John Milton (1608–1674) é, em geral, lembrado sobretudo como o grande poeta de língua inglesa, autor de Paradise Lost, mas, no contexto que nos interessa aqui, ele aparece como figura-chave da cultura política e religiosa do século XVII. Puritano, profundamente marcado pela tradição reformada e pelo biblicismo protestante, Milton atravessa a Guerra Civil inglesa, apoia a causa parlamentar, legitima teologicamente o regicídio e participa, como panfletário, dos debates mais agudos sobre autoridade, liberdade e consciência na Inglaterra do período. Seus tratados em prosa — entre eles Areopagitica, Of True Religion e A Treatise of Civil Power — articulam de forma singular elementos herdados do calvinismo com uma defesa radical da responsabilidade individual diante da Palavra e com uma crítica severa a qualquer forma de coerção em matéria de fé. É esse Milton teólogo leigo, exegeta da Escritura e polemista político-religioso, mais do que apenas o poeta épico, que R. Bradley Holden toma como objeto ao propor ler o protestantismo “como” liberalismo.
No capítulo Protestantism as Liberalism: John Milton and the Struggle Against Implicit Faith, R. Bradley Holden parte de uma hipótese forte: o protestantismo deve ser entendido menos como um conjunto fixo de doutrinas e mais como uma forma específica de estruturar a crença, isto é, uma gramática de subjetivação religiosa. Ao ler Milton a partir desse prisma, Holden sustenta que o protestantismo, em certo sentido, “é” liberalismo, na medida em que produz um sujeito que responde diretamente diante da Escritura e da própria consciência, de tal modo que nenhuma mediação eclesiástica ou civil pode reivindicar autoridade absoluta sobre aquilo em que se deve crer. Essa tese não afirma que Milton seja um liberal no sentido iluminista tardio, nem que a Reforma carregasse um “germe liberal” destinado à modernidade; o que Holden reconstrói é uma configuração discursiva em que os princípios protestantes de sola scriptura e de recusa da fé implícita são levados a um ponto em que a liberdade de consciência, a suspeita de poderes arbitrários e uma ética da leitura individual tornam-se inescapáveis. O “liberalismo” aqui é, antes de tudo, um liberalismo teológico, com desdobramentos políticos derivados do próprio modo como a fé deve ser formada, examinada e assumida. Não se trata, portanto, de opor um liberalismo secular a uma fé confessional, mas de mostrar como determinadas formas de crer tornam possíveis certas formas de ordenar o mundo político.
O eixo central do argumento de Holden é a análise de Of True Religion (1673), panfleto tardio em que Milton procura definir o que é a “verdadeira religião” e, ao fazê-lo, explicita uma visão do protestantismo que o autor lê como decisiva para a genealogia do liberalismo religioso. Milton afirma que as Igrejas protestantes convergiriam em dois princípios: a Palavra de Deus como única regra da verdadeira religião e a rejeição da fé implícita, isto é, a recusa de crer “como a Igreja crê” sem exame próprio da Escritura. Holden interpreta essa combinação como o núcleo da identidade protestante miltoniana: não um conjunto dogmático fechado, mas uma forma da crença que convoca o sujeito ao discernimento pessoal. O gesto de Milton, na leitura de Holden, não consiste em produzir doutrinas inéditas, mas em reorganizar o campo da ortodoxia de modo que esta passe a depender essencialmente da responsabilidade subjetiva e não da submissão a instâncias heterônomas.
A partir desse núcleo, Holden acompanha como Milton redefine “verdadeira religião” e “heresia”. Em Of True Religion e em Areopagitica, Milton insiste que o culto verdadeiro só pode ser fruto do aprendizado e da crença derivados da Palavra “somente”. Holden destaca que essa formulação desloca o foco da ortodoxia: não basta crer em proposições corretas; é necessário crer corretamente, isto é, após exame, deliberação e apropriação consciente. Daí a tese miltoniana de que alguém pode ser “herege na verdade”: defender proposições objetivamente corretas, mas de forma herética, porque não examinadas. Para Holden, trata-se de uma mudança profunda: a heresia deixa de ser primariamente um erro de conteúdo para se tornar um erro de forma – a falha em assumir a responsabilidade subjetiva pela própria crença.
Essa redefinição tem consequências teológicas e políticas. Para Milton, afirma Holden, nenhum verdadeiro protestante pode ser herege se agir honestamente diante da Escritura, mesmo quando sua conclusão seja minoritária ou controversa. É dessa lógica que emerge, para Holden, a articulação entre protestantismo e liberalismo. Nos textos Areopagitica e A Treatise of Civil Power, Milton defende a liberdade de imprensa, a tolerância religiosa e a limitação do poder civil não como consequência de direitos naturais abstratos, mas como exigências internas ao modo protestante de crer. Se a fé não pode ser implícita, se o sujeito deve “provar todas as coisas” e julgar doutrinas à luz da Escritura, então toda censura, imposição doutrinária estatal ou perseguição religiosa constitui uma violação da própria estrutura da fé reformada.
O liberalismo de Milton, tal como apresentado por Holden, é, portanto, teológico no fundamento e político na consequência: a liberdade civil nasce da impossibilidade teológica de delegar a consciência. Importa, contudo, distinguir esse “liberalismo religioso” miltoniano das teologias liberais protestantes do século XIX: aqui não se trata de flexibilizar conteúdos doutrinários diante da modernidade, mas de uma configuração da fé cuja forma – centrada na consciência e na rejeição da fé implícita – mantém apenas uma afinidade eletiva com posteriores desdobramentos do liberalismo teológico e político.
Ao aproximar Milton de Calvino, não se pretende corrigir Holden, mas aprofundar o horizonte no qual seu argumento se move. As Institutas revelam que Calvino também rejeita formas de fides implicita vigentes em seu contexto, pois a fé exige conhecimento de Deus e de Cristo (Inst. III.2.2–3). Contudo, Calvino reconhece uma “fé implícita” em sentido pedagógico – disposição inicial que aguarda instrução (Inst. III.2.4–5). Essa ambivalência ecoa, ainda que de modo diverso, a tensão miltoniana entre a recusa à fé não examinada e o reconhecimento de graus na apropriação subjetiva. Algo semelhante ocorre com a consciência: Calvino a descreve como tribunal interno do juízo divino (Inst. III.19.2; IV.10.5), enquanto Milton – na reconstrução de Holden – faz da consciência iluminada pela Palavra um espaço que pode julgar leis e resistir a autoridades. A analogia, numa leitura foucaultiana, está nas tecnologias de interiorização; a diferença reside na direção dessa interioridade – mais disciplinar em Calvino, mais crítica em Milton. Não se trata, portanto, de opor um Calvino “antiliberal” a um Milton “liberal”, mas de mostrar como uma mesma gramática reformada pode ser rearticulada, em contextos distintos, em lógicas predominantes de disciplina ou de resistência.
A comparação também ilumina divergências na eclesiologia. Calvino associa a verdadeira Igreja à pregação e aos sacramentos (Inst. IV.1.9–10) e à disciplina eclesiástica, tratada no contexto do governo da Igreja (Inst. IV.12.1–7), enfatizando formas institucionais de coesão. Milton, tal como Holden o apresenta, desloca o eixo da identidade eclesial para o campo da fidelidade à Escritura e da recusa ao arbítrio – o que torna a verdadeira Igreja menos uma instituição identificável e mais uma comunidade de crentes que não toleram coerções injustas. No campo civil, a diferença se repete: Calvino entende o magistrado como ofício divinamente ordenado (Inst. IV.20.4–5), cuja autoridade, naquilo em que não invade o foro da consciência, deve ser obedecida “por motivo de consciência” (Inst. IV.10.5), salvo quando contrarie a Palavra; Milton, segundo Holden, transforma a consciência em fundamento para resistir ao magistrado sempre que este buscar impor doutrinas. A leitura pós-estrutural torna claro que ambos operam com os mesmos significantes – “Escritura”, “consciência”, “Igreja”, “magistrado” – mas os hegemonizam de maneiras diferentes, produzindo arquiteturas distintas de sujeição e de crítica.
É nesse ponto que a análise pode ser deslocada para o protestantismo brasileiro contemporâneo. Em nossa investigação, observa-se que a recepção brasileira da tradição reformada privilegiou determinadas inflexões calvinistas, especialmente aquelas ligadas à disciplina, à coesão doutrinária e à identidade confessional. O que se consolidou historicamente – sobretudo por meio de missões protestantes, disputas identitárias e contextos sociopolíticos nacionais – foi um conjunto de práticas e discursos que reforçaram fronteiras rígidas entre “ortodoxia” e “desvio”, produzindo um ambiente religioso em que a autocrítica da tradição e a pluralidade interna são frequentemente percebidas como ameaças à integridade comunitária. Essa rearticulação brasileira da herança reformada mantém afinidades com aspectos da gramática calviniana, mas não necessariamente com o dinamismo teológico presente nas "Institutas" e muito menos com as rearticulações miltonianas de consciência, tolerância e limitação do poder.
Em nossa análise, verifica-se também que a ênfase protestante brasileira na Escritura e na consciência não assume, na maior parte dos casos, a função crítica que Holden identifica em Milton. A leitura bíblica individual tende a ocorrer sob estruturas interpretativas fortemente reguladas por lideranças, materiais catequéticos e narrativas institucionais, de modo que a consciência não opera como tribunal crítico, mas como instância de confirmação de padrões doutrinários pré-estabelecidos. Desse modo, aquilo que, em Milton, poderia ter servido como fundamento para práticas de dissenso legítimo e resistência ao arbítrio – e que Holden interpreta como germes de um liberalismo religioso – é majoritariamente absorvido numa gramática de conformidade. A forma da crença permanece, muitas vezes, marcada por uma espécie de “fé implícita reformada”, recoberta, contudo, pelo vocabulário do exame pessoal.
Ainda em nossa investigação, observa-se que significantes como “Escritura”, “verdadeira Igreja”, “fidelidade doutrinária” e “liberdade de consciência” são frequentemente hegemonizados por uma lógica que privilegia ordem, disciplina e identidade. Trata-se de uma articulação que incorpora elementos do calvinismo histórico, mas também formas contemporâneas de conservadorismo moral, fundamentalismo bíblico e disputas pelo espaço público. Nessa estrutura discursiva, elementos da herança miltoniana – como a defesa da tolerância intra-protestante, a crítica sistemática à fé implícita e a concepção da consciência como limite ao poder eclesiástico e civil – têm pouca oportunidade de institucionalização. Evidentemente, trata-se de um recorte analítico: não se pretende esgotar a diversidade das experiências protestantes no Brasil, mas iluminar tendências hegemônicas em determinados segmentos de matriz reformada.
Ao mesmo tempo, nossa análise indica que essa hegemonia não elimina completamente outras possibilidades protestantes no Brasil. Existem comunidades, teologias públicas e iniciativas ecumênicas que preservam aspectos tanto da liberdade de consciência quanto da crítica às pretensões absolutas de instituições religiosas. Em tais espaços, ressoa algo da rearticulação miltoniana destacada por Holden: a consciência como responsabilidade, a Escritura como chamada ao discernimento e a Igreja como comunidade em permanente autorrevisão. Também se encontram releituras criativas de Calvino que enfatizam a crítica à idolatria, a centralidade da justiça e a importância das instituições para o bem comum, tensionando usos mais autorreferenciais da tradição reformada.
O contraste entre Milton, Calvino e o protestantismo brasileiro, portanto, não revela apenas permanências e rupturas históricas, mas evidencia um campo contínuo de disputa discursiva. A herança calviniana, ao ser recepcionada, foi majoritariamente moldada por estruturas disciplinares e identitárias; a herança miltoniana, embora presente como possibilidade, raramente se tornou hegemônica. Assim, ao articular o capítulo de Holden com nossa própria investigação, torna-se possível compreender o protestantismo brasileiro não como realização unilateral da Reforma, mas como rearticulação específica e contingente de elementos calvinianos e miltonianos – rearticulação essa que, ao privilegiar a disciplina sobre a crítica e a ordem sobre a pluralidade, acabou por deixar latentes certas potencialidades transformadoras inscritas na própria tradição reformada. Em termos pós-estruturais, não há uma essência protestante que se realize plenamente ora em Calvino, ora em Milton, ora no Brasil; há, antes, cadeias discursivas em disputa, nas quais “Escritura”, “consciência”, “Igreja” e “liberdade” podem ser continuamente rearticuladas em direções mais autoritárias ou mais emancipatórias.
Referências
HOLDEN, R. Bradley. "Protestantism as liberalism: John Milton and the struggle against implicit faith". In: GORDON, Bruce; TRUEMAN, Carl R. (org.). The Oxford Handbook of Calvin and Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 2021.
SOUZA, Robson Costa. A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada. Reflexão, Campinas, v. 45, e204792, 2020.

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