Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
A Reforma é diversificada tanto nas suas origens quanto na evolução de seu pensamento. No que diz respeito ao calvinismo, não há, inclusive, consenso sobre o cerne da identidade reformada (As Institutas? Confissão de Westminster? Outras confissões reformadas? Os Cânones de Dort? Os 5 “solas”?) Em si mesma, essa diversidade de percepções não é ruim. Ao longo dos séculos, a frágil substância da “catolicidade protestante” fomentou a construção de uma comunidade fraterna e democrática, em respeito à diversidade.
Porém, o pensamento reformado, ao romper com a grande síntese medieval (escolástica), tornou-se vulnerável às ideologias em todas as suas manifestações históricas. Como a leitura do Texto Sagrado deixa de ser mediada pela Igreja-instituição, a interpretação dada pelo fiel constitui-se, muitas vezes, num mero “epifenômeno” da realidade social, isto é, justificações racionais “a posteriori” de crenças seculares. “Fé e ideologia”, nos termos de um texto recentemente publicado por um amigo.
Aqui,
não podemos ignorar o fato de que muitos cristãos usaram a Bíblia
para legitimar instituições perversas, tais como o patriarcado, a
escravidão e o apartheid. Ainda hoje, grupos inteiros insistem em
excluir as mulheres das estruturas de poder e de produção simbólica
de suas comunidades religiosas.
No
aforismo 382 de “Humano, demasiado humano (II)”, o filósofo
Friedrich Nietzsche (1844-1900) sugere que “o espírito do tempo
oferece resistência a si mesmo, carrega a si mesmo”. Se, de um
lado, o cristão de Lutero, “um senhor libérrimo sobre tudo, a
ninguém sujeito”, teve condições de celebrar sua relativa
independência com relação à autoridade eclesial, de outro,
tornou-se rapidamente refém da multidão.
No
século XVII, formulações doutrinárias supostamente baseadas na
correta interpretação de uma única e mesma fonte de revelação,
percebidas como expressão da “verdade revelada por Deus”,
apresentaram-se como as lentes pelas quais o texto era lido (e
compreendido) pelas comunidades protestante. Assim nasceu a
“escolástica protestante”.
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Ao
perceber a instrumentalização religiosa do Sagrado, sob as lógicas
burocratizadas da Igreja, um pietista como S. Kierkegaard
(1813-1855), em sua luta contra o cristianismo institucionalizado,
ousou sugerir o seguinte: “Uma reforma que colocasse a Bíblia de
lado hoje teria tanto valor quanto a de Lutero, que colocou o papa de
lado”.
Certo
ou não, um “ethos” privado não confessional generalizado,
associado cada vez mais à ideia de tolerância, cristaliza-se, em
termos políticos, no ideário liberal, “estruturando” desde a
era pós-iluminista nossas relações com o Sagrado. No máximo,
pode-se falar, na atualidade, de uma congregação de sujeitos
irmanados por uma mesma disposição ética e espiritual.
Portanto,
essa noção contemporânea (e pseudoteológica) de “cosmovisão
reformada” não apenas se constitui num erro de compreensão do
processo histórico, como também só se sustenta atualmente com o
apoio fantasmático de supostos inimigos, tais como “marxismo
cultural”, “ideologia de gênero”, “comunismo” etc. Nesse
sentido, implica numa fetichização contemporânea da “crença”,
que passa a funcionar como esse grande “Outro virtual” que crê,
que compartilha os mesmos pressupostos religiosos, mesmo que nenhum
indivíduo empírico creia, nenhum cristão compartilhe o mesmo
conjunto de percepções acerca do mundo, da sociedade como um todo,
para irmos ao extremo. Ainda assim, cada um deles, individualmente ou
coletivamente, pressupõe que a “comunidade de fé” assim crê, e
esse pressuposto basta a si próprio. Estaríamos aqui, nos termos de
Slavoj Žižek, diante daquela “consciência” que se pensa
lúcida, mas que está terrivelmente presa ao autoengano?
Referências
BURITY,
Joanildo.
Ainda
uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia
e muitas histórias pelo meio… e nas margens.
In: REBLIN,
Iuri; von SINNER, Rudolf
(Orgs.). Reforma:
tradição e transformação.
São
Leopoldo:
Sinodal;
EST,
2016.
p.
69-92.
GOUVÊA, Ricardo. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a
Kierkegaard. São Paulo: Editora Novo Século, 2000.LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ŽIŽEK,
Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo
dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.