(“Tornou-se difícil dizer Deus; e a oração, um silêncio inquieto”)
Esta breve reflexão nasce da crise, não como lamento, mas como forma teológica. Nasce da experiência de desenraizamento que muitos têm vivido: a percepção de que, em muitos contextos, a identidade “evangélica” passou a conflitar com a radicalidade do Evangelho que anuncia. Não se trata de uma deserção moral, mas de uma ruptura operada pela confrontação com o escândalo da fé: a constatação de que Deus não habita os templos que construímos para abrigá-lo, e que sua Palavra, quando de fato irrompe, aparece como juízo — também e sobretudo CONTRA a religião. A crise da fé, nesse sentido, não é seu oposto: é seu caminho. Assim como em Kierkegaard e Barth, é apenas pela negação das formas religiosas que a possibilidade da fé se oferece, não como certeza, mas como abismo. É a partir dessa ferida que se propõe aqui uma leitura: teológica, crítica e contemporânea, sobre o paradoxo de crer fora dos portões da religião.
A relação entre Søren Kierkegaard e Karl Barth é marcada por uma afinidade crítica diante da religião instituída (e por uma ênfase comum no caráter escandaloso da revelação cristã). Ambos partem da constatação de que há uma ruptura intransponível entre Deus e o ser humano — uma diferença qualitativa infinita que desautoriza qualquer tentativa de assimilação teológica por meio de categorias éticas, psicológicas ou culturais. No pensamento kierkegaardiano, essa ruptura se expressa na figura do paradoxo, do escândalo e da decisão subjetiva diante do absoluto. Barth, ao retomar essa tradição na “Carta aos Romanos”, desloca o centro da crítica do sujeito psicológico para a Palavra de Deus como evento que irrompe desde fora — ab extra — julgando tanto o mundo secular quanto a própria religião. Assim como Kierkegaard escreve contra a cristandade burguesa de sua época, Barth, em sua teologia da crise, escreve contra a complacência liberal da teologia do século XIX, denunciando-a como idolatria antropocêntrica travestida de fé.
Essa interlocução não é apenas conceitual, mas textual e exegética. Em Romanos 1,1, ao comentar a autoidentificação de Paulo como “servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo” (Παῦλος δοῦλος Χριστοῦ Ἰησοῦ, κλητὸς ἀπόστολος), Barth recorre à linguagem kierkegaardiana do paradoxo para sustentar que o chamado apostólico não se explica por categorias psicológicas, sociais ou religiosas. A autoridade de Paulo não decorre de sua biografia ou de seu contexto, mas da irrupção da Palavra divina que o torna, em Barth, uma “exceção impossível” — linguagem que remete diretamente à noção kierkegaardiana de salto qualitativo e ruptura com a normatividade. Já em Romanos 12,3 (μὴ ὑπερφρονεῖν… ἀλλὰ φρονεῖν εἰς τὸ σωφρονεῖν), ao tratar da humildade cristã como resposta à graça, Barth cita Kierkegaard para descrever a “grande perturbação” operada pela fé: um movimento interior que desfaz as garantias do eu e o lança diante de um outro absoluto. Nessa passagem, o amor de Deus é descrito, com Kierkegaard, como um “EGO infinito” cuja presença desestabiliza toda pretensão de autocentralidade, inclusive a religiosa. Em ambos os casos, Barth mobiliza Kierkegaard para enfatizar que a verdade da fé jamais coincide com suas mediações institucionais ou culturais, mas se anuncia como ruptura — e como juízo.
Nesse horizonte, a instrumentalização política da religião por líderes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil marca uma inflexão crítica na história recente da Igreja evangélica. Em ambos os contextos, o discurso cristão foi amplamente apropriado por projetos nacionalistas e autoritários, travestindo-se de moralidade religiosa para legitimar interesses de poder, exclusão e violência. A adesão acrítica de amplos setores evangélicos a tais figuras políticas, em nome de uma suposta defesa da fé, expôs a fragilidade teológica de suas bases e a capitulação do sagrado ao espírito do tempo. O resultado tem sido o afastamento crescente de indivíduos que, embora marcados por uma experiência genuína de fé, não encontram mais nas igrejas tradicionais um lugar de escuta, profecia e denúncia. Esse movimento não é apenas sociológico — ele pode ser interpretado teologicamente como nova forma do paradoxo: o Evangelho, mais uma vez, clama de fora dos portões, onde Cristo foi crucificado, e onde agora se refugiam aqueles que recusam uma fé cooptada por ideologias de dominação.
Esse movimento de deslocamento da fé para fora das formas religiosas tradicionais encontra ressonância também em Dietrich Bonhoeffer, cuja proposta de um cristianismo a-religoso — uma fé “não religiosa” — expressa o anseio por um seguimento de Cristo liberto das roupagens culturais, institucionais e metafísicas que historicamente o sufocaram. Em suas cartas da prisão, Bonhoeffer não propõe um abandono da fé, mas sua depuração mais radical: uma cristologia que recusa os amuletos da religião e confronta o mundo “a partir do centro da sua realidade secular”. Tal como em Barth e Kierkegaard, a fé não se localiza na adesão a uma forma culturalmente sancionada, mas na disposição de ser atingido, desestabilizado e convocado pela Palavra. A “fé não religiosa” não é um projeto subjetivista ou secularizante, mas uma forma de obediência que emerge no silêncio das formas esvaziadas, como escuta do Deus que age no oculto (o Deus absconditus, de Lutero!), e que, por isso mesmo, continua falando.
É nesse sentido que a saída da igreja institucional, por parte de muitos crentes contemporâneos, não deve ser interpretada como apostasia ou descompromisso com a vida cristã, mas como sinal escatológico: uma recusa às formas mortas que já não hospedam a presença viva do Espírito. A eclesialidade, aqui, não é negada — ela é deslocada para outro regime de visibilidade, exigindo reconfiguração. A igreja, para continuar sendo Igreja, precisa reaprender a falar profeticamente, a habitar as margens, a renunciar à aliança com os poderes deste século. Mais do que jamais se institucionalizar, a fé eclesial é chamada a existir em fidelidade ao Cristo que foi crucificado fora da cidade: não em guetos ideológicos ou trincheiras identitárias, mas na comunhão dos que esperam — juntos — por um Reino que não pode ser administrado, apenas testemunhado. O êxodo das formas, portanto, não dissolve a igreja: pode, paradoxalmente, ser sua salvação.
A possibilidade de atualização contemporânea dessa constelação teológica passa pelo reconhecimento de que, hoje, o paradoxo da fé pode se manifestar na vivência a-religiosa da existência cristã. Se a religião, em sua forma institucional, tornou-se frequentemente um instrumento de justificação cultural, política e moral — um “trabalho humano” no vocabulário barthiano —, então a fé autêutica talvez se desloque para fora dos círculos religiosos tradicionais, para as margens, os interstícios, os lugares em que a graça não pode mais ser confundida com privilégio ou identidade. Como Kierkegaard sugeria ao denunciar a cristandade como caricatura do cristianismo, e como Barth ecoa ao declarar que toda religião é julgada pela revelação, é possível conceber que os verdadeiros crentes estejam hoje ocultos sob formas não religiosas, vivendo no mundo como aqueles que farejam, na expressão do prefácio barthiano, “o cheiro da eternidade” sem o aparato das instituições.
No entanto, esse movimento de atualização encontra seus limites na própria estrutura do pensamento de Barth, que jamais abandonou completamente a mediação eclesial e que insistiu na proclamação da Palavra pela comunidade reunida em torno das Escrituras. O risco de uma dissolução completa da fé em experiência privada ou espiritualismo subjetivo sempre assombrou a crítica kierkegaardiana, e Barth parece ter tomado distância justamente para evitar esse destino. Assim, a figura do crente a-religioso permanece como hipótese provocadora — teologicamente fecunda, mas também eticamente exigente — pois não pode significar mera recusa das formas, mas fidelidade radical àquele que foi crucificado “fora do portão”, onde não há segurança religiosa, apenas graça e juízo.
Referências
BARTH, K. A Epístola aos Romanos. Traduzido da 5ª edição alemã. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
BONHOEFFER, D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.
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