quinta-feira, 2 de maio de 2019

Calvino era um biblicista?

Calvino era um biblicista?


Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
“(…) Nós, ao contrário, afirmamos que a igreja pode existir sem aparência visível; igualmente, que não se deve querer que a sua aparência tenha esta magnificência exterior que os nossos adversários loucamente admiram; mas é bem outra a marca da igreja, a saber, a pura pregação da Palavra de Deus, incluída a legítima administração dos sacramentos” (João Calvino ao Rei Francisco, em 1536).

Na obra “A Liberdade Cristã”, publicada em 1520, a temática da liberdade foi elevada por Martinho Lutero ao nível de doutrina, constituindo-se numa variante da doutrina da “justificação pela fé”, o cerne do luteranismo. Ele formulou a questão em termos de um paradoxo: “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.” Trata-se de uma afirmação audaz, contraditória e dialética (ALTMANN, 1994).

Seguindo as trilhas abertas por Lutero, Calvino também escreveu uma exposição sobre a questão. Embora o primeiro tenha iniciado a Reforma com a temática da “liberdade de consciência”, o reformador de Genebra, em contrapartida, teve a audácia de defender a obediência prazerosa da lei (Institutas, 3.19.4).

No que diz respeito à cisão paulina entre o plano da fé e aquele do “nomos”, a teologia política de Calvino também procura desenvolver uma compreensão dialética com relação à lei, articulando os temas da “liberdade cristã” e “disciplina”: a vida em Cristo é, então, a um tempo, libertação e cumprimento da lei (Cf. BIÉLER, 1990). 

Porém, essa noção teológica de justiça (δικαιοσύνη) fundamenta-se, em termos genuinamente reformados, não apenas na benigna fidelidade do Pacto, como também numa forma de compreensão profundamente sacramental do Evangelho (εὐαγγέλιον), considerando a insistente ênfase de Calvino na Palavra e nos Sacramentos – anúncio (λόγος), de um lado. Presença (παρουσία), de outro.

Citando uma formulação teológica do século XVI, “a pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus” (Segunda Confissão Helvética). Ou, nos termos mais recentes de Derrida, “testemunho” e “promessa”, constituem-se, eles mesmos, na própria “verdade” do discurso religioso. Nesse aspecto, não se exorta à iluminação religiosa ao descrevê-la, ou mesmo prometê-la. Na verdade, ilumina-se “verbalmente” no próprio ato da enunciação: 

“(…) não há ‘religio’ sem ‘sacramentum’, sem aliança e promessa de testemunhar em verdade da verdade, isto é, de dizer a verdade prometendo dizê-la, - de já tê-la dito! – no próprio ato da promessa. De já ter dito a ‘veritas’, em latim, e, portanto, de considerá-la como dita. A promessa ‘se’ promete, ela 'já' se prometeu, eis a fé jurada e, portanto, a resposta. A ‘religio’ começaria aí (DERRIDA, 2000, p. 45).
Mas essa breve reflexão não tem a pretensão de transformar Calvino num “biblicista”. Aqui, o argumento central é o de que a “lacuna” que separa a Palavra (λόγον τοῦ θεοῦ) da tradição (παράδοσις) é constitutiva tanto do “fazer teológico” como do discurso religioso propriamente dito (cf. Mc 7.1-8, 14-15, 21-23), na medida em que, “posta à prova pelo fogo devorador” (BARTH, 1996, p. 87), a reflexão teológica entra em “estado de exceção permanente” (para usar uma terminologia do filósofo italiano Giorgio Agamben).

A questão central da Reforma é a da liberdade. Foto: Pixabay.com


Na ortodoxia protestante, a compreensão destas ambiguidades já estava implícita na distinção feita por Lutero entre a chamada “letra morta” (‘litera occidens’) e o “espírito que vivifica” (‘spiritus vivifícans’). Percebendo a diferença qualitativa entre a noção teológica de “Palavra de Deus” e a Bíblia, a visão calvinista das Escrituras também acompanhava esta compreensão paulina. Resgata-se o necessário sentido “existencial” do texto, entregando-o, simultaneamente, à razão crítica. Se, de um lado, o texto era a letra morta destinada à crítica mais radical, de outro, κήρυγμα aos que, pela proclamação das boas novas, deixam-se interpelar no auxílio do Espírito. Segundo o reformador J. Calvino, “a Lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem, quando está desvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não toca o coração” (CALVINO, 2002, p. 77). 

Referências

ALTMANN, Walter. Lutero e Lubertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Paulo: Editora Ática, 1994.

BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1996.

BIÉLER, André.O pensamento econômico e social de Calvino. 3. ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990.

CALVINO, João. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 1. 240p.

DERRIDA, Jacques. Fé e saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: VATTIMO, Gianni; DERRIDA, Jacques (org.). A Religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000: 11-90.


 

     

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