No imaginário teológico protestante, a chamada “Escola de Princeton” do século XIX é comumente vista como um bastião do Calvinismo confessional clássico, herdeira direta da ortodoxia reformada dos séculos XVI e XVII. Entretanto, Annette G. Aubert propõe uma releitura sofisticada desse legado ao demonstrar que, longe de ser um reduto isolado de resistência ao pensamento moderno, o Princeton Theological Seminary esteve profundamente enredado nas redes intelectuais transatlânticas da erudição teológica europeia, em especial da teologia alemã. Essa constatação permite deslocar o foco da historiografia tradicional — marcada por um excessivo peso no realismo do senso comum escocês — para uma compreensão mais dinâmica, em que o legado de Princeton se revela como uma resposta crítica e seletiva aos desafios epistemológicos, filosóficos e hermenêuticos do século XIX.
Antes dessa virada, a teologia sistemática — especialmente na tradição escolástica reformada pós-Reforma — operava predominantemente por um método dedutivo. Partia-se de axiomas doutrinários (por exemplo, os atributos divinos ou os decretos eternos), e a teologia era então estruturada logicamente a partir dessas premissas. Autores como Francis Turretin (1623–1687) representaram essa tradição que enfatizava a coerência interna do sistema mais do que a exposição analítica da Escritura como base da teologia. O pensamento teológico era assim marcado por categorias abstratas herdadas da metafísica aristotélico-tomista, ainda que ressignificadas no interior do protestantismo confessional.
A Escola de Princeton, especialmente por meio de Charles Hodge (1797–1878), rompe com essa orientação ao propor uma teologia construída indutivamente, isto é, baseada na coleta e análise dos “fatos” das Escrituras — em analogia direta com os métodos das ciências naturais. Hodge, influenciado por Francis Bacon (1561–1626), sustentava que a teologia deveria ser uma ciência empírica, metodicamente construída com base nos dados bíblicos. Isso implicava um deslocamento epistemológico radical: a Revelação deixava de ser contemplada sob a ótica de uma metafísica sistemática e passava a ser examinada sob o prisma das ciências modernas — filologia, crítica textual, historiografia e lógica. Ocorre aqui um fenômeno ambivalente: ao buscar garantir objetividade e racionalidade à teologia, Princeton termina por enredá-la em uma racionalidade instrumental, típica da modernidade, que privilegia a verificabilidade, a coerência lógica e a abstração sistemática.
A influência da teologia de Princeton na formação pastoral brasileira, embora indireta, foi profunda e estruturante, especialmente no contexto presbiteriano. Através das missões norte-americanas do século XIX, cujos obreiros estavam alinhados à ortodoxia confessional da Old Princeton, o pensamento de Charles Hodge, A. A. Hodge e B. B. Warfield chegou ao Brasil como matriz doutrinária para os primeiros seminários presbiterianos. Obras desses autores circularam amplamente — direta ou indiretamente — em programas de formação ministerial, consolidando uma teologia sistemática voltada à defesa da inerrância bíblica, da autoridade das confissões reformadas e da apologética clássica.
Essa recepção, porém, foi seletiva: adotou-se a rigidez doutrinária e o método sistemático, mas perdeu-se a interlocução crítica que Princeton mantinha com a erudição teológica europeia. Em sua transposição para o Brasil, Princeton foi reinterpretada como símbolo de segurança confessional em um cenário de instabilidade cultural e eclesial, o que favoreceu seu uso como marco identitário contra tendências tidas como liberais ou pluralistas. A tradição princetoniana, assim, tornou-se mais uma referência de ortodoxia dogmática do que um modelo de investigação teológica viva e dialógica — processo que contribuiu para tendências ao fechamento hermenêutico ainda perceptíveis em certos setores do protestantismo brasileiro.
Contudo, como já alertava Karen Armstrong, a modernidade produziu não apenas sujeitos emancipados, mas também ansiedades, angústias e reações religiosas radicais. Ao analisar o surgimento do fundamentalismo no protestantismo americano — o mesmo contexto histórico de Princeton — Armstrong mostra que esse movimento é uma resposta simbiótica à crise de significado provocada pela secularização. O fundamentalismo protestante, longe de ser arcaico, é profundamente moderno em sua forma: adota métodos racionais, científicos e organizacionais para tentar defender conteúdos religiosos ameaçados. Nesse sentido, o modelo hodgiano — com toda sua pretensão de objetividade científica aplicada à Escritura — pode ser compreendido, retroativamente, como um elo entre o conservadorismo teológico e o fundamentalismo moderno.
Se Armstrong estiver certa ao afirmar que o fundamentalismo é uma tentativa de transformar mythos em logos, então Princeton representa uma transição delicada. Ao tratar a Bíblia como “fonte de fatos”, Hodge realiza uma operação que, embora metodologicamente sofisticada, colabora com a racionalização excessiva do texto sagrado — esvaziando sua dimensão simbólica, ritual e espiritual, que sempre dependeram da linguagem do mythos. Como Armstrong argumenta, a separação entre mythos e logos — típica do mundo pré-moderno — foi obliterada no século XIX. A teologia princetoniana parece ilustrar essa confusão: ela reafirma a ortodoxia reformada, mas faz isso em linguagem moderna, científica e juridicamente controlada, antecipando formas de literalismo bíblico que mais tarde seriam mobilizadas por movimentos abertamente fundamentalistas.
Esse é o ponto nevrálgico da crítica. Ao transformar o texto bíblico em depósito de proposições objetivas, o modelo de Princeton contribui, ainda que de forma não intencional, para o ambiente interpretativo em que a leitura literalista das Escrituras se desenvolve como manual científico, característica típica dos criacionistas e defensores do “design inteligente”. Isso ajuda a entender por que a recepção brasileira dessa tradição — especialmente em contextos confessionais influenciados por seminários reformados de orientação conservadora — assume características que se aproximam do fundamentalismo moderno, conforme descrito por Armstrong: a teologia princetoniana, em sua tentativa de responder à modernidade sem abrir mão da ortodoxia, termina por acolher o espírito moderno sem o seu pluralismo, e a racionalidade científica sem o seu ceticismo epistemológico.
É preciso considerar, aqui, as categorias weberianas de desencantamento e racionalização, que iluminam o processo pelo qual o universo simbólico da fé reformada se reconfigura sob as exigências da razão instrumental. Ao perder sua ancoragem litúrgico-mítica e ser transformada em sistema lógico-dedutivo ou empírico-indutivo, a teologia reformada moderna corre o risco de se tornar uma ortodoxia tautológica, voltada à reprodução de si mesma. Ao invés de operar como hermenêutica da existência, a teologia torna-se mecanismo de legitimação de doutrinas, num esforço constante de normatividade e controle. Benjamin B. Warfield (1851–1921), herdeiro direto de Hodge, levará essa lógica ao extremo com sua doutrina da inerrância verbal, reforçando o fechamento do texto sagrado ao mistério e ao símbolo, e abrindo caminho para o esvaziamento da experiência de fé como encontro com o Outro radical.
Assim, o que em Hodge e Warfield era tentativa legítima de defesa confessional, no contexto brasileiro converte-se frequentemente em mecanismo de delimitação doutrinária mais rígida, resistência à crítica teológica e fetichização da ortodoxia. O mito bíblico — enquanto narrativa que orienta a vida, estrutura o culto e sustenta o imaginário simbólico da fé — é dissolvido na lógica da precisão exegética e do controle dogmático. O cristianismo, ao perder seu substrato simbólico e experiencial, torna-se um sistema racional fechado, pronto para ser defendido — ou promovido — dentro da lógica de uma guerra cultural. Tal racionalização da fé parece caracterizar certas expressões contemporâneas do neocalvinismo, cuja recepção no Brasil, sobretudo a partir do século XXI, consolidou um ethos combativo, apologético e doutrinariamente blindado. Aqui, já nos movemos no terreno da recepção brasileira do neocalvinismo holandês, reinterpretado em chave reativa e identitária. Essa, segundo Armstrong, é a tragédia do fundamentalismo: ele é uma modernização fracassada da fé.
Ao destacar os vínculos de Princeton com a erudição europeia, Aubert nos convida a pensar a tradição calvinista não como um bloco monolítico, mas como um espaço de negociações teóricas, disputas hermenêuticas e redes transnacionais. Mas essa promessa só se realiza quando Princeton é lida não como cânone, e sim como momento histórico, com suas possibilidades e suas limitações. No Brasil, talvez o desafio esteja em recuperar essa tensão criativa — entre fé e crítica, entre herança e diálogo — sem repetir os engessamentos de uma ortodoxia que, ao tentar proteger a Escritura, termina por reduzi-la.
A recepção brasileira da teologia de Princeton revela não apenas uma apropriação parcial, mas frequentemente acrítica, dos seus pressupostos epistemológicos e dogmáticos. Ao ser importada como modelo de ortodoxia inconteste, a teologia princetoniana tem sido usada como referência estratégica de legitimação identitária em contextos eclesiásticos marcados por polarizações ideológicas e culturais. Em vez de operar como ponto de partida para o diálogo entre fé reformada e os desafios do mundo contemporâneo — pluralista, desigual e em transformação — ela se torna instrumento de reprodução de uma teologia apologética pouco disposta ao dissenso e pouco sensível às mediações culturais. Ao cristalizar-se como sistema, ela deixa de ser tradição viva e passa a funcionar como símbolo de segurança doutrinária em tempos de incerteza, mas à custa do esvaziamento hermenêutico e da complexidade da experiência de fé. Para evitar esse destino, é necessário recuperar uma epistemologia teológica aberta ao simbólico, ao mítico e ao provisório, reconhecendo que toda linguagem teológica é situada, hermenêutica e historicamente condicionada — jamais absoluta ou impermeável à crítica.
Referências
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
AUBERT, Annette G. Old Princeton and European Scholarship. In: GORDON, Bruce; TRUEMAN, Carl R. (org.). The Oxford Handbook of Calvin and Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 2021. p. 251–270.
CASIMIRO, A. D. O discurso presbiteriano: a teologia de Princeton e sua influência na formação dos pastores nordestinos. Revista Ciências da Religião - História e Sociedade, [S. l.], v. 1, n. 1, 2010. Disponível em: https://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/2356. Acesso em: 25 maio. 2025.