domingo, 19 de janeiro de 2020

Cosmovisão cristã e ideologia política conservadora

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

“ (…) Pelo amor de Deus, só nenhum delírio protestante, só nenhuma “batalha contra Roma”! Nossa força reside em carregar [‘todo’ o peso daquela inquietude preparada por Deus aos seres humanos], no qual nós mesmo nem aparecemos, só estamos ‘ali’ como os que pensam e refletem. A melhor porção do paulinismo é justamente aquilo que ‘não’ é manejável nem utilizável, e a ‘melhor’ porção do protestantismo é justamente o que é ‘estranho’ ao mundo, o que ‘não’ é prático nem popular. No momento em que eles querem representar uma grandeza, um fator ou desempenhar um papel, se abrem mão deles mesmos. É só pelo fato de eles, no limite extremo da cultura, da sociedade, das cosmovisões e religiões não ousarem ser os pontos de interrogação e exclamação discretos (em verdade, os decisivos!), só pelo fato de eles pretenderem ‘ser’ algo e ‘concorrer’ com os romanos, é que são provocadas as suas crises.”
BARTH, K. A Carta aos Romanos: (segunda versão) 1922. São Leopoldo: Sinodal/ EST, 2016, p. 505.

Ao finalizar a leitura de um artigo de Cornelis van der Kooi, fiquei me perguntando se Abraham Kuyper (1837-1920) e Herman Bavinck (1854-1921) são os únicos “mentores” de uma “Teologia Pública” de matriz reformada? Ao que parece, o kuyperianismo se desenvolveu num contexto completamento diferente do nosso, articulando, a um só tempo, valores conservadores e antirrevolucionários, de um lado, e antiaristocráticos e republicanos, de outro. Era avesso aos princípios básicos da Revolução Francesa, tais como: soberania popular, anticlericalismo e negação da autoridade divina. Mas a crítica desse ideário não torna Kuyper um “restauracionista”, no sentido político do termo. Enquanto estrategista político, imputa ao Calvinismo os ganhos das conquistas sociais modernas (republicanismo, a teoria dos “contratos sociais”, a separação entre a igreja e o Estado, organização política e popular, entre outros), assumindo, assim, os “riscos” democráticos.

Por outro lado, Abraham Kuyper alimentava a crença conservadora de que a Revolução [Francesa] engendrara, sob formas políticas totalitárias, conflitos sociais pela segmentação da sociedade em classes, com a subsequente supressão das liberdades individuais , no Terror, embora a tirania estivesse travestida naquelas promessas irrealizáveis de liberdade, igualdade e fraternidade. Segundo J. Bratt, a sutileza do argumento se expressava, ainda que de maneira contraditória, na seguinte ideia: os valores revolucionários (racionalismo, individualismo e um ateísmo sem precedentes na história) como subproduto de lógicas subjacentes ao universo liberal do mundo anglo-saxão (economia de mercado e utilitarismo).

For economic conservatives (that is, neoliberals) and American evangelicals, who assume an automatic affinity between their respective positions, Kuyper’s deliverances will be bewildering at best, outrageous at worst. With intense and often heated rhetoric 'Christianity and the Social Question' denounced laissez-faire capitalism as inimical to human well-being, material or spiritual; as out of tune with Scripture and contrary to the will of God; and as the very spawn of ‘Revolution’. The ‘Revolution’ Kuyper named here was the French, but he could just as well have used ‘Industrial,’ for the principles behind and the attitudes stemming from both constituted the deeper revolution in consciousness that anti-revolutionary thinking had always faulted most. Wherein did this revolution lie for economics? In replacing the spirit of ‘Christian compassion’ with ‘the egoism of a passionate struggle for possessions,’ Kuyper said. In the abrogation of the claims of community for the sake of the sovereign individual; in the commodification of labour, which denied the image of God and the rightful claims of a brother; in the idolization of the supposedly free market, which deprived the weak of their necessary protections, licensed the strong in their manipulations and proclaimed the consequences to be the inevitable workings of natural law. In the advertising that inculcated a covetous consumerism as the norm of human happiness. The French Revolution, but as Kuyper repeated throughout his work, also the ‘utilitarian,’ the ‘laissez-faire’ and the ‘Manchester’ schools that were the philosophical apologists for industrial capitalism (...) (Bratt, 2014, p.7).
A partir da segunda metade do século XIX, os aspectos público e político dessa teologia neocalvinista materializaram-se, em países como a Holanda, tanto na tentativa de “recristianizar” a sociedade por meio da reinvenção de um ideal de nação fundado em valores calvinistas, opondo-se a um ideário liberal que procurava banir a religião do espaço público, quanto na moderna apropriação política de noções teológicas, tais como: responsabilidade pessoal, sacerdócio universal e resistência ao Estado pela lógica da “soberania das esferas”. Era um “mito fundante” em todos os sentidos. Sob um argumento de estabilidade e ordem, a teologia reformada se apresentava não apenas como a fonte do constitucionalismo e das liberdades individuais, mas também a via revolucionária de fato: The result was an argument for stability and order from a narrative of resistance, rebellion and revolution – good, Christian revolution (Ibidem, p. 10).

Foto: Pixabay.com


De João Calvino a Théodore Béza, passando pelos huguenotes, a resistência constitucional aos tiranos encontrava, assim, no Calvinismo uma fonte moral de legitimação política. Enquanto forma de Teologia Pública, essa “reapropriação” política da teologia de Calvino sinalizava, entre outras coisas, para princípios contraditórios e antagônicos como: igualdade política para todas as convicções religiosas (pluralismo), distinção entre os vários domínios da vida, a noção de um Estado que se subtrai à influência da Igreja (e vice e versa), sem que isso se traduza em “laicismo”, associativismo e a visão de uma sociedade inspirada em valores cristãos (e reformados), paralelamente ao pleno envolvimento dos crentes na cultura moderna. Da interação entre igualdade e diferença, a igreja se desenvolveria, aqui, como uma comunidade pluriforme onde todos são iguais perante de Deus: homens e mulheres.

Ao apostar no Calvinismo como fonte de mobilização e responsabilidade pessoal, isto é, no engajamento pessoal dos cristãos em questões que a todos concernem (saúde, educação e cuidado dos pobres), ajudou a difundir uma forma de espiritualidade conectada a uma visão abrangente de mundo: uma “graça comum” que se estende a todos os reinos da cultura. Nessa perspectiva, o neocalvinismo percebeu na segmentação da sociedade segundo linhas ideológicas bastante específicas uma forma de resistência religiosa aos avanços da secularização, ignorando o poder das forças materiais vis-à-vis às ideias.

Sem demagogia, fiquei me perguntando, novamente, após essas breves considerações, pela relevância dessa Teologia à compreensão do fenômeno religioso brasileiro..... O neo-calvinismo kuyperiano se configuraria, aqui, como uma apropriação política de temáticas religiosas ou a partir de uma religiosização politicamente conservadora do debate público? Em que medida colabora para reforçar (ou mesmo “desconstruir”) aquelas formas de representação vinculadas ao imaginário do assim chamado “mundo evangélico” contemporâneo? De qualquer forma, o “kuyperianismo” é uma construção teológico-política do século XIX, distanciando-se, inclusive, dos ensinamentos do próprio Calvino. Se, de um lado, a ideia de “cosmovisão cristã” constitui-se num subproduto ideológico dessa “formação discursiva”, ganhando, no final do século XX e início deste século, por razões a serem pesquisadas, hegemonia entre muitas lideranças evangélicas brasileiras, de outro, as formas confessionais (e ortodoxas) do Calvinismo não se confundem, necessariamente, com esses vetores político-ideológicos, posto que são anteriores a eles. Nessa perspectiva, o Calvinismo e o Iluminismo somente se apresentam como “forças sociais contraditórias” quando analisadas sob essa matriz ideológica conservadora. Como demonstrei num post anterior, há formas ilustradas de Calvinismo, inclusive na Holanda.

Referências
BRATT, J. “Abraham Kuyper and the French Revolution”. In: Harinck, G; Eglinton, James. “Neo-Calvinism and the French Revolution”. London, New York: Bloomsbury T&T Clark, 2014. cap. 1, p. 1-12.
VAN DER KOOI, C. “Calvin, Modern Calvinism, and Civil Society: The Appropriation of a Heritage, with Particular Reference to the Low Countries”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 13, pp. 267-281.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Calvino e sua influência no mundo Ocidental

“ Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”, de Fr...