A soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos. Quanto ao primeiro, deve-se mostrar, não somente que há um só Deus, a quem é necessário que todos prestem honra e adorem, mas também que Ele é a fonte de toda verdade, sabedoria, bondade, justiça, juízo, misericórdia, poder e santidade, para que dele aprendamos a ouvir e a esperar todas as coisas. Deve-se, pois, reconhecer, com louvor e ação de graças, que tudo dele procede. Quanto ao segundo, revela a nossa ignorância, miséria e maldade, induz-nos à humildade, à não confiança própria e ao desprezo de nós mesmos; inflama em nós o desejo de buscar a Deus, certos de que nele repousa todo o nosso bem, do qual nos vemos vazios e desnudos. João Calvino
O Conhecimento de Deus e de Nós Mesmos: A Dialética de Calvino
Uma análise atenta do primeiro volume das Institutas revela que a essência do pensamento teológico de Calvino está menos focada na predestinação, como comumente se imagina, e mais na correlação entre a majestade divina e a miséria humana. Calvino propõe uma tensão fundamental entre o conhecimento de Deus e o autoconhecimento, apontando para um Deus que “rejeita oferendas queimadas e atos de arrogante farisaísmo” (cf. Eagleton, 2011), em contraste com os ídolos criados pelo ser humano.
O teólogo Paul Tillich também observa esse aspecto central no pensamento de Calvino. Para Tillich, Calvino correlaciona o conhecimento de Deus com o conhecimento da condição humana. A miséria humana é a base para a compreensão da glória de Deus, e a majestade divina, por sua vez, ilumina nossa fragilidade. Tillich aponta que essa correlação é a chave para o sistema teológico de Calvino, revelando como ele articula a relação entre Deus e o homem de forma recíproca.
Imagem: DALL-E
O Conhecimento Natural e as Escrituras
Calvino sustenta que o ser humano carrega em si o “sensus divinitatis”, uma percepção inata da Divindade. No entanto, embora esse senso, mesmo corrompido, forneça algum conhecimento de Deus, Calvino reconhece os limites desse “conhecimento natural”. Ele afirma que a compreensão plena de Deus só é possível através das Escrituras, mediante a ação do Espírito Santo. Por isso, ele condena qualquer tentativa de manipular a religião para controle social, considerando tal prática uma distorção do verdadeiro culto.
Calvino e o Método de Correlação
O impacto cultural da Reforma, especialmente sob a ótica calvinista, deve ser compreendido como parte da transição da sociedade medieval para a modernidade ocidental. A teologia de Calvino se entrelaça com o longo processo de racionalização e secularização iniciado na Era Axial e intensificado pelo protestantismo puritano a partir do século XVII. Contudo, apesar de seu papel na modernidade, Calvino não “desconstruiu” completamente a Alteridade divina. Em vez disso, ele manteve uma teologia que preservava a majestade de Deus como inatingível pela razão humana.
Em um nível crítico, alguns teólogos sugerem que há algo de feuerbachiano na correlação calvinista, onde os nomes de Deus são, de certo modo, projeções sublimadas da humanidade. Além disso, Calvino não previu o longo processo de secularização que transformaria profundamente as sociedades ocidentais e subjetivaria as crenças religiosas.
Calvino e o método da correlação
A Kenosis de Deus: Reflexões Contemporâneas
Uma releitura da teologia da Encarnação, sob a perspectiva de Slavoj Žižek, propõe uma inversão radical: nossa experiência de separação de Deus é o que, paradoxalmente, nos conecta a Ele. Na cruz, Deus se aliena de si mesmo, num movimento de auto-abandono (κένωσις), tornando-se irmão de todos os marginalizados da história (cf. Jürgen Moltmann). Žižek sugere que Deus, ao sofrer essa cisão, assume a distância que separa o humano do divino.
Dietrich Bonhoeffer, mártir do regime nazista, ecoa esse sentimento em seus escritos: “Deus se deixa empurrar para fora do mundo até a cruz; é impotente e fraco no mundo, e é exatamente assim que Ele está conosco e nos ajuda.” Sua afirmação, “vivemos com Deus, mas sem Deus”, desafia as concepções tradicionais de um Deus onipotente e transcendente.
Revelação e Idolatria
Žižek continua sua análise teológica ao argumentar que o cristianismo não revela um mistério oculto, mas revela que não há segredo além do que já está presente. A idolatria suprema, sugere ele, está em acreditar que existe uma ordem sublime por trás das aparências. Seguindo essa linha de pensamento, poderíamos até dizer, em termos derridianos, que apenas os ateus oram verdadeiramente, ao se recusarem a direcionar suas preces a um Deus positivo. Žižek sugere, provocativamente, que os teólogos, em certo sentido, são os verdadeiros ateus.
Graça e Secularização
A abordagem radical de Žižek sobre a “sola gratia” desafia a visão puritana de Providência, que pressupõe uma correspondência entre virtude e felicidade. Para Žižek, a graça dissolve essa expectativa previsível, introduzindo o imponderável. A graça, em sua essência, opera fora dos limites da racionalidade e do controle humano, abrindo novas possibilidades para a relação entre o divino e o acaso.
Conclusão
O método de correlação proposto por Calvino, entre a majestade divina e a miséria humana, continua sendo uma estrutura teológica profunda para pensar questões contemporâneas. Reflexões modernas, por meio de pensadores como Tillich, Žižek e Moltmann, reexaminam essas ideias à luz da secularização e do sofrimento humano. Assim, a teologia calvinista permanece um campo fértil para o diálogo entre a transcendência divina e as realidades da existência humana.
Referências
Bonhoeffer, D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.
Calvino, João. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
___________. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 1. 240p.
Eagleton, Terry. O debate sobre Deus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Tillich, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014.
Žižek, Slavoj. A Marioneta e o Anão – O Cristianismo o entre Perversão e Subversão. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
___________. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário