domingo, 3 de maio de 2020

Calvino e sua influência no mundo Ocidental


Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”, de Friedrich Wilhelm Graf, constitui-se num importante ensaio sobre as dimensões propriamente identitárias e culturais do calvinismo, principalmente no que concerne à importância da espiritualidade dita “reformada” (leia-se aqui: calvinista…) à formação do mundo moderno – e aos processos históricos de “modernização”. A propósito, trata-se, desde a época em que as pesquisas da “troika” Troeltsch-Weber-Jellinek foram realizadas, um tema recorrente tanto na área da “Teologia Política” quanto na Sociologia da Religião (cf. GRAF, 2011).

O estudo das ideias religiosas, especialmente no que diz respeito às especificidades da “teologia calvinista”, materializou-se, nos últimos duzentos anos, em diversos “padrões de interpretação”, possibilitando a constituição de “formas discursivas” e culturais distintas na Alemanha e no mundo de fala inglesa. Paradoxalmente, as diversas interpretações acadêmicas acerca de “Calvino e sua influência no mundo Ocidental”, para fazer referência ao título de uma obra publicada na década de 1990 pela então “Casa Editora Presbiteriana S/C”, a autopercepção de “calvinistas piedosos” e as representações históricas produzidas por teólogos e historiadores de todas as confissões cristãs, economistas, advogados, acadêmicos (e mesmo atores políticos) agem no cenário brasileiro numa outra direção, instituindo, nos termos laclaunianos da oposição fundamental entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência, um tipo de relação “nós”-“eles” dominado muitas vezes por paixões de natureza político-religiosa.

Embora as questões envolvendo a temática da confessionalidade sejam razoavelmente tardias, vale lembrar que a “terceira cultura confessional moderna” encontrou no termo “calvinismo”, de uso controverso até, digamos, o século XVIII, mas fortemente presente entre os “religiosamente” interessados, uma forma legítima de “autodesignação religiosa” (em oposição ao “catolicismo tridentino” e ao luteranismo). Num contexto fortemente marcado por polêmicas religiosas, a expressão está presente no ideário político-religioso europeu desde a segunda metade do século XVI, sendo, inclusive, encontrada numa carta do próprio Calvino a Heinrich Bullinger por ocasião das negociações que antecederam o “Consensus Tigurinus” – datada de 26 de junho de 1548 (ibidem, p. 256). Tornou-se, enfim, no âmbito da reflexão histórico sociológica recente, um “tipo-ideal” eficaz na compreensão daquelas igrejas confessionais não-luteranas que basearam sua experiência religiosa comunitária nos escritos confessionais da Reforma ou do período pós-reforma – como o Catecismo de Heidelberg (1563) e a Confissão de Fé de Westminster (1647).

João Calvino é considerado por muitos a principal referência intelectual da Reforma. Foto: Pixabay.com

Voltando ao argumento central de F. W. Graf, estabelece-se, no século XIX, no contexto de um segundo período histórico de “confessionalização” – e de reação aos resultados político-religiosos da Revolução Francesa –, uma profunda clivagem entre o “calvinismo da era confessional” e o neocalvinismo político e religioso moderno. Contra as formas místicas de espiritualidade, o calvinismo aparece aqui representado não apenas como uma “força social moral” dotada de um tipo de racionalidade que “atravessa” todos os meandros da vida cotidiana, disciplinando indivíduos, famílias, instituições e países, mas também, e principalmente, como uma “formação discursiva” a articular política, economia, ética e religião – uma forma de protestantismo radicalmente mais lógica, racional e dotada de “eficiência política”.

Aliás, essas afinidades, na teoria política “calvinista” do século XIX, expressaram-se tanto na busca pelas conexões existentes entre a análise da dimensão propriamente religiosa (as noções teológicas de vocação, “Imago Dei”, e liberdade cristã etc.; as formas institucionais independentes e autônomas – sínodos e presbitérios; uma ênfase exacerbada no indivíduo; entre outros elementos de natureza religiosa) e as outras “esferas de vida”, especialmente a esfera política, quanto nas formas de compreensão de um tipo bastante específico de subjetividade – constituído em meio à “ascese intramundana” de calvinistas piedosos.

Nesse contexto, as nossas modernas noções de “universalidade” (liberdades civis, federalismo, republicanismo, moralidade cívica e a noção de “direitos humanos”) e soberania popular não apenas se vincularão aos desenvolvimentos históricos de uma “esfera religiosa” relativamente autônoma com relação às outras esferas de vida e ação (política, economia, artes etc.). Atendendo a interesses religiosos e políticos bastante específicos do período pós-revolucionário, a contrapartida óbvia desse argumento, entre teólogos e juristas calvinistas do século XIX, residia na noção de que, no contexto do desenvolvimento das “liberdades democráticas”, nossa “virtude constitucional”, contra toda uma tradição baseada no formalismo liberal, tem em certas premissas morais ideais um fundamento ético seguro: liberdade religiosa e liberdade civil eram verso e anverso de uma mesma moeda.

Aqui vale, também, a advertência do autor: “Studies of Calvinism are a kind of self-conscious discourse on a modernity whose foundations have become uncertain” (ibidem, p. 256). De um ponto de vista meramente histórico, o argumento das “afinidades eletivas” também não se sustenta mais: estudos históricos recentes vieram a demostrar que príncipes alemães incentivavam a difusão das formas reformadas de espiritualidade precisamente porque suas características “teocráticas” e vinculativas fortaleciam a lealdade política. Nos termos do historiador marxista E. Hobsbawm, tudo não passa de uma “tradição inventada”.

O que dizer, então, daquele fervor autoritário, “orientado para a ordem,” segundo o autor, e facilmente encontrado nas teologias dos proeminentes pensadores neocalvinistas dos séculos XIX e XX (ibidem, p. 261)? Sem referências históricas precisas, o argumento evidentemente não nos autoriza a encaminhar o debate numa direção diametralmente oposta. De qualquer forma, as ambiguidades do calvinismo se materializaram num tipo de discurso que, ao longo do século XX, deixou-se “instrumentalizar” tanto no contexto de uma cruel “segregação racial”, na África do Sul, quanto num tipo de formação discursiva que, num apelo explícito à Declaração Teológica do Sínodo de Barmen (1934), visava fazer uma oposição religiosa ao Apartheid. Aqui, há “calvinistas e calvinistas”, suspeito. Uma mesma e única “ideologia religiosa”, diga-se de passagem, a sustentar visões diferentes de mundo...

Referências

BIÉLER, A. A força oculta dos protestantes. São Paulo, Cultura Cristã, 1999.
GRAF, F. W. “Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 12, pp. 255-266.
REID, W. S (Ed.). Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Fidelidade ao fracasso


“Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher;
porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (São Paulo - SBB-RA)
 “A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' no qual vivemos é a regra.
Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso.”
Walter Benjamin


A “frágil força messiânica” de uma teologia materialista

Por Robson da Costa de Souza* (robs_costa@hotmail.com)


Recentemente, a polêmica envolvendo um “santo jejum” apregoado por uma autoridade secular me fez refletir não tanto sobre o referencial de “publicização” adotado por muitos protestantes brasileiros. Nessa breve contribuição teológica, nutro fielmente a compreensão de que, aos envolvidos, não bastaria trazer à tona os limites da “laicidade brasileira”, seja pela demostração de que essa relação de proximidade com o Estado, no Brasil, fere profundamente a consciência daqueles calvinistas que, como eu, postulam, criticamente, a separação entre as esferas laica e religiosa como um ganho da modernidade, seja pela defesa do argumento de que uma “comunidade messiânica”, compreendida nos termos de “consciência do Estado”, não pode prescindir de um distanciamento mínimo com relação às esferas profanas de poder e soberania.
Aqui trilharei o árduo caminho da teologia política. A se acreditar na tradição sinótica, a autoridade (ἐξουσία) conferida ao Cristo ressurreto (e, por extensão, ao povo eleito), no contexto da Nova Aliança, constitui-se, fundamentalmente, sob o “brilho da cruz” (cf. Bornkamm, 2003, p. 69), só podendo ser discernida a partir de um horizonte messiânico de esperança/ mensagem/ proclamação/ discipulado (Mateus 28.18-20).
A propósito, a “fé pascal” parte das formulações “querigmáticas” das primeiras comunidades cristãs ao interpretar “Jesus de Nazaré” como o “Cristo de Deus”, quer nos termos de uma compreensão teológica acerca de uma relação de continuidade (direta ou indireta) entre a “realidade terrena” de Jesus e a experiência que os primeiros discípulos fizeram do Ressuscitado, quer se considere, como em muitos círculos hermenêuticos, o “Cristo da fé” completamente distinto do assim chamado “Jesus histórico” (ver, principalmente, Bultmann, 2001).
Se, um lado, as festividades do Domingo de Ramos dimensionam a natureza do Reino (βασιλεία) inaugurado pelo único e verdadeiro Messias (João 18.36: “Meu reino não é deste mundo”; Bíblia de Jerusalém), de outro, os relatos acerca das aparições do Senhor apontam para o fato de que esse Evento tinha um caráter fundamentalmente “escatológico” (i.e., “um cumprimento real, em Jesus, da expectativa despertada por sua mensagem”) na medida em que foram tomadas pelas primeiras testemunhas como “prova” de que Deus tinha ressuscitado Jesus dos mortos.
Ao estabelecer um profícuo diálogo com a filosofia política contemporânea, o mérito da teologia política reside na tentativa de interpretar as antinomias paulinas “em chave messiânica”, demonstrando, com farta discussão teológica, o modo pelo qual o “apóstolo dos gentios” se distancia radicalmente da “agenda moral” de seu tempo (cf. Martyn, 2010), que se caracterizava por uma ética organizada fundamentalmente por “pares de oposições” moralmente ortodoxos (e escolhas religiosas e morais bastante rígidas e definidas).
Neste ponto, vale ressaltar que, atualmente, o interesse acadêmico pela religião, entre as principais referências intelectuais da esquerda contemporânea (A. Badiou, G. Agamben e S. Žižek, entre outros), expressa-se num tipo de “apropriação” filosófica que não apenas toma a natureza do messianismo político de Paulo como um importante objeto de investigação, mas também como parte de um conjunto mais amplo de exemplos religiosos a serem utilizados no nível da argumentação sociopolítica.
Ao apresentar Paulo como um “teólogo apocalíptico”, J. Louis Martyn, no artigo “The Gospel Invades Philosophy”, procura articular a radicalidade de uma nova compreensão do tempo à esfera propriamente discursiva da experiência religiosa cristã (em Paulo: a “fé” suscitada pela Palavra graciosa do Evangelho). Enquanto um cristão terrivelmente realista, Paulo toma a morte do “Jesus dos milagres”, numa cruz romana, como um fato consumado. Ponto final.
Em 2 Coríntios 5.16, Paulo mesmo diz que o Cristo anunciado por ele não se confunde com o “Cristo segundo a carne”. Sob essa ótica, a crucificação de Cristo envolve, também, em termos figurativos e parabólicos, a crucificação do cosmos (o mundo em que o próprio Paulo vivia anteriormente) e do próprio apóstolo. Privado de marcadores familiares, torna-se testemunha, aqui e agora, de “um mundo em transição” (cf. 1 Coríntios 7.31: παράγει γὰρ τὸ σχῆμα τοῦ κόσμου τούτου).
Em termos bastante subversivos, essa “subjetividade messiânica”, inscrita numa nova “comunidade moral”, subtrai-se às lógicas políticas do “tempo presente”, isto é, ao pautar-se pela “gramática do amor”, em nada se compara às tentativas religiosas de “legitimação da ordem” no contexto do conservadorismo protestante de nossos dias. Em que pese o caráter parabólico e figurativo do messianismo político de Paulo, o conjunto de “insights” teológicos presentes nessa leitura “trans-imanente” da realidade histórica desarticula, assim, nossas concepções laicas e profanas de poder e soberania (explicitadas, geralmente, pelo rígido formalismo da lei), abrindo espaço para a constituição de um tipo de subjetividade (agência) que, novamente, “sob o brilho da cruz”, resiste à “totalidade significativa de um mundo histórico”, para usar uma expressão do teórico esloveno S. Žižek (2015).
Testemunhando contra uma fácil integração à ordem, a morte solitária de Cristo (Mateus 27.46: τί με ἐγκατέλιπες), no conjunto das narrativas da Paixão, vincula-se ao necessário reconhecimento de uma “universal particularidade” – desde que nascemos, o confronto com o Real potencializa nossas angústias até o limite do desespero. Considerando a complexa configuração de identidades sociais na cultura imperial romana do primeiro século, a noção teológica de “ressurreição” funciona, aqui, como um “gesto formal” destinado a desarticular um sistema de significações baseado na noção ontológica de totalidade (cf. Elliott, 2010).
Qual o sentido político da ressurreição? Foto: Pixabay.com
 Nessa direção, N. Elliott, em “Ideological closure in the Christ-Event: a Marxist Response to Alain Badiou's Paul”, argumenta que a proclamação de um “messias crucificado” foi irredutivelmente política em suas implicações: suspendeu a eficácia simbólica do “kiriarcado”. Nos termos de T. Kroeker (2010), trata-se, do ponto de vista da “tradição dos oprimidos”, de uma reação teológico-política ao “antimessianismo da causalidade imanente” – a explosão de uma redenção messiânica que, sob o apelo misterioso do passado, tende a se concretizar no interior mesmo da história). Segundo W. Benjamin,
O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm irmãs que jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos procedeu, uma fraca força messiânica, à qual o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser descartada sem custo. O materialista histórico sabe disso (Tese II).
Aqui, o materialista histórico, como diria Benjamin (apud: Löwy, 2005, p. 70), escova a história a “contrapelo” do lado das vítimas oprimidas: os fracos, os tolos, os humildes e desprezados (Tese VII). À luz dos eventos ocorridos na “Semana Santa”, chegamos, enfim, ao entendimento de que a verdade traumática da história humana é um “corpo mutilado” (cf. Žižek, 2006, 2008). Segundo T. Eagleton, “somente aceitando essa como a derradeira palavra, vendo tudo o mais como lixo sentimental, ilusão ideológica, utopia de mentirinha, consolo falso, idealismo ridiculamente otimista, é que talvez se comprove que essa, afinal, não é a última palavra” (2011, p. 34-35).
À luz dessa compreensão benjaminiana, a soberania inaugurada aqui, no contexto de uma negação messiânica e redentora do mundo – aberta não somente ao futuro como também aos “momentos explosivos do passado” (cf. Michael Löwy) – subtrai-se, politicamente, às “regras do jogo” de um “estado de exceção” permanente, sendo de natureza diversa (o real “estado de exceção” da Tese VIII). Essa compreensão teológica, ao apontar para formas políticas de “desprendimento e despossessão”, atesta, também, contra os poderosos (deste e) daquele tempo histórico (1 Coríntios 2.6: οὐδὲ τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος), os quais estão destinados ao desaparecimento (καταργέω).
No que concerne aos aspectos ideológicos vigentes na ordem imperial de então (cf. Elliott, 2010), a proclamação de Paulo, ao estabelecer visões coletivas de um futuro alternativo (“utopia”), significava nada menos do que “um gesto ideológico desafiador”, um momento da luta política contra-hegemônica: o “futuro de Deus”, enquanto μυστήριον (Romanos 11.25), constitui-se, aqui, numa ruptura radical com a ordem vigente, não se reduzindo aos desenvolvimentos “imanentes” das circunstâncias históricas.
A “fé pascal” exige, nesse aspecto, uma atitude de engajamento existencial. Em Paulo, somente aqueles que, no contexto de uma nova comunidade messiânica (na linguagem da Teologia da Libertação, a Igreja é um “creatio ex nihilo” político dos pobres), deixam-se interpelar pelo logos moldado por esse evento divino messiânico (nos termos de 1 Coríntios 1.18-19, um logos antifilosófico), conseguem perceber a radicalidade dessa nova compreensão política da história da humanidade.

(...) ainda que a mensagem particular de são Paulo já não seja operativa para nós, os próprios termos nos quais ele formula o modo operativo da religião cristã têm um alcance universal para todo Acontecimento-Verdade: todo Acontecimento-Verdade leva a uma espécie de “resssurreição” – pela fidelidade a ele e por um trabalho de Amor em seu nome, entra-se em outra dimensão, irredutível ao mero ‘service des biens’, ao bom funcionamento dos negócios no domínio do Ser, o domínio da Imortalidade, da vida desimpedida da morte… (ŽIŽEK, 2013, p. 164).

Curiosamente, os mesmos que, outrora, acusavam Paulo de “tribalismo” (não necessariamente a “troika” Agamben-Badiou-Žižek), precisam lidar hoje com as implicações políticas da teologia apocalíptica de Paulo, verificando se esse “messianismo político” tem algo significativo a dizer ao nosso tempo. Entre a lógica de um “excepcionalismo” identitário (explicitado, muitas vezes, pela conhecida distinção bíblica: judeu/ grego), e o cosmopolitismo do Império Romano, com fortes tendências nacionalistas, intervém a compreensão paulina de um universalismo baseado no “evento” messiânico (Badiou, 2009). Em termos hegelianos, o “universal ‘ultrapassado’ (aufgehoben) no singular” (Žižek, 2006, p. 24) transforma-se em “fundamento”, isto é, o solo onde um “igualitarismo radical” pode, finalmente, florescer: o Cristo ressurreto aparece, de forma metafórica, corporificado na “comunidade dos iguais” – “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mateus 18.20, SBB-RA).
Segundo o filósofo A. Badiou (1937- ), o apóstolo Paulo teria lançado as bases do “universalismo”... Foto: Pixabay.com
Aqui, vale lembrar que ao longo de toda uma tradição filosófica que vai de M. Foucault a G. Agamben, a “biopolítica” se constitui não apenas pela produção de “formas de vida” moldadas pelo poder, como também por uma rígida demarcação da “esfera política” (e o que dela está excluído pela lógica da excepcionalidade). Nessa perspectiva, a formação de um “corpo político” para o qual as próprias condições de vida (e sobrevivência) tornaram-se, na contemporaneidade, objeto de “disputa” e de criação de fronteiras rígidas (materiais e simbólicas) traduz-se, atualmente, na “negação paradoxal da política” (no lugar de uma mera “despolitização”), e na “comunitarização da esfera pública” (cf. Elliott, 2010, p. 140), isto é, na produção política de um indivíduo parcial ou completamente “fechado ao diálogo”, como muitas vezes se vê no Brasil (pré ou pós-COVID-19).
A propósito, o que está em jogo nessa crítica filosófica é a cara visão unificadora de um “bem comum” que, em nosso universo político liberal, expressa-se, ideologicamente, no “formalismo” de um aparato jurídico-político pretensamente imparcial. Se, de um lado, o próprio “universo da lei”, ao estabelecer as distinções as mais diversas, no contexto de um “estado de exceção” permanente (G. Agamben), testemunha contra essa “pseudo-universalidade” dos mercados (A. Badiou), de outro, permanece irremediavelmente vinculado à maquinaria política do Estado – um “biopoder” capaz de regular as “particularidades” nos mínimos detalhes, conforme a tradição em foco (cf. M. Foucault).
Segundo Agamben (2016), a “universalidade messiânica”, nesse sentido, desenvolve-se numa posição política única entre (para além) o discurso religioso fundamentalistae noções contemporâneas de laicidade. Nesse cenário, o “aqui e agora” no qual se realiza a salvação/ libertação dos seres humanos tem, na ressurreição de Cristo, um horizonte que ultrapassa tudo o que se pode esperar. Confrontada pelas exigências de nossa sociedade, a prática eclesial se depara com uma alternativa radical: Ou assume de vez a sua “vocação messiânica” ou corre o risco de se tornar o “refúgio obscurantista dos eleitos” (cf. Gordon Zerbe):
In particular, as these interpreters suggest, when the church forgets or refuses to admit that it is ‘a purely contingent historical figure,’ a merely ‘strategic identification’ in the drama of the reconstitution of a new people of God in which all humanity becomes ‘all Israel,’ it is in danger of losing its true vocation and instrumentality (pure use) toward the fulfillment of the cosmic drama, God’s love story with all creation. It loses its character of necessary ‘auto-suppression’ relative to the vision of the reign of God. It forgets that it ultimately has identity only in the universal, eschatological economy of salvation when God will be all in all. When the church seeks to maintain an absolute church-world distinction, despite the telos of the universal-eschatological-messianic drama, it is in danger of becoming a mere obscurantist haven for the (self)righteous (ZERBE, 2010, p. 281)

Nos termos teológicos de D. Bonhoeffer (2016), a vida em comunidade “testemunha, por sua própria maneira de ser e de agir, que a ‘aparência deste mundo passa’ (1Co 7.31), que ‘o tempo se abrevia’ (1Co 7.29), que ‘perto está o Senhor’ (Fp 4.5)”. Conquanto a ideia de ressurreição só faça sentido no contexto de uma compreensão mítica de mundo, a ênfase desses filósofos recai, portanto, nas consequências políticas (intencionais ou não-intencionais) desse “gesto formal” a fundamentar esse “universalismo coletivo”: um tipo de discurso que, ao colocar-se numa relação antagônica com aspectos essenciais da “biopolítica imperial”, resiste ao poder soberano do Estado.
Em suma, o discurso político messiânico ensaiado por filósofos como Badiou age contra a “domesticação de Paulo” no cenário cristão (cf. Fowl, 2010), colocando a reflexão teológica, no contexto de uma ressignificação teológico-política das particularidades, a serviço da afirmação de “um procedimento universal de verdade”. Por meio de uma “dupla crítica” (tanto das políticas identitárias quanto das abstrações “desenraizadoras” do Capital), graça e materialismo se combinam num tipo de discurso que, à luz de um princípio universal e mais abrangente de verdade, não apenas relativiza todas as diferenças étnico culturais, transcendendo-as (isto é, tomando-as como “adiáforas”), como também institui um tipo de “subjetividade” resistente aos processos contemporâneos de tradicionalização e “re-tradicionalização”. Num sentido político teológico bastante específico, a “fidelidade messiânica” ultrapassa, aqui, o discurso político liberal da tolerância, podendo ser encontrada entre os atores sociais e políticos mais improváveis.

* Robson Souza é Teólogo (STPRJ), Licenciado em Ciências Sociais (UMESP), Mestre em Ciências da Religião (UMESP) e Doutor em Serviço Social (UFRJ).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo, 2009.
BORNKAMM, Günther. Bíblia, Novo Testamento: introdução aos seus escritos no quadro da história do cristianismo primitivo. São Paulo: Editora Teológica, 2003. 
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.
BULTMANN, Rudolf. Crer e Compreender: ensaios selecionados, edição revista e ampliada. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
EAGLETON, Terry. O Debate sobre Deus. São Paulo: Nova Fonteira, 2011.
ELLIOTT, Neil. “Ideological Closure in the Christ-Event: A Marxist Response to Alain Badiou’s Paul”. In: HARINK, Douglas. “Paul, Philosophy, and the Theopolitical Vision: Critical Engagements with Agamben, Badiou, Zizek, and Others”. Eugene, Oregon: CASCADE Books, 2010. cap. 6, pp. 135-154.
FOWL,  Sthepen. “A Very Particular Universalism: Badiou and Paul”. In: HARINK, Douglas. “Paul, Philosophy, and the Theopolitical Vision: Critical Engagements with Agamben, Badiou, Zizek, and Others”. Eugene, Oregon: CASCADE Books, 2010. cap.5, pp. 119-134.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005
MARTYN,  J. Louis. “The Gospel Invades Philosophy”. In: HARINK, Douglas. “Paul, Philosophy, and the Theopolitical Vision: Critical Engagements with Agamben, Badiou, Zizek, and Others”. Eugene, Oregon: CASCADE Books, 2010. cap.1, pp. 13-33. 
KROEKER,  Travis. “Living 'As If Not': Messianic Becoming or the Practice of Nihilism”. In: HARINK, Douglas. “Paul, Philosophy, and the Theopolitical Vision: Critical Engagements with Agamben, Badiou, Zizek, and Others”. Eugene, Oregon: CASCADE Books, 2010. cap.2, pp. 37-63.  
ZERBE, Gordon. “On the Exigency of a Messianic Ecclesia: An Engagement with Philosophical Readers of Paul”. In: HARINK, Douglas. “Paul, Philosophy, and the Theopolitical Vision: Critical Engagements with Agamben, Badiou, Zizek, and Others”. Eugene, Oregon: CASCADE Books, 2010. cap.11, pp. 254-281.
ŽIŽEK, Slavoj. A Marioneta e o Anão – O Cristianismo entre Perversão e Subversão. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
___________. A Monstruosidade de Cristo – Paradoxo ou Dialética. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2008.
___________. em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2015.
___________. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Protestantismo e Política


Um breve comentário sobre a “matriz ideológica” do presbiterianismo brasileiro

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

Ao que parece, dois episódios recentes reacenderam o interesse pelas relações entre o “conservadorismo protestante” e as configurações políticas do protestantismo brasileiro, de maneira geral, e do presbiterianismo nacional, especificamente. O primeiro deles se relaciona à nomeação do professor e engenheiro Benedito Guimarães Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), como novo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes), principalmente após a “grande mídia” ter noticiado o fato de o novo presidente ser defensor do “design inteligente”, uma teoria de natureza religiosa que se contrapõe ao evolucionismo (ver portal de notícias G1: CRITICADO, 2020). O segundo (cf. WETERMAN, 2020), ao uso de uma igreja, em Londrina, e suas dependências, para conseguir “apoio” à campanha para a criação de um partido político.

Nessas breves linhas, trabalho exclusivamente no sentido de questionar o argumento comum, presente tanto entre muitos evangélicos como no âmbito da militância de esquerda, de que o presbiterianismo nacional sempre se vinculou a um ideário conservador “de direita” (ver, como exemplo, FILORDI, 2020). De fato, é possível compreender o “conservadorismo protestante” sob uma percepção diacrônica mais longa, resgatando, inclusive, duas importantes obras sobre o assunto (ALVES, 1979; ARAÚJO, 1985; ver, também, CAMPOS, 2008) – “Inquisição sem fogueiras”, de João Dias de Araújo, e “Protestantismo e Repressão”, de Rubem Alves.

Porém, a ausência de problematizações acerca da matriz ideológica presente no protestantismo brasileiro por quase um século, seja por desconsiderar o alinhamento ideológico do presbiterianismo missionário, no século XIX, com a “filosofia política liberal”, num “front” que incluía diversas agendas e atores (o republicanismo, o positivismo, a maçonaria, o socialismo, entre outras opções ideológicas e religiosas), seja por ignorar as lutas e contradições internas às instituições, entre o final da primeira metade do século XX e o início da segunda (cf. SILVA, 1996), tende a gerar série de imprecisões históricas com relação à identidade política do presbiterianismo nacional (ver, principalmente, CAMPOS, 2014). 

Foto: Pixabay.com
  1. Primeiramente, equivoca-se quem defende a ideia de que o presbiterianismo brasileiro sempre foi conservador. A propósito, uma rápida visita ao Diário de Ashbel Green Simonton (1833-1867) e uma breve consulta ao jornal Imprensa Evangélica seriam suficientes para indicar o grave erro dessa leitura. Destacaram-se, entre os missionários protestantes que aqui chegaram, os mais “improváveis” aliados (não católicos, judeus, maçons e livre pensadores), numa polêmica que envolveu, inicialmente, um conjunto questões para além do debate religioso propriamente dito (a secularização de cemitérios; o reconhecimento dos casamentos não celebrados por sacerdotes católicos; a questão da abolição da escravidão negra; e a implantação no país de um governo republicano). Aos poucos, consolidou-se, entre os presbiterianos, uma agenda política que visava, principalmente, aos seguintes princípios: (a) separação entre a Igreja e o Estado; (b) liberdade de crença no país; (c) ensino leigo nas escolas públicas; e (d) abolicismo (cf. CAMPOS, 2014);
  2.  Com a organização da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), em 1934, houve, sim, o engajamento de presbiterianos no movimento ecumênico, com o consequente desenvolvimento de ações de cooperação nas mais distintas áreas (Cf. CALVANI, 2015). A atuação desse organismo entre os evangélicos brasileiros resultou, entre outras coisas, em eventos como a Conferência do Nordeste, em 1962, cujo lema foi “Cristo e o processo revolucionário brasileiro” (ver BURITY, 2011). Na década de 1950, o cenário teria favorecido o surgimento de uma juventude leiga comprometida com as questões sociais da nação (cf. MENDONÇA, 2004, 2005). Não se pode esquecer, além disso, a militância de Erasmo Braga (1877-1932), presbiteriano que trabalhou com afinco pelo ecumenismo brasileiro; 
  3. Por fim, vale lembrar que a consolidação de uma hegemonia conservadora, sob Boanerges Ribeiro, não ocorreu sem tensões (ver, principalmente, PAIXÃO JR., 2000, 2014). O que eventos traumáticos como a assim chamada “inquisição sem fogueiras” e as acusações de comunismo que levaram pastores e professores de seminário às autoridades apontam para os historiadores? A intervenção nas instituições teológicas, entre elas o Seminário de Campinas, na década de 1960, encerrando, assim, a influência do então missionário norte-americano Richard Shaull (cf. CAMPOS, 2014), bem como a desarticulação dos “movimentos de juventude”, que nos “anos de chumbo” assumiram feições estritamente religiosas, devem ser compreendidas contra o pano de fundo de um cenário no mínimo favorável, ao menos até o fim dos anos 1950, de um horizonte teológico propício à reflexão e ao questionamento.
E há dezenas de artigos e textos, inclusive na Internet, sobre as questões levantadas acima, entre os quais indico o conjunto de referências ao término destas linhas.

Finalizando, SOUZA (2009) defende o argumento de que o ressurgimento de protestantes conservadores politicamente ativos (e ativistas) na arena pública brasileira após os processos de redemocratização configurou-se, no início deste século, de forma ambígua, dando origem a uma clivagem entre uma antiga forma de representação político-teológica de matriz pietista, em que importava somente a conversão religiosa dos indivíduos, e a instalação, entre parcela das lideranças evangélicas, do “modus operandi” do fundamentalismo estadunidense. Como os “evangelicais” operavam nessa lacuna, a dimensão agonística das instituições religiosas apresentava-se, sempre de forma velada, na disputa pelos sentidos políticos dos símbolos teológicos (ou mesmo dos sentidos teológicos do engajamento político). Aqui, a noção de “equidistância” funcionou como um “significante-vazio”…

No entanto, a guinada teológica “à direita”, nos últimos 20 anos, concomitantemente ao esvaziamento dos embates teológicos, internamente aos grupos, trouxe, na verdade, ao campo religioso protestante algo novo (BURITY, 2016; 2018; SOUZA, 2017), não podendo ser classificada como um fenômeno meramente reativo. Deve-se analisá-la, sincrônica ou diacronicamente, por meio da compreensão de uma rede de articulações contingentes (e não necessárias) (cf. SOUZA, 2019), num contexto religioso marcado pela “demonização”, entre parcela significativa dos evangélicos, de um inimigo a ser combatido (não apenas o “protestantismo liberal e ecumênico”, mas também e, fundamentalmente, as fantasmáticas noções de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”).


Referências

ALVES, R. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979.
ARAÚJO, J. D. Inquisição sem fogueiras. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1985.
BURITY, J., A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: ALMEIDA, R.; TONIOL, R. (Orgs.). Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos – análises conjunturais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. p. 15-64.
__________. Ainda uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia e muitas histórias pelo meio... e nas margens. In: REBLIN, I,; von SINNER, R. (Orgs.). Reforma: tradição e transformação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. p. 69-92.
__________. Fé na Revolução – Protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1961 – 1964). Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011.
CALVANI, C. E. B. Protestantismo liberal, ecumênico, revolucionário e pluralista no Brasil – um projeto que ainda não se extinguiu. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 40, p. 1896-1929, 25 dez. 2015. Disponível em; http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2015v13n40p1896/9041 >. Acesso em: 31 jan. 2020.
CAMPOS, L. S. O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre “protestantismo” e “repressão”: algumas observações 30 anos depois. Relig. soc., Rio de Janeiro , v. 28, n. 2, p. 102-137, 2008 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872008000200006&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 31 Jan. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872008000200006
_________________________. “Protestantismo de Missão no Brasil, cidadania e liberdade religiosa”, Educação e Linguagem, v. 17, n. 1, Jan-Jun, 2014, pp. 76-116. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/5493/4510 . Acesso em: 30 jan. 2020.
CRITICADO por apoiar criacionismo, novo presidente da Capes diz em nota que defende ‘liberdade de cátedra’. G1, 30 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/01/30/novo-presidente-da-capes-diz-que-vai-priorizar-solucoes-de-problemas-nacionais-em-sua-gestao.ghtml. Acesso em: 31. jan. 2020.
FILORDI, A. Tensões científicas na CAPES e a Igreja Presbiteriana do Brasil: a farsa ardente. Jornal GGN, São Paulo, 30 jan. 2020. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/tensoes-cientificas-na-capes-e-a-igreja-presbiteriana-do-brasil-a-farsa-ardente-por-alexandre-filordi/?fbclid=IwAR1UZXOGp4FdVNNQ1lsSPrKXucBZuHNYP_M8QoEsqnGVdjPkxB_1LEE3KcA Acesso em: 31. jan. 2020.
MENDONÇA, A. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista USP, n. 67, p. 48-67, 1 nov. 2005. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13455/15273 Acesso em: 30 jan. 2020.
________________. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica. In: SOUZA, B. M.; MARTINHO, L. M. (orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 59.
PAIXÃO JR., V. G. A Era do Trovão: Poder e Repressão na Igreja Presbiteriana do Brasil na Época da Ditadura Militar (1966-1978). Mestrado em Ciências da Religião. Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2000.
________________. Poder, memória e repressão: a Igreja Presbiteriana do Brasil no período da ditadura militar (1966-1978). RIDH - Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 2, n. 2, p. 20-40, jun. 2014. Disponível em: https://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/174/90 Acesso em: 30 jan. 2020.
SILVA, H. A era do furacão: história contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil: 1959-1966. 183 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1996.
SOUZA, R. Discursos e práticas fundamentalistas na Igreja Presbiteriana do Brasil (2002-2008): uma análise da pretensa posição de equidistância dos extremos fundamentalistas e liberais. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/493/1/Robson_Costa_Souza.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019.
______________. Gênero e ideologia entre evangélicos brasileiros. São Paulo: Intermeios, 2019.
 ______________. “Religião, gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file . Acesso em: 31 jan. 2020.
WETERMAN, D. Pastor “desafia” fiel a assinarem apoio a partido de Bolsonaro, em meio ao culto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 jan. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pastor-desafia-fieis-a-assinarem-apoio-a-partido-de-bolsonaro-em-meio-a-culto,70003176096 . Acesso em: 31. jan. 2020.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Cosmovisão cristã e ideologia política conservadora

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

“ (…) Pelo amor de Deus, só nenhum delírio protestante, só nenhuma “batalha contra Roma”! Nossa força reside em carregar [‘todo’ o peso daquela inquietude preparada por Deus aos seres humanos], no qual nós mesmo nem aparecemos, só estamos ‘ali’ como os que pensam e refletem. A melhor porção do paulinismo é justamente aquilo que ‘não’ é manejável nem utilizável, e a ‘melhor’ porção do protestantismo é justamente o que é ‘estranho’ ao mundo, o que ‘não’ é prático nem popular. No momento em que eles querem representar uma grandeza, um fator ou desempenhar um papel, se abrem mão deles mesmos. É só pelo fato de eles, no limite extremo da cultura, da sociedade, das cosmovisões e religiões não ousarem ser os pontos de interrogação e exclamação discretos (em verdade, os decisivos!), só pelo fato de eles pretenderem ‘ser’ algo e ‘concorrer’ com os romanos, é que são provocadas as suas crises.”
BARTH, K. A Carta aos Romanos: (segunda versão) 1922. São Leopoldo: Sinodal/ EST, 2016, p. 505.

Ao finalizar a leitura de um artigo de Cornelis van der Kooi, fiquei me perguntando se Abraham Kuyper (1837-1920) e Herman Bavinck (1854-1921) são os únicos “mentores” de uma “Teologia Pública” de matriz reformada? Ao que parece, o kuyperianismo se desenvolveu num contexto completamento diferente do nosso, articulando, a um só tempo, valores conservadores e antirrevolucionários, de um lado, e antiaristocráticos e republicanos, de outro. Era avesso aos princípios básicos da Revolução Francesa, tais como: soberania popular, anticlericalismo e negação da autoridade divina. Mas a crítica desse ideário não torna Kuyper um “restauracionista”, no sentido político do termo. Enquanto estrategista político, imputa ao Calvinismo os ganhos das conquistas sociais modernas (republicanismo, a teoria dos “contratos sociais”, a separação entre a igreja e o Estado, organização política e popular, entre outros), assumindo, assim, os “riscos” democráticos.

Por outro lado, Abraham Kuyper alimentava a crença conservadora de que a Revolução [Francesa] engendrara, sob formas políticas totalitárias, conflitos sociais pela segmentação da sociedade em classes, com a subsequente supressão das liberdades individuais , no Terror, embora a tirania estivesse travestida naquelas promessas irrealizáveis de liberdade, igualdade e fraternidade. Segundo J. Bratt, a sutileza do argumento se expressava, ainda que de maneira contraditória, na seguinte ideia: os valores revolucionários (racionalismo, individualismo e um ateísmo sem precedentes na história) como subproduto de lógicas subjacentes ao universo liberal do mundo anglo-saxão (economia de mercado e utilitarismo).

For economic conservatives (that is, neoliberals) and American evangelicals, who assume an automatic affinity between their respective positions, Kuyper’s deliverances will be bewildering at best, outrageous at worst. With intense and often heated rhetoric 'Christianity and the Social Question' denounced laissez-faire capitalism as inimical to human well-being, material or spiritual; as out of tune with Scripture and contrary to the will of God; and as the very spawn of ‘Revolution’. The ‘Revolution’ Kuyper named here was the French, but he could just as well have used ‘Industrial,’ for the principles behind and the attitudes stemming from both constituted the deeper revolution in consciousness that anti-revolutionary thinking had always faulted most. Wherein did this revolution lie for economics? In replacing the spirit of ‘Christian compassion’ with ‘the egoism of a passionate struggle for possessions,’ Kuyper said. In the abrogation of the claims of community for the sake of the sovereign individual; in the commodification of labour, which denied the image of God and the rightful claims of a brother; in the idolization of the supposedly free market, which deprived the weak of their necessary protections, licensed the strong in their manipulations and proclaimed the consequences to be the inevitable workings of natural law. In the advertising that inculcated a covetous consumerism as the norm of human happiness. The French Revolution, but as Kuyper repeated throughout his work, also the ‘utilitarian,’ the ‘laissez-faire’ and the ‘Manchester’ schools that were the philosophical apologists for industrial capitalism (...) (Bratt, 2014, p.7).
A partir da segunda metade do século XIX, os aspectos público e político dessa teologia neocalvinista materializaram-se, em países como a Holanda, tanto na tentativa de “recristianizar” a sociedade por meio da reinvenção de um ideal de nação fundado em valores calvinistas, opondo-se a um ideário liberal que procurava banir a religião do espaço público, quanto na moderna apropriação política de noções teológicas, tais como: responsabilidade pessoal, sacerdócio universal e resistência ao Estado pela lógica da “soberania das esferas”. Era um “mito fundante” em todos os sentidos. Sob um argumento de estabilidade e ordem, a teologia reformada se apresentava não apenas como a fonte do constitucionalismo e das liberdades individuais, mas também a via revolucionária de fato: The result was an argument for stability and order from a narrative of resistance, rebellion and revolution – good, Christian revolution (Ibidem, p. 10).

Foto: Pixabay.com


De João Calvino a Théodore Béza, passando pelos huguenotes, a resistência constitucional aos tiranos encontrava, assim, no Calvinismo uma fonte moral de legitimação política. Enquanto forma de Teologia Pública, essa “reapropriação” política da teologia de Calvino sinalizava, entre outras coisas, para princípios contraditórios e antagônicos como: igualdade política para todas as convicções religiosas (pluralismo), distinção entre os vários domínios da vida, a noção de um Estado que se subtrai à influência da Igreja (e vice e versa), sem que isso se traduza em “laicismo”, associativismo e a visão de uma sociedade inspirada em valores cristãos (e reformados), paralelamente ao pleno envolvimento dos crentes na cultura moderna. Da interação entre igualdade e diferença, a igreja se desenvolveria, aqui, como uma comunidade pluriforme onde todos são iguais perante de Deus: homens e mulheres.

Ao apostar no Calvinismo como fonte de mobilização e responsabilidade pessoal, isto é, no engajamento pessoal dos cristãos em questões que a todos concernem (saúde, educação e cuidado dos pobres), ajudou a difundir uma forma de espiritualidade conectada a uma visão abrangente de mundo: uma “graça comum” que se estende a todos os reinos da cultura. Nessa perspectiva, o neocalvinismo percebeu na segmentação da sociedade segundo linhas ideológicas bastante específicas uma forma de resistência religiosa aos avanços da secularização, ignorando o poder das forças materiais vis-à-vis às ideias.

Sem demagogia, fiquei me perguntando, novamente, após essas breves considerações, pela relevância dessa Teologia à compreensão do fenômeno religioso brasileiro..... O neo-calvinismo kuyperiano se configuraria, aqui, como uma apropriação política de temáticas religiosas ou a partir de uma religiosização politicamente conservadora do debate público? Em que medida colabora para reforçar (ou mesmo “desconstruir”) aquelas formas de representação vinculadas ao imaginário do assim chamado “mundo evangélico” contemporâneo? De qualquer forma, o “kuyperianismo” é uma construção teológico-política do século XIX, distanciando-se, inclusive, dos ensinamentos do próprio Calvino. Se, de um lado, a ideia de “cosmovisão cristã” constitui-se num subproduto ideológico dessa “formação discursiva”, ganhando, no final do século XX e início deste século, por razões a serem pesquisadas, hegemonia entre muitas lideranças evangélicas brasileiras, de outro, as formas confessionais (e ortodoxas) do Calvinismo não se confundem, necessariamente, com esses vetores político-ideológicos, posto que são anteriores a eles. Nessa perspectiva, o Calvinismo e o Iluminismo somente se apresentam como “forças sociais contraditórias” quando analisadas sob essa matriz ideológica conservadora. Como demonstrei num post anterior, há formas ilustradas de Calvinismo, inclusive na Holanda.

Referências
BRATT, J. “Abraham Kuyper and the French Revolution”. In: Harinck, G; Eglinton, James. “Neo-Calvinism and the French Revolution”. London, New York: Bloomsbury T&T Clark, 2014. cap. 1, p. 1-12.
VAN DER KOOI, C. “Calvin, Modern Calvinism, and Civil Society: The Appropriation of a Heritage, with Particular Reference to the Low Countries”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 13, pp. 267-281.

Calvino e sua influência no mundo Ocidental

“ Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”, de Fr...