Calvino era um biblicista?
Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
“(…) Nós, ao contrário, afirmamos que a igreja pode existir sem aparência visível; igualmente, que não se deve querer que a sua aparência tenha esta magnificência exterior que os nossos adversários loucamente admiram; mas é bem outra a marca da igreja, a saber, a pura pregação da Palavra de Deus, incluída a legítima administração dos sacramentos” (João Calvino ao Rei Francisco, em 1536).
Na obra “A Liberdade Cristã”, publicada
em 1520, a temática da liberdade foi elevada por Martinho Lutero ao
nível de doutrina, constituindo-se numa variante da doutrina da
“justificação pela fé”, o cerne do luteranismo. Ele formulou a questão
em termos de um paradoxo: “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a
ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos
sujeito.” Trata-se de uma afirmação audaz, contraditória e dialética
(ALTMANN, 1994).
Seguindo as trilhas abertas por Lutero,
Calvino também escreveu uma exposição sobre a questão. Embora o primeiro
tenha iniciado a Reforma com a temática da “liberdade de consciência”, o
reformador de Genebra, em contrapartida, teve a audácia de defender a
obediência prazerosa da lei (Institutas, 3.19.4).
No que diz respeito à cisão paulina
entre o plano da fé e aquele do “nomos”, a teologia política de Calvino
também procura desenvolver uma compreensão dialética com relação à lei,
articulando os temas da “liberdade cristã” e “disciplina”: a vida em
Cristo é, então, a um tempo, libertação e cumprimento da lei (Cf.
BIÉLER, 1990).
Porém, essa noção teológica de justiça
(δικαιοσύνη) fundamenta-se, em termos genuinamente reformados, não
apenas na benigna fidelidade do Pacto, como também numa forma de
compreensão profundamente sacramental do Evangelho (εὐαγγέλιον),
considerando a insistente ênfase de Calvino na Palavra e nos Sacramentos
– anúncio (λόγος), de um lado. Presença (παρουσία), de outro.
Citando uma formulação teológica do
século XVI, “a pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus” (Segunda
Confissão Helvética). Ou, nos termos mais recentes de Derrida,
“testemunho” e “promessa”, constituem-se, eles mesmos, na própria
“verdade” do discurso religioso. Nesse aspecto, não se exorta à
iluminação religiosa ao descrevê-la, ou mesmo prometê-la. Na verdade,
ilumina-se “verbalmente” no próprio ato da enunciação:
“(…) não há ‘religio’ sem ‘sacramentum’, sem aliança e promessa de testemunhar em verdade da verdade, isto é, de dizer a verdade prometendo dizê-la, - de já tê-la dito! – no próprio ato da promessa. De já ter dito a ‘veritas’, em latim, e, portanto, de considerá-la como dita. A promessa ‘se’ promete, ela 'já' se prometeu, eis a fé jurada e, portanto, a resposta. A ‘religio’ começaria aí (DERRIDA, 2000, p. 45).
Mas essa breve reflexão não tem a
pretensão de transformar Calvino num “biblicista”. Aqui, o argumento
central é o de que a “lacuna” que separa a Palavra (λόγον τοῦ θεοῦ) da
tradição (παράδοσις) é constitutiva tanto do “fazer teológico” como do
discurso religioso propriamente dito (cf. Mc 7.1-8, 14-15, 21-23), na
medida em que, “posta à prova pelo fogo devorador” (BARTH, 1996, p. 87),
a reflexão teológica entra em “estado de exceção permanente” (para usar
uma terminologia do filósofo italiano Giorgio Agamben).
Na ortodoxia protestante, a compreensão
destas ambiguidades já estava implícita na distinção feita por Lutero
entre a chamada “letra morta” (‘litera occidens’) e o “espírito que
vivifica” (‘spiritus vivifícans’). Percebendo a diferença qualitativa
entre a noção teológica de “Palavra de Deus” e a Bíblia, a visão
calvinista das Escrituras também acompanhava esta compreensão paulina. Resgata-se o necessário sentido
“existencial” do texto, entregando-o, simultaneamente, à razão crítica.
Se, de um lado, o texto era a letra morta destinada à crítica mais
radical, de outro, κήρυγμα aos que, pela proclamação das boas novas,
deixam-se interpelar no auxílio do Espírito. Segundo o reformador J.
Calvino, “a Lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem, quando
está desvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não
toca o coração” (CALVINO, 2002, p. 77).
Referências ALTMANN, Walter. Lutero e Lubertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Paulo: Editora Ática, 1994. BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1996. BIÉLER, André.O pensamento econômico e social de Calvino. 3. ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990.
CALVINO, João. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 1. 240p.
DERRIDA, Jacques. Fé e saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: VATTIMO, Gianni; DERRIDA, Jacques (org.). A Religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000: 11-90.
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