sob formas não religiosas, vivendo no mundo como aqueles que farejam, na expressão do prefácio barthiano, “o cheiro da eternidade” sem o aparato das instituições.

No entanto, esse movimento de atualização encontra seus limites na própria estrutura do pensamento de Barth, que jamais abandonou completamente a mediação eclesial e que insistiu na proclamação da Palavra pela comunidade reunida em torno das Escrituras. O risco de uma dissolução completa da fé em experiência privada ou espiritualismo subjetivo sempre assombrou a crítica kierkegaardiana, e Barth parece ter tomado distância justamente para evitar esse destino. Assim, a figura do crente a-religioso permanece como hipótese provocadora — teologicamente fecunda, mas também eticamente exigente — pois não pode significar mera recusa das formas, mas fidelidade radical àquele que foi crucificado “fora do portão”, onde não há segurança religiosa, apenas graça e juízo.

Referências
BARTH, K. A Epístola aos Romanos. Traduzido da 5ª edição alemã. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
BONHOEFFER, D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.

A Velha Princeton como Matriz Teológica da Formação Pastoral Presbiteriana (séculos XIX e XX)

No imaginário teológico protestante, a chamada “Escola de Princeton” do século XIX é comumente vista como um bastião do Calvinismo confessio...