Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
"A soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos. Quanto ao primeiro, deve-se mostrar, não somente que há um só Deus, a quem é necessário que todos prestem honra e adorem, mas também que Ele é a fonte de toda verdade, sabedoria, bondade, justiça, juízo, misericórdia, poder e santidade, para que dele aprendamos a ouvir e a esperar todas as coisas. Deve-se, pois, reconhecer, com louvor e ação de graças, que tudo dele procede. Quanto ao segundo, revela a nossa ignorância, miséria e maldade, induz-nos à humildade, à não confiança própria e ao desprezo de nós mesmos; inflama em nós o desejo de buscar a Deus, certos de que nele repousa todo o nosso bem, do qual nos vemos vazios e desnudos". João Calvino
Uma
leitura atenta do primeiro volume das Institutas de Calvino é
suficiente para mostrar que a grande ênfase teológica do
cristianismo reformado não reside na ideia de predestinação, mas,
sim, na correlação teológica
entre
miséria humana e majestade divina, no
contexto de uma tensão dialética entre o conhecimento de Deus e o
conhecimento de nós mesmos. Segundo a percepção teológica de
Calvino, o Deus da tradição judaico-cristã, o antideus das
Escrituras, que “odeia oferendas queimadas e atos de arrogante
farisaísmo” (cf.
Eagleton, 2011),
distingue-se de todos os ídolos e dos deuses do politeísmo. Numa importante obra de Teologia Sistemática, P. Tillich (2005, p. 77) afirma que:
Quando Calvino, nas sentenças iniciais de suas Institutas, correlaciona nosso conhecimento de Deus com nosso conhecimento do ser humano, não fala da doutrina do ser humano como tal nem da doutrina de Deus como tal. Ele fala da miséria do ser humano, que dá a base existencial para sua compreensão da glória de Deus. E fala da glória de Deus, que dá a base essencial para a compreensão que o ser humano tem de sua miséria. O ser humano como existente, representando a existência em geral e formulando a pergunta implícita em sua existência, é um lado da correlação cognitiva de que fala Calvino, enquanto que o outro lado é a majestade divina. Nas frases iniciais de seu sistema teológico, Calvino expressa a essência do método de correlação (TILLICH, 2015, p. 77).
Ao
tratar do conhecimento de Deus pelo prisma de sua majestade, o
reformador de Genebra não apenas faz uma confissão tácita de que
há um senso da Divindade (“sensus
divinitatis”)
gravado no coração de todos os seres humanos, como também encontra
numa suposta semente corrompida de religião (“semen
religionis”)
a raiz de toda forma idolátrica de culto e de dominação religiosa
por parte daqueles que forjaram elementos
de
natureza
religiosa
para impor medo aos demais.
Calvino
também procura estabelecer uma fonte segura de conhecimento
religioso ao afirmar os limites da assim
chamada “revelação
natural”,
ainda que discernindo um conhecimento geral de Deus por toda a
criação – na humanidade, na natureza e no processo histórico em
si. Sua tese central era a seguinte: somente nas Escrituras Sagradas,
no auxílio do Espírito, a Palavra de Deus se faz presente de forma plena.
Calvino e o método da correlação |
No
nível da cultura, a Reforma do século XVI deve ser compreendida à luz dos desdobramentos ocorridos naquela fase
inicial de transição entre o universo pré-burguês, “a
época em
que o além era tudo” (Weber),
e
a modernidade ocidental. Embora a
teologia calvinista tenha se constituído como um componente importante
daquele
processo de longa duração instaurado pelo monoteísmo judaico na
Era Axial e levado a cabo pelo protestantismo puritano a partir do
final do século XVII da Era Cristã,
o
desencantamento
do mundo,
se
ainda tivermos de insistir
numa
terminologia sociológica
de corte
weberiano,
Calvino não foi capaz de fazer aquela
“desconstrução” da Alteridade radical, considerando os limites
de sua compreensão religiosa de mundo.
Na
verdade, eu ainda teria três rápidas considerações a fazer acerca
do assunto.
Concordando
com um teólogo presbiteriano, não haverá algo de feuerbachiano
nessa noção calvinista de correlação? Os
nomes de Deus não são os nossos, sublimados? Em
segundo lugar, a
verdade é que
crença calvinista
num
Deus ontoteológico
que
se manifestava, direta
ou indiretamente,
no “teatro da criação”, não conseguiu
prever
o longo e
moderno processo
de secularização estrutural pelo
qual
passou
nossa
cultura
(nem
sua
contrapartida,
a subjetivação
dos códigos de crenças...).
Finalmente,
uma releitura teológica do dogma da Encarnação pode
perfeitamente deslocar o
debate acerca de nossa
percepção
da teologia cristã,
apontando
para o fato de
que a “nossa experiência radical da separação com Deus é
precisamente o que nos une com Ele” (Žižek,
2006).
Em termos teológicos,
Deus
deixa
de fazer “um” consigo próprio ao
“interiorizar”
a distância radical que nos separa d’Ele, isto
é, na
sua cisão radical, (auto-)abandonou-se. Aqui,
a “alienação do ser humano em relação a Deus” e a “alienação de Deus
com relação a si mesmo”, sob uma “dupla kenosis”, coincidem com o pleno
envolvimento divino na história da salvação, na qual é decidido o
destino do próprio Deus: o “Deus que sofre” se sente abandonado pelo Deus que reside num Além inacessível e transcendente (Mateus 27:46), tornando-se, na cruz, irmão de todos os abandonados da história (cf. Jürgen Moltmann).
Na prisão nazista, Dietrich Bonhoeffer, mártir protestante, escreveu a seguinte confissão: “Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda” (Bonhoeffer, 2003, p. 488). Complexificando as teses da secularização, teve a coragem de afirmar que “perante e com Deus vivemos sem Deus”. O teórico esloveno S. Žižek continua a propósito do “conteúdo da revelação”:
Na prisão nazista, Dietrich Bonhoeffer, mártir protestante, escreveu a seguinte confissão: “Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda” (Bonhoeffer, 2003, p. 488). Complexificando as teses da secularização, teve a coragem de afirmar que “perante e com Deus vivemos sem Deus”. O teórico esloveno S. Žižek continua a propósito do “conteúdo da revelação”:
Não desvelam todas as religiões um mistério, através dos profetas que transmitem a mensagem divina aos homens? Mesmo os que sublinham o carácter impenetrável do deus obscuro, dão a entender que existe um segredo que resiste à revelação e, para os gnósticos, esse mistério é revelado a alguns eleitos durante uma cerimônia iniciática. Não deixa de ser significativo que as reinscrições gnósticas do cristianismo insistam precisamente na presença de uma mensagem escondida deste tipo, a ser decifrada no texto oficial cristão. Portanto, o que é revelado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mas, mais precisamente, o facto de não haver nada, nenhum segredo a revelar para lá do seu conteúdo (ŽIŽEK, 2006, p. 156).
A
idolatria suprema não
consistiria, nesse sentido,
na
crença
velada
de
que, escondida
atrás
das
máscaras,
existe uma
ordem positiva (espectral)
mais
elevada e
sublime?
Em
termos
derridianos,
não
seria possível dizer, entre outras coisas, que só os ateus oram
verdadeiramente? — precisamente porque se recusam a dirigir-se a
Deus como entidade positiva;
e, como sugere S. Žižek
de
maneira provocativa, não são os teólogos os únicos
verdadeiros ateus?
Nessa perspectiva, a teologia contemporânea pode insistir, de maneira profundamente ortodoxa, porém pouco convincente na atualidade, na incognoscibilidade dos desígnios de um monarca celestial que, desde a eternidade, resolveu “decretar” tudo a uma distância segura ou simplesmente pode, a partir dos “paradoxa” nos quais se manifesta o mistério da salvação, redescobrir o sentido absurdamente radical e protestante de “sola gratia”. Concordando com um argumento zizekiano, a noção teológica de “graça”, sob uma perspectiva fundamentalmente materialista, opõe-se à ideia puritana de Providência, isto é, à ideia de um equilíbrio fundamental entre as virtudes e a felicidade, supostamente garantido por uma divindade. “Graça” (do latim, gratia), na verdade, deixa essa relação virtualmente entregue ao acaso.
Nessa perspectiva, a teologia contemporânea pode insistir, de maneira profundamente ortodoxa, porém pouco convincente na atualidade, na incognoscibilidade dos desígnios de um monarca celestial que, desde a eternidade, resolveu “decretar” tudo a uma distância segura ou simplesmente pode, a partir dos “paradoxa” nos quais se manifesta o mistério da salvação, redescobrir o sentido absurdamente radical e protestante de “sola gratia”. Concordando com um argumento zizekiano, a noção teológica de “graça”, sob uma perspectiva fundamentalmente materialista, opõe-se à ideia puritana de Providência, isto é, à ideia de um equilíbrio fundamental entre as virtudes e a felicidade, supostamente garantido por uma divindade. “Graça” (do latim, gratia), na verdade, deixa essa relação virtualmente entregue ao acaso.
Referências
Bonhoeffer,
D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na
prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.
Calvino,
João. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e
II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
___________.
As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa.
São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 1. 240p.
Eagleton,
Terry. O debate sobre Deus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
Tillich, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014.
Žižek,
Slavoj. A Marioneta e o Anão – O Cristianismo o entre Perversão
e Subversão. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
___________.
Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.