sexta-feira, 9 de maio de 2025

Entre Genebra e Westminster

A recepção brasileira do calvinismo e seus paradoxos históricos

A teologia de João Calvino (1509–1564) não surgiu como um sistema acabado, nem como base para uma ortodoxia confessional rígida. Pelo contrário, emergiu em meio a um contexto plural e tenso: a Reforma Suíça, na qual figuras como Ulrico Zwinglio (1484–1531), Heinrich Bullinger (1504–1575), Pedro Mártir Vermigli (1499–1562) e Wolfgang Musculus (1497–1563) também desempenharam papéis fundamentais. Junto com Calvino, esses teólogos se dedicaram à tarefa de repensar a fé cristã a partir das Escrituras, em oposição aos excessos da tradição medieval. Genebra não era o único centro, mas sim parte de uma rede descentralizada em que diferentes enfoques coexistiam: exegese bíblica, formação pastoral, organização eclesiástica e espiritualidade comunitária. A singularidade de Calvino não reside em uma pretensa autoridade normativa, mas em sua habilidade para integrar doutrina e prática numa abordagem hermenêutica aberta, distinta do rigor de um sistema fechado.

Contudo, ao longo dos séculos XVI e XVII, o pensamento reformado passou por um processo de confessionalização. Frente aos desafios representados por católicos, luteranos e arminianos, a tradição reformada viu surgir documentos normativos que sistematizaram sua doutrina, como os Cânones de Dordrecht (1619) e a Confissão de Fé de Westminster (1646). Conforme analisa Richard A. Muller, esse movimento provocou uma mudança metodológica significativa: da exposição pastoral e bíblica para uma estruturação escolástica e logicamente rigorosa. Nesse contexto, Calvino foi elevado a uma posição simbólica; sua obra não foi necessariamente seguida com fidelidade estrita, mas utilizada como referência autoritativa. O chamado “calvinismo” é, portanto, uma construção posterior, marcada por escolhas seletivas e reelaborações teológicas. O próprio termo teve origem controversa, inicialmente pejorativa, e apenas posteriormente tornou-se uma identidade adotada, embora sempre contestada.

Nesse cenário, a Confissão de Fé de Westminster emerge como um documento emblemático. Produzida durante a guerra civil inglesa, sob forte influência do presbiterianismo escocês e do puritanismo, a CFW responde a necessidades institucionais e políticas específicas. Sua estrutura sistemática, rigor lógico e ênfase na teologia do pacto revelam preocupações distintas das de Calvino. Embora compartilhem certos elementos doutrinários, os objetivos são diferentes: Calvino escreveu com o propósito de formar consciências e promover a piedade pessoal e comunitária; Westminster, por outro lado, buscou estabelecer fronteiras confessionais precisas, regulando o culto, o ministério e a vida cívica sob uma matriz teológica rigorosa.



Essa situação se torna ainda mais complexa ao considerar que a própria tradição anglo-saxônica, herdeira direta da CFW, também passou por revisões significativas ao longo do tempo. No evangelicalismo dos séculos XVIII e XIX, figuras como Jonathan Edwards (1703–1758), Andrew Fuller (1754–1815) e Thomas Chalmers (1780–1847) empreenderam releituras críticas do calvinismo clássico. Esses autores suavizaram aspectos da doutrina da predestinação, enfatizaram o livre-arbítrio compatibilista, e centralizaram a experiência religiosa na conversão individual e na devoção afetiva, incorporando influências pietistas e racionalistas. Conforme analisado por David W. Bebbington, tais adaptações demonstram que a Confissão de Westminster foi frequentemente reinterpretada ou mesmo relativizada por seus herdeiros teológicos. Assim, o calvinismo britânico moderno, em vez de manter uma adesão estrita à teologia da CFW, tornou-se um espaço de experimentações pastorais e doutrinárias adaptadas às circunstâncias históricas específicas.

Este contexto lança luz sobre um paradoxo notável: enquanto na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a tradição reformada foi sendo revisada e adaptada às transformações culturais, filosóficas e missionárias, no Brasil — sobretudo em círculos conservadores — a CFW adquiriu status de norma absoluta. Essa recepção brasileira explica-se, em parte, pela herança missionária norte-americana, que no século XIX trouxe ao país não o Calvino histórico, mas uma versão já institucionalizada do calvinismo confessional. A Confissão de Westminster foi introduzida no Brasil como ferramenta pedagógica e doutrinária, rapidamente naturalizada como símbolo máximo da ortodoxia e pureza reformada, tornando-se uma identidade estável diante das diversas expressões religiosas locais.

Contudo, essa recepção brasileira constitui uma construção teológica de segunda ordem: trata como absoluta uma confissão produzida em um contexto britânico específico do século XVII, que já se distanciava das ênfases originais de Calvino e que, em suas próprias regiões de origem, foi continuamente revista e flexibilizada. Tal paradoxo — a absolutização periférica de uma tradição já relativizada em sua origem — apresenta-se como um fértil campo de investigação para a historiografia da teologia, convidando-nos a refletir sobre por que e como certos documentos teológicos ganham centralidade simbólica fora de seus contextos originais, e quais são as implicações hermenêuticas e eclesiais desse fenômeno.

Reconstruir criticamente o percurso da tradição reformada não implica desvalorizar a Confissão de Westminster, mas sim questionar sua sacralização acrítica. Trata-se de reconhecer que o legado reformado não é estático, mas dinâmico; suas fontes devem ser compreendidas em sua historicidade e pluralidade interna. Calvino não deve ser considerado como o fundador de um sistema rígido, mas como proponente de uma abordagem teológica situada, plural e aberta ao mistério e à constante renovação do pensamento. Recuperar essa dimensão original da Reforma significa reafirmá-la como movimento dinâmico e crítico, restabelecendo à teologia reformada sua vocação interpretativa, pastoral e dialogal.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.
CAMPI, Emidio. Calvin, the Swiss Reformed Churches, and the European Reformation. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 119–143.
BEBBINGTON, David W. Calvin and British Evangelicalism in the Nineteenth and Twentieth Centuries. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 282–305.
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Entre a Palavra e o Rito:

 A beleza da forma no pensamento de Calvino O protestantismo evangélico brasileiro desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma espiritualid...