“ (…) Pelo amor de Deus, só nenhum delírio protestante, só nenhuma “batalha contra Roma”! Nossa força reside em carregar [‘todo’ o peso daquela inquietude preparada por Deus aos seres humanos], no qual nós mesmo nem aparecemos, só estamos ‘ali’ como os que pensam e refletem. A melhor porção do paulinismo é justamente aquilo que ‘não’ é manejável nem utilizável, e a ‘melhor’ porção do protestantismo é justamente o que é ‘estranho’ ao mundo, o que ‘não’ é prático nem popular. No momento em que eles querem representar uma grandeza, um fator ou desempenhar um papel, se abrem mão deles mesmos. É só pelo fato de eles, no limite extremo da cultura, da sociedade, das cosmovisões e religiões não ousarem ser os pontos de interrogação e exclamação discretos (em verdade, os decisivos!), só pelo fato de eles pretenderem ‘ser’ algo e ‘concorrer’ com os romanos, é que são provocadas as suas crises.”
BARTH, K. A Carta aos Romanos: (segunda versão) 1922. São Leopoldo: Sinodal/ EST, 2016, p. 505.
Ao concluir a leitura de um artigo de Cornelis van der Kooi, fiquei a refletir se Abraham Kuyper (1837-1920) e Herman Bavinck (1854-1921) são, de fato, os únicos mentores de uma “Teologia Pública” de matriz reformada. O kuyperianismo, ao que parece, desenvolveu-se em um contexto profundamente distinto do nosso, articulando, ao mesmo tempo, valores conservadores e antirrevolucionários, de um lado, e antiaristocráticos e republicanos, de outro. Kuyper rejeitava os princípios fundamentais da Revolução Francesa, como a soberania popular, o anticlericalismo e a negação da autoridade divina. Entretanto, essa crítica ao ideário revolucionário não faz de Kuyper um "restauracionista" no sentido político estrito. Enquanto estrategista político, ele atribuía ao Calvinismo os avanços das conquistas sociais modernas — republicanismo, teoria dos contratos sociais, separação entre Igreja e Estado, organização política e popular, entre outros — e aceitava os riscos inerentes ao regime democrático.
Por outro lado, Kuyper sustentava a visão conservadora de que a Revolução Francesa, ao instituir formas políticas totalitárias, fomentou conflitos sociais ao dividir a sociedade em classes, culminando na supressão das liberdades individuais durante o período do Terror. Para ele, a tirania estava disfarçada sob as promessas utópicas de liberdade, igualdade e fraternidade. Como ressalta J. Bratt, Kuyper argumentava, de maneira sutil, que os valores revolucionários — como o racionalismo, o individualismo e um ateísmo sem precedentes — eram, na verdade, subprodutos das lógicas liberais predominantes no mundo anglo-saxão, como a economia de mercado e o utilitarismo..
Para conservadores econômicos (ou neoliberais) e evangélicos americanos que tendem a assumir uma afinidade automática entre suas posições, as ideias de Kuyper seriam, na melhor das hipóteses, desconcertantes, e na pior, revoltantes. Em retórica muitas vezes acalorada, Kuyper, em Christianity and the Social Question, denunciou o capitalismo laissez-faire como prejudicial ao bem-estar humano, material ou espiritual, e contrário às Escrituras e à vontade de Deus. Segundo ele, o capitalismo era fruto da Revolução — referindo-se à Revolução Francesa, mas igualmente à Revolução Industrial —, pois os princípios por trás de ambas constituíam a verdadeira revolução de consciência que o pensamento antirrevolucionário sempre condenou. Em que consistia essa revolução no campo econômico? Para Kuyper, ela residia na substituição do espírito de "compaixão cristã" pelo "egoísmo de uma luta apaixonada por posses", na abolição das reivindicações comunitárias em favor do indivíduo soberano, na mercantilização do trabalho, que negava a imagem de Deus no trabalhador, e na idolatria do supostamente livre mercado, que privava os fracos de suas proteções e autorizava os fortes a manipular o sistema, proclamando que as consequências eram meramente os resultados inevitáveis das leis naturais. A Revolução Francesa, juntamente com o utilitarismo, o laissez-faire e as escolas de Manchester, eram, para Kuyper, os apologistas filosóficos do capitalismo industrial (Bratt, 2014, p. 7).
A partir da segunda metade do século XIX, os aspectos públicos e políticos dessa teologia neocalvinista se materializaram, especialmente na Holanda, tanto na tentativa de “recristianizar” a sociedade, reinventando um ideal nacional fundado em valores calvinistas e em oposição ao ideário liberal que buscava banir a religião do espaço público, quanto na apropriação política de noções teológicas como responsabilidade pessoal, sacerdócio universal e a lógica da “soberania das esferas” para resistir ao Estado. Esse “mito fundante”, em todos os sentidos, apresentava a teologia reformada não apenas como fonte de constitucionalismo e das liberdades individuais, mas como a verdadeira via revolucionária: “O resultado foi um argumento pela estabilidade e ordem, a partir de uma narrativa de resistência, rebelião e revolução — uma boa, cristã revolução” (Ibidem, p. 10).
Imagem gerada por IA (Dall-E)
Ao apostar no Calvinismo como uma fonte de mobilização e responsabilidade pessoal — ou seja, no engajamento ativo dos cristãos em questões de interesse comum, como saúde, educação e o cuidado dos pobres —, essa teologia ajudou a disseminar uma forma de espiritualidade conectada a uma visão abrangente do mundo: uma “graça comum” que se estende a todos os reinos da cultura. Nessa perspectiva, o neocalvinismo enxergava na segmentação ideológica da sociedade uma forma de resistência religiosa ao avanço da secularização, desconsiderando o poder das forças materiais em relação às ideias.
Sem demagogia, volto a me perguntar, após essas breves considerações, sobre a relevância dessa teologia para a compreensão do fenômeno religioso no Brasil. O neocalvinismo kuyperiano seria, em nosso contexto, uma apropriação política de temáticas religiosas ou uma religiosização politicamente conservadora do debate público? Até que ponto ele contribui para reforçar (ou até mesmo "desconstruir") as formas de representação vinculadas ao imaginário do assim chamado “mundo evangélico” contemporâneo?
De qualquer modo, o “kuyperianismo” é uma construção teológico política do século XIX, distanciando-se, inclusive, dos próprios ensinamentos de Calvino. Se, por um lado, a ideia de “cosmovisão cristã” se constitui como um subproduto ideológico dessa “formação discursiva”, ganhando hegemonia entre muitas lideranças evangélicas brasileiras no final do século XX e início deste século, por razões que ainda carecem de investigação, por outro, as formas confessionais (e ortodoxas) do Calvinismo não se confundem, necessariamente, com esses vetores político ideológicos, pois lhes são anteriores. Nessa perspectiva, o Calvinismo e o Iluminismo só se apresentam como “forças sociais contraditórias” quando analisados sob essa matriz ideológica conservadora. Como demonstrei em uma análise anterior, existem formas ilustradas de Calvinismo, inclusive na Holanda.
Referências
BRATT, J. “Abraham Kuyper and the French Revolution”. In: Harinck, G; Eglinton, James. “Neo-Calvinism and the French Revolution”. London, New York: Bloomsbury T&T Clark, 2014. cap. 1, p. 1-12.
VAN DER KOOI, C. “Calvin, Modern Calvinism, and Civil Society: The Appropriation of a Heritage, with Particular Reference to the Low Countries”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 13, pp. 267-281.
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