quinta-feira, 2 de maio de 2019

Calvino era um biblicista?


A questão de se João Calvino pode ou não ser considerado um biblicista é complexa e deve ser abordada a partir de uma análise cuidadosa de suas obras (e do contexto teológico em que atuou). Para responder a essa questão, é fundamental, antes de mais nada, entender a relação que Calvino estabelece entre a Palavra de Deus e a tradição eclesiástica. No prefácio ao Rei Francisco, em 1536, Calvino já sinaliza uma ruptura epistemológica em relação à visão tradicional da igreja, afirmando categoricamente:

(...) Nós, ao contrário, afirmamos que a igreja pode existir sem aparência visível; igualmente, que não se deve querer que a sua aparência tenha esta magnificência exterior que os nossos adversários loucamente admiram; mas é bem outra a marca da igreja, a saber, a pura pregação da Palavra de Deus, incluída a legítima administração dos sacramentos (Calvino, 2006, p. 48).

Aqui, observa-se uma ênfase em elementos que transcendem a mera materialidade (ou visibilidade) da instituição eclesiástica, trazendo para o centro da sua reflexão a pregação pura da Palavra e a administração correta dos sacramentos. A defesa da Palavra de Deus como critério último e fundamental da legitimidade da Igreja ecoa fortemente o princípio reformador de "sola scriptura", mas vai além de um simples apego ao texto bíblico. Calvino não está defendendo um biblicismo estrito, mas uma teologia profundamente engajada com a ideia da Palavra enquanto expressão viva e eficaz da comunicação divina.

Essa visão dialoga com o que Martinho Lutero, precursor da Reforma, havia proposto em sua obra “A Liberdade Cristã” (1520), onde ele eleva o conceito de liberdade ao estatuto de doutrina fundamental, vinculada diretamente à justificação pela fé. Lutero articulou sua posição de maneira paradoxal, afirmando: “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.” A dialética implícita nessa formulação, conforme observa W. Altmann, revela uma tensão intrínseca no cerne da teologia reformada: a liberdade cristã como autonomia espiritual, mas também como servidão abnegada.

Imagem: DALL-E

Calvino, ao trilhar caminhos semelhantes aos de Lutero, introduz uma perspectiva adicional, especialmente no que tange à obediência à lei. Enquanto Lutero inaugura a Reforma com a tese da liberdade de consciência, Calvino, por outro lado, propõe uma teologia que, apesar de enraizada na liberdade, não abdica da necessidade de uma obediência agradável à lei de Deus, como expressa nas Institutas da Religião Cristã. Essa tensão entre liberdade e disciplina é uma das características marcantes de seu pensamento teológico.

No que concerne à cisão paulina entre a fé (πίστις) e a lei (νόμος), Calvino explora uma compreensão dialética da relação entre a liberdade cristã e a disciplina espiritual. Para ele, viver em Cristo significa tanto a libertação do jugo da lei quanto o seu cumprimento. Nesse sentido, a teologia calvinista não se restringe a um simples "biblicismo" literal, mas procura integrar a Palavra e os sacramentos dentro de uma visão sacramental do Evangelho. Como A, Biéler sugere, a teologia calvinista deve ser compreendida como uma síntese dinâmica entre liberdade e responsabilidade, entre proclamação e presença.

Calvino, portanto, desenvolve uma teologia na qual a justiça (δικαιοσύνη) é entendida à luz da fidelidade ao pacto divino e da administração dos sacramentos. Sua ênfase contínua na Palavra e nos sacramentos reflete uma tentativa de articular, de um lado, a proclamação (λόγος) e, de outro, a presença real de Cristo (παρουσία). Essa perspectiva “sacramentalista” difere de um biblicismo rígido, pois reconhece a Palavra como um evento performativo (e não apenas como um texto estático).

Essa dimensão performativa da Palavra é corroborada por uma formulação teológica do século XVI, presente na Segunda Confissão Helvética, que afirma: “A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus.” Essa afirmação ressoa de maneira profunda no pensamento contemporâneo, especialmente nas reflexões de J. Derrida sobre o testemunho e a promessa como constitutivos da verdade do discurso religioso. Para Derrida, o ato de enunciar a Palavra de Deus já implica uma promessa performativa, em que a verdade se dá no próprio ato de sua enunciação. Derrida afirma:

“(...) não há ‘religio’ sem ‘sacramentum’, sem aliança e promessa de testemunhar em verdade da verdade, isto é, de dizer a verdade prometendo dizê-la, - de já tê-la dito! – no próprio ato da promessa. De já ter dito a ‘veritas’, em latim, e, portanto, de considerá-la como dita. A promessa ‘se’ promete, ela 'já' se prometeu, eis a fé jurada e, portanto, a resposta. A ‘religio’ começaria aí.” (DERRIDA, 2000, p. 45).

Essas considerações nos levam a uma conclusão importante: a teologia de Calvino, ao insistir na pregação da Palavra e na administração dos sacramentos como marcas da verdadeira igreja, está longe de ser um simples “biblicismo”. Ao contrário, Calvino reconhece a complexidade do fazer teológico, consciente da lacuna constitutiva entre a Palavra de Deus (λόγος τοῦ θεοῦ) e a tradição (παράδοσις). Essa lacuna, longe de ser um defeito ou uma falha, é constitutiva do próprio discurso teológico, como exemplificado na crítica de Jesus às tradições humanas em Marcos 7:1-8, 14-15, 21-23.

Ao reconhecer essa distância entre a Palavra e a tradição, Calvino se afasta de um biblicismo estrito, postulando uma teologia que se coloca constantemente em “estado de exceção”, conforme a expressão de G. Agamben. Esse estado de exceção se refere à tensão contínua e irresolúvel que marca a reflexão teológica, especialmente quando confrontada com a radical alteridade da revelação divina.

Assim, Calvino não é um biblicista no sentido tradicional do termo. Sua teologia reconhece a importância da Palavra, mas não a reduz a uma letra morta, como evidenciado na distinção feita por Lutero entre a ‘litera occidens’ e o ‘spiritus vivificans’. A teologia de Calvino, ao incorporar essa distinção, aponta para uma visão das Escrituras que transcende o texto em si, afirmando sua vitalidade apenas quando iluminada pelo Espírito e vinculada à graça de Cristo. Como ele mesmo afirma: “A Lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem, quando está desvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não toca o coração” (CALVINO, 2006a, p. 77).

Portanto, longe de ser um biblicista, Calvino constrói uma teologia na qual a Palavra de Deus não é um fim em si mesma, mas um meio pelo qual os fiéis são conduzidos à comunhão com Deus, por meio da ação vivificadora do Espírito e da mediação sacramental. Sua visão das Escrituras é profundamente dialética, integrando a liberdade cristã com a obediência à lei, e a proclamação da Palavra com a presença real de Cristo nos sacramentos.

Referências
ALTMANN, W. Lutero e libertação. São Paulo: Ática, 1994.
DERRIDA, J. Fé e saber: as duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: VATTIMO, G.; DERRIDA, J. (org.). A Religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 11-90.
CALVINO, J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
CALVINO J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. v. 4.

Para saber mais:

SOUZA, Robson da Costa de. (2020), “A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada”. Reflexão, v. 45, e204792. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4792 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2022), “Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista”. Religião e Sociedade, v. 42, n. 1, p. 37-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872021v42n1cap02 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281

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