quinta-feira, 4 de julho de 2019

João Calvino e o método de correlação

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
 
"A soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos. Quanto ao primeiro, deve-se mostrar, não somente que há um só Deus, a quem é necessário que todos prestem honra e adorem, mas também que Ele é a fonte de toda verdade, sabedoria, bondade, justiça, juízo, misericórdia, poder e santidade, para que dele aprendamos a ouvir e a esperar todas as coisas. Deve-se, pois, reconhecer, com louvor e ação de graças, que tudo dele procede. Quanto ao segundo, revela a nossa ignorância, miséria e maldade, induz-nos à humildade, à não confiança própria e ao desprezo de nós mesmos; inflama em nós o desejo de buscar a Deus, certos de que nele repousa todo o nosso bem, do qual nos vemos vazios e desnudos". João Calvino

Uma leitura atenta do primeiro volume das Institutas de Calvino é suficiente para mostrar que a grande ênfase teológica do cristianismo reformado não reside na ideia de predestinação, mas, sim, na correlação teológica entre miséria humana e majestade divina, no contexto de uma tensão dialética entre o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Segundo a percepção teológica de Calvino, o Deus da tradição judaico-cristã, o antideus das Escrituras, que “odeia oferendas queimadas e atos de arrogante farisaísmo” (cf. Eagleton, 2011), distingue-se de todos os ídolos e dos deuses do politeísmo. Numa importante obra de Teologia Sistemática, P. Tillich (2005, p. 77) afirma que:
Quando Calvino, nas sentenças iniciais de suas Institutas, correlaciona nosso conhecimento de Deus com nosso conhecimento do ser humano, não fala da doutrina do ser humano como tal nem da doutrina de Deus como tal. Ele fala da miséria do ser humano, que dá a base existencial para sua compreensão da glória de Deus. E fala da glória de Deus, que dá a base essencial para a compreensão que o ser humano tem de sua miséria. O ser humano como existente, representando a existência em geral e formulando a pergunta implícita em sua existência, é um lado da correlação cognitiva de que fala Calvino, enquanto que o outro lado é a majestade divina. Nas frases iniciais de seu sistema teológico, Calvino expressa a essência do método de correlação (TILLICH, 2015, p. 77).

Ao tratar do conhecimento de Deus pelo prisma de sua majestade, o reformador de Genebra não apenas faz uma confissão tácita de que há um senso da Divindade (“sensus divinitatis”) gravado no coração de todos os seres humanos, como também encontra numa suposta semente corrompida de religião (“semen religionis”) a raiz de toda forma idolátrica de culto e de dominação religiosa por parte daqueles que forjaram elementos de natureza religiosa para impor medo aos demais.

Calvino também procura estabelecer uma fonte segura de conhecimento religioso ao afirmar os limites da assim chamada revelação natural”, ainda que discernindo um conhecimento geral de Deus por toda a criação – na humanidade, na natureza e no processo histórico em si. Sua tese central era a seguinte: somente nas Escrituras Sagradas, no auxílio do Espírito, a Palavra de Deus se faz presente de forma plena.

Calvino e o método da correlação


No nível da cultura, a Reforma do século XVI deve ser compreendida à luz dos desdobramentos ocorridos naquela fase inicial de transição entre o universo pré-burguês, “a época em que o além era tudo” (Weber), e a modernidade ocidental. Embora a teologia calvinista tenha se constituído como um componente importante daquele processo de longa duração instaurado pelo monoteísmo judaico na Era Axial e levado a cabo pelo protestantismo puritano a partir do final do século XVII da Era Cristã, o desencantamento do mundo, se ainda tivermos de insistir numa terminologia sociológica de corte weberiano, Calvino não foi capaz de fazer aquela “desconstrução” da Alteridade radical, considerando os limites de sua compreensão religiosa de mundo.

Na verdade, eu ainda teria três rápidas considerações a fazer acerca do assunto. Concordando com um teólogo presbiteriano, não haverá algo de feuerbachiano nessa noção calvinista de correlação? Os nomes de Deus não são os nossos, sublimados? Em segundo lugar, a verdade é que crença calvinista num Deus ontoteológico que se manifestava, direta ou indiretamente, no “teatro da criação”, não conseguiu prever o longo e moderno processo de secularização estrutural pelo qual passou nossa cultura (nem sua contrapartida, a subjetivação dos códigos de crenças...).

Finalmente, uma releitura teológica do dogma da Encarnação pode perfeitamente deslocar o debate acerca de nossa percepção da teologia cristã, apontando para o fato de que a “nossa experiência radical da separação com Deus é precisamente o que nos une com Ele” (Žižek, 2006). Em termos teológicos, Deus deixa de fazer “um” consigo próprio ao “interiorizar” a distância radical que nos separa d’Ele, isto é, na sua cisão radical, (auto-)abandonou-se. Aqui, a “alienação do ser humano em relação a Deus” e a “alienação de Deus com relação a si mesmo”, sob uma “dupla kenosis”, coincidem com o pleno envolvimento divino na história da salvação, na qual é decidido o destino do próprio Deus: o “Deus que sofre” se sente abandonado pelo Deus que reside num Além inacessível e transcendente (Mateus 27:46), tornando-se, na cruz, irmão de todos os abandonados da história (cf. Jürgen Moltmann).

Na prisão nazista, Dietrich Bonhoeffer, mártir protestante, escreveu a seguinte confissão: “Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda” (Bonhoeffer, 2003, p. 488). Complexificando as teses da secularização, teve a coragem de afirmar que “perante e com Deus vivemos sem Deus”. O teórico esloveno S. Žižek continua a propósito do “conteúdo da revelação”:
Não desvelam todas as religiões um mistério, através dos profetas que transmitem a mensagem divina aos homens? Mesmo os que sublinham o carácter impenetrável do deus obscuro, dão a entender que existe um segredo que resiste à revelação e, para os gnósticos, esse mistério é revelado a alguns eleitos durante uma cerimônia iniciática. Não deixa de ser significativo que as reinscrições gnósticas do cristianismo insistam precisamente na presença de uma mensagem escondida deste tipo, a ser decifrada no texto oficial cristão. Portanto, o que é revelado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mas, mais precisamente, o facto de não haver nada, nenhum segredo a revelar para lá do seu conteúdo (ŽIŽEK, 2006, p. 156).
A idolatria suprema não consistiria, nesse sentido, na crença velada de que, escondida atrás das máscaras, existe uma ordem positiva (espectral) mais elevada e sublime? Em termos derridianos, não seria possível dizer, entre outras coisas, que só os ateus oram verdadeiramente? — precisamente porque se recusam a dirigir-se a Deus como entidade positiva; e, como sugere S. Žižek de maneira provocativa, não são os teólogos os únicos verdadeiros ateus?

Nessa perspectiva, a teologia contemporânea pode insistir, de maneira profundamente ortodoxa, porém pouco convincente na atualidade, na incognoscibilidade dos desígnios de um monarca celestial que, desde a eternidade, resolveu “decretar” tudo a uma distância segura ou simplesmente pode, a partir dos “paradoxa” nos quais se manifesta o mistério da salvação, redescobrir o sentido absurdamente radical e protestante de “sola gratia”. Concordando com um argumento zizekiano, a noção teológica de “graça”, sob uma perspectiva fundamentalmente materialista, opõe-se à ideia puritana de Providência, isto é, à ideia de um equilíbrio fundamental entre as virtudes e a felicidade, supostamente garantido por uma divindade. “Graça” (do latim, gratia), na verdade, deixa essa relação virtualmente entregue ao acaso.

Referências

Bonhoeffer, D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.
Calvino, João. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
___________. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 1. 240p.
Eagleton, Terry. O debate sobre Deus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Tillich, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014.
Žižek, Slavoj. A Marioneta e o Anão – O Cristianismo o entre Perversão e Subversão. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
___________. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.

Calvino e sua influência no mundo Ocidental

“ Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”, de Fr...