Uma releitura teológica da catolicidade reformada
Há duas décadas, quando me debrucei pela primeira vez sobre a figura de João Calvino em minha monografia de graduação do então STPRJ, a imagem que se impunha era a de um reformador austero, zeloso da ortodoxia, comprometido com a liberdade cristã como ruptura com os mecanismos de controle e opressão da Igreja Romana. Calvino aparecia, então, como símbolo da resistência protestante à autoridade hierárquica, defensor da centralidade da Escritura e da autonomia da consciência diante da mediação eclesiástica. Essa leitura, embora sustentada por elementos teologicamente consistentes, estava em diálogo com uma tradição de recepção marcada pelo anticatolicismo estrutural do protestantismo de missão — especialmente no contexto brasileiro — e pela valorização da Reforma como gesto de emancipação moral e institucional.
A releitura aqui proposta, construída em diálogo com o ensaio de Diarmaid MacCulloch no volume Calvin and His Influence, 1509–2009, representa um deslocamento hermenêutico significativo em relação àquela perspectiva inicial. Em vez de um Calvino essencialmente oposto à tradição católica, emerge uma figura profundamente enraizada nela, cujas contribuições teológicas dialogam diretamente com os quatro grandes Doutores Latinos da Igreja — Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno. Longe de um símbolo de cisão, Calvino é apresentado como reformador da continuidade, alguém que aspirava à catolicidade, à ortodoxia trinitária e à fidelidade patrística. Essa mudança de ênfase não nega o papel de Calvino na Reforma, mas permite compreendê-lo de modo mais complexo e inserido na história maior da tradição cristã ocidental.
A proposta de considerar João Calvino como um possível “quinto Doutor Latino da Igreja” não constitui uma simples provocação anacrônica nem uma concessão ecumênica. Trata-se, antes, de uma tese historicamente fundamentada e teologicamente densa que busca reavaliar a estatura de Calvino à luz de seu enraizamento na tradição ocidental — especialmente nos eixos estruturantes da catolicidade doutrinária, da ortodoxia cristológica e trinitária, da autoridade patrística e da formação eclesial duradoura. É nesse horizonte que Diarmaid MacCulloch propõe a inclusão simbólica de Calvino ao lado de Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno, não como ruptura, mas como continuidade crítica no seio da tradição latina.
A tese de MacCulloch afirma que Calvino almejou — e em larga medida realizou — uma exposição da doutrina cristã com escopo e profundidade comparáveis às dos grandes doutores da Igreja antiga. Sua teologia, especialmente nas sucessivas edições das Institutas da Religião Cristã (1559), revela-se uma síntese sistemática, pastoral e doutrinal que retoma, com extraordinária fidelidade, os fundamentos agostinianos da tradição ocidental. A centralidade da graça, a doutrina da predestinação, a análise rigorosa da depravação humana e a função pedagógica da Lei configuram, em Calvino, uma atualização crítica do legado de Hipona. Sua adesão aos termos do Concílio de Calcedônia e sua defesa inequívoca da Trindade, sobretudo após as acusações de triteísmo em sua juventude, demonstram sua inserção consciente e positiva no consenso dogmático da Igreja antiga.
É crucial, nesse ponto, recuperar um dado de formação que frequentemente passa despercebido: Calvino estudou no Collège de Montaigu, em Paris — centro de formação marcado pela teologia escolástica tardia, com forte presença do tomismo e do nominalismo. Ainda que esse ambiente tenha influenciado sua juventude, Calvino não trilhou o percurso acadêmico tradicional da teologia universitária. Sua formação principal deu-se no Direito e nas letras clássicas, especialmente sob o influxo do humanismo renascentista. Essa trajetória lhe conferiu recursos filológicos e argumentativos que, mais tarde, resultariam numa teologia distinta da erudição escolástica: menos especulativa, mais bíblica; menos disputacional, mais pastoral. Sua crítica à escolástica, como observa MacCulloch, não é iconoclasta, mas seletiva — Calvino “recicla minério das escórias” medievais para forjar uma teologia enraizada na Escritura e nos Padres, especialmente em Bernardo de Claraval, cuja espiritualidade monástica ele valorizava.
Sua eclesiologia também exprime essa tensão entre reforma e continuidade. Calvino não via a Igreja medieval como apóstata irreversível, mas como uma instituição corrompida, ainda assim preservada em certos elementos essenciais, como o batismo infantil. Essa teologia da aliança, que reconhece a permanência da ação divina mesmo sob estruturas degradadas, lhe permite reivindicar a Reforma como restauração (e não como cisma). A comunidade eclesial de Genebra — com sua liturgia, sua disciplina e sua academia — é concebida como a expressão visível da Igreja una, santa, católica e apostólica. Por essa razão, Calvino rejeitava o rótulo “calvinismo”, preferindo ver sua obra como fiel à tradição cristã universal. Para MacCulloch, essa recusa revela o ethos católico de sua teologia: não uma nova igreja, mas a reforma da Igreja.
Também no plano litúrgico, sua contribuição é notável. Embora não tenha composto os salmos genebrinos, Calvino foi responsável pela estruturação de um culto centrado na Palavra e no canto congregacional. A salmodia em Genebra não era mero adorno estético, mas instrumento de formação espiritual e ordenamento afetivo da comunidade. O reformador via-se, por vezes, como um novo Davi: não o rei guerreiro, mas o poeta-sacerdote cuja missão era harmonizar doutrina, oração e louvor. Sua teologia da música e da adoração é, assim, expressão de uma eclesiologia integral que busca conformar o coração da comunidade à Palavra de Deus.
No plano estilístico, Calvino distingue-se por uma prosa clara, concisa e acessível, em contraste com a prolixidade da escolástica tardia. Essa sobriedade argumentativa amplia a recepção de sua obra e permite sua adaptação a diferentes contextos pastorais. Longe de indicar superficialidade, sua concisão é fruto de rigor lógico e de uma concepção profundamente pedagógica da teologia. Assim como os doutores antigos escreviam para instruir a Igreja, Calvino escreve para formar, corrigir e edificar — não apenas para disputar.
A proposta de MacCulloch, portanto, fundamenta-se na convergência de diversos elementos: fidelidade patrística, ortodoxia dogmática, capacidade sistemática, impacto litúrgico, produção pastoral e legado duradouro. Calvino aparece, nesse quadro, não como fundador de uma nova tradição, mas como restaurador da tradição antiga. Seu projeto reformador não visava abolir o passado, mas resgatar a verdade católica nele obscurecida. A sua figura, lida sob essa ótica, torna-se não um divisor, mas um elo entre a Igreja antiga e a Igreja reformada.
Essa releitura adquire valor crítico particular no contexto brasileiro, onde o calvinismo — em especial aquele derivado de missões presbiterianas do século XIX — tem se constituído historicamente como identidade por negação. Marcado por um anticatolicismo sistemático e muitas vezes culturalmente enraizado, o calvinismo brasileiro tende a reduzir Calvino a uma caricatura de opositor da Igreja Romana, esvaziando a densidade católica de sua teologia. Essa postura resulta não apenas de disputas doutrinárias, mas de um projeto eclesiológico que construiu a própria identidade reformada em oposição à hegemonia católica no país. E, segundo Rubem Alves, o efeito dessa construção é uma alienação da própria tradição: ao rejeitar o passado comum, muitos calvinistas brasileiros negam precisamente aquilo que em Calvino mais se aproxima da grande tradição da Igreja.
A proposta de MacCulloch, portanto, tem potência desconstrutiva e reconstrutiva. Ao reinserir Calvino no cânone dos grandes mestres da fé cristã ocidental, ela oferece ao protestantismo brasileiro a oportunidade de rever sua autocompreensão — não como herdeiro do cisma, mas como interlocutor crítico da tradição. Longe de diluir as diferenças teológicas entre Reforma e catolicismo romano, essa releitura amplia o horizonte de diálogo e complexifica a gramática eclesial. Em lugar de um calvinismo ressentido, exclusivista e identitário, ela propõe um calvinismo consciente de sua origem, maduro em sua crítica e aberto à catolicidade como vocação teológica.
Reconhecer Calvino como um “Doutor da Igreja”, ainda que simbolicamente, não é trair a Reforma — é, ao contrário, restaurar sua ambição mais profunda: ser fiel à verdade do Evangelho na comunhão dos santos que atravessa os séculos. Esse exercício de releitura, ao confrontar percepções formadas há quase vinte anos com os desenvolvimentos interpretativos mais recentes, revela não apenas novas possibilidades hermenêuticas, mas também um processo pessoal de amadurecimento teológico, crítico e histórico diante das tradições que herdamos e das que, por fidelidade ao próprio Evangelho, somos chamados a reconstruir.
Referências
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982.
MACCULLOCH, Diarmaid. Calvin: fifth Latin doctor of the church. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (ed.). Calvin and his influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 3–24.
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