domingo, 3 de maio de 2020

Calvino e sua influência no mundo Ocidental


Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”, de Friedrich Wilhelm Graf, constitui-se num importante ensaio sobre as dimensões propriamente identitárias e culturais do calvinismo, principalmente no que concerne à importância da espiritualidade dita “reformada” (leia-se aqui: calvinista…) à formação do mundo moderno – e aos processos históricos de “modernização”. A propósito, trata-se, desde a época em que as pesquisas da “troika” Troeltsch-Weber-Jellinek foram realizadas, um tema recorrente tanto na área da “Teologia Política” quanto na Sociologia da Religião (cf. GRAF, 2011).

O estudo das ideias religiosas, especialmente no que diz respeito às especificidades da “teologia calvinista”, materializou-se, nos últimos duzentos anos, em diversos “padrões de interpretação”, possibilitando a constituição de “formas discursivas” e culturais distintas na Alemanha e no mundo de fala inglesa. Paradoxalmente, as diversas interpretações acadêmicas acerca de “Calvino e sua influência no mundo Ocidental”, para fazer referência ao título de uma obra publicada na década de 1990 pela então “Casa Editora Presbiteriana S/C”, a autopercepção de “calvinistas piedosos” e as representações históricas produzidas por teólogos e historiadores de todas as confissões cristãs, economistas, advogados, acadêmicos (e mesmo atores políticos) agem no cenário brasileiro numa outra direção, instituindo, nos termos laclaunianos da oposição fundamental entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência, um tipo de relação “nós”-“eles” dominado muitas vezes por paixões de natureza político-religiosa.

Embora as questões envolvendo a temática da confessionalidade sejam razoavelmente tardias, vale lembrar que a “terceira cultura confessional moderna” encontrou no termo “calvinismo”, de uso controverso até, digamos, o século XVIII, mas fortemente presente entre os “religiosamente” interessados, uma forma legítima de “autodesignação religiosa” (em oposição ao “catolicismo tridentino” e ao luteranismo). Num contexto fortemente marcado por polêmicas religiosas, a expressão está presente no ideário político-religioso europeu desde a segunda metade do século XVI, sendo, inclusive, encontrada numa carta do próprio Calvino a Heinrich Bullinger por ocasião das negociações que antecederam o “Consensus Tigurinus” – datada de 26 de junho de 1548 (ibidem, p. 256). Tornou-se, enfim, no âmbito da reflexão histórico sociológica recente, um “tipo-ideal” eficaz na compreensão daquelas igrejas confessionais não-luteranas que basearam sua experiência religiosa comunitária nos escritos confessionais da Reforma ou do período pós-reforma – como o Catecismo de Heidelberg (1563) e a Confissão de Fé de Westminster (1647).

João Calvino é considerado por muitos a principal referência intelectual da Reforma. Foto: Pixabay.com

Voltando ao argumento central de F. W. Graf, estabelece-se, no século XIX, no contexto de um segundo período histórico de “confessionalização” – e de reação aos resultados político-religiosos da Revolução Francesa –, uma profunda clivagem entre o “calvinismo da era confessional” e o neocalvinismo político e religioso moderno. Contra as formas místicas de espiritualidade, o calvinismo aparece aqui representado não apenas como uma “força social moral” dotada de um tipo de racionalidade que “atravessa” todos os meandros da vida cotidiana, disciplinando indivíduos, famílias, instituições e países, mas também, e principalmente, como uma “formação discursiva” a articular política, economia, ética e religião – uma forma de protestantismo radicalmente mais lógica, racional e dotada de “eficiência política”.

Aliás, essas afinidades, na teoria política “calvinista” do século XIX, expressaram-se tanto na busca pelas conexões existentes entre a análise da dimensão propriamente religiosa (as noções teológicas de vocação, “Imago Dei”, e liberdade cristã etc.; as formas institucionais independentes e autônomas – sínodos e presbitérios; uma ênfase exacerbada no indivíduo; entre outros elementos de natureza religiosa) e as outras “esferas de vida”, especialmente a esfera política, quanto nas formas de compreensão de um tipo bastante específico de subjetividade – constituído em meio à “ascese intramundana” de calvinistas piedosos.

Nesse contexto, as nossas modernas noções de “universalidade” (liberdades civis, federalismo, republicanismo, moralidade cívica e a noção de “direitos humanos”) e soberania popular não apenas se vincularão aos desenvolvimentos históricos de uma “esfera religiosa” relativamente autônoma com relação às outras esferas de vida e ação (política, economia, artes etc.). Atendendo a interesses religiosos e políticos bastante específicos do período pós-revolucionário, a contrapartida óbvia desse argumento, entre teólogos e juristas calvinistas do século XIX, residia na noção de que, no contexto do desenvolvimento das “liberdades democráticas”, nossa “virtude constitucional”, contra toda uma tradição baseada no formalismo liberal, tem em certas premissas morais ideais um fundamento ético seguro: liberdade religiosa e liberdade civil eram verso e anverso de uma mesma moeda.

Aqui vale, também, a advertência do autor: “Studies of Calvinism are a kind of self-conscious discourse on a modernity whose foundations have become uncertain” (ibidem, p. 256). De um ponto de vista meramente histórico, o argumento das “afinidades eletivas” também não se sustenta mais: estudos históricos recentes vieram a demostrar que príncipes alemães incentivavam a difusão das formas reformadas de espiritualidade precisamente porque suas características “teocráticas” e vinculativas fortaleciam a lealdade política. Nos termos do historiador marxista E. Hobsbawm, tudo não passa de uma “tradição inventada”.

O que dizer, então, daquele fervor autoritário, “orientado para a ordem,” segundo o autor, e facilmente encontrado nas teologias dos proeminentes pensadores neocalvinistas dos séculos XIX e XX (ibidem, p. 261)? Sem referências históricas precisas, o argumento evidentemente não nos autoriza a encaminhar o debate numa direção diametralmente oposta. De qualquer forma, as ambiguidades do calvinismo se materializaram num tipo de discurso que, ao longo do século XX, deixou-se “instrumentalizar” tanto no contexto de uma cruel “segregação racial”, na África do Sul, quanto num tipo de formação discursiva que, num apelo explícito à Declaração Teológica do Sínodo de Barmen (1934), visava fazer uma oposição religiosa ao Apartheid. Aqui, há “calvinistas e calvinistas”, suspeito. Uma mesma e única “ideologia religiosa”, diga-se de passagem, a sustentar visões diferentes de mundo...

Referências

BIÉLER, A. A força oculta dos protestantes. São Paulo, Cultura Cristã, 1999.
GRAF, F. W. “Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 12, pp. 255-266.
REID, W. S (Ed.). Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.

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