Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World, de Friedrich Wilhelm Graf, constitui-se como um ensaio notável sobre as dimensões identitárias e culturais do calvinismo, com especial atenção à importância da espiritualidade reformada (ou calvinista) na formação do mundo moderno e nos processos históricos de modernização. Desde as investigações conduzidas pela “troika” Troeltsch-Weber-Jellinek, este tema tem se mantido recorrente tanto na Teologia Política quanto na Sociologia da Religião (cf. GRAF, 2011).
Nos últimos duzentos anos, o estudo das ideias religiosas, em particular as especificidades da teologia calvinista, deu origem a diferentes “padrões de interpretação”, criando formas discursivas e culturais distintas na Alemanha e nos países de língua inglesa. Paradoxalmente, enquanto essas interpretações acadêmicas de “Calvino e sua influência no mundo ocidental” — título de uma obra publicada na década de 1990 pela Casa Editora Presbiteriana — refletiam a autopercepção dos “calvinistas piedosos” e as representações históricas produzidas por teólogos, historiadores, economistas, juristas e acadêmicos de várias confissões cristãs, no cenário brasileiro, o calvinismo seguiu uma direção diferente. No Brasil, essas interpretações institucionais e históricas frequentemente alimentam uma relação de confronto entre grupos, marcada por um sentimento de “nós contra eles”, como descreve Ernesto Laclau em sua teoria do discurso. Essa polarização é, muitas vezes, impulsionada por paixões de natureza política e religiosa.
Embora o debate sobre confessionalidade tenha emergido tardiamente, vale lembrar que a “terceira cultura confessional moderna” encontrou no termo “calvinismo” — controverso até meados do século XVIII — uma forma legítima de autodesignação religiosa, em oposição ao catolicismo tridentino e ao luteranismo. Desde o século XVI, a expressão está presente no vocabulário político-religioso europeu, sendo inclusive mencionada por Calvino em carta a Heinrich Bullinger, durante as negociações para o Consensus Tigurinus, datada de 26 de junho de 1548 (GRAF, 2011, p. 256). No campo da reflexão histórico-sociológica, "calvinismo" tornou-se um “tipo-ideal” útil para compreender aquelas igrejas confessionais não-luteranas que fundamentaram suas práticas religiosas em textos confessionais da Reforma e do período pós-reforma, como o Catecismo de Heidelberg (1563) e a Confissão de Fé de Westminster (1647).
Imagem: DALL-E
Friedrich Wilhelm Graf argumenta que, no século XIX, em um segundo período de confessionalização — marcado pela reação aos resultados da Revolução Francesa —, uma clivagem significativa se formou entre o calvinismo confessional da era moderna e o neocalvinismo político e religioso. O calvinismo, longe de ser uma espiritualidade mística, é apresentado como uma força social moral, dotada de uma racionalidade que permeia todos os aspectos da vida cotidiana, disciplinando indivíduos, famílias, instituições e nações. Além disso, configura-se como uma formação discursiva que articula política, economia, ética e religião, e se distingue como uma forma de protestantismo mais lógica, racional e eficiente em termos políticos.
No contexto da teoria política calvinista do século XIX, essas afinidades foram expressas na busca por conexões entre a dimensão propriamente religiosa — como as noções teológicas de vocação, Imago Dei, liberdade cristã, e formas institucionais autônomas como sínodos e presbitérios — e as demais "esferas da vida", especialmente a esfera política. Isso também se reflete na formação de um tipo específico de subjetividade moldada pela ascese intramundana dos calvinistas piedosos.
Nesse cenário, os conceitos modernos de “universalidade” — que incluem liberdades civis, federalismo, republicanismo, moralidade cívica e direitos humanos —, bem como a soberania popular, estão profundamente entrelaçados com o desenvolvimento histórico de uma esfera religiosa relativamente autônoma. No contexto pós-revolucionário, teólogos e juristas calvinistas do século XIX argumentavam que, no desenvolvimento das “liberdades democráticas”, as premissas morais ideais forneciam um fundamento ético seguro: liberdade religiosa e liberdade civil eram, afinal, duas faces da mesma moeda.
Graf também adverte: “Os estudos sobre o calvinismo são um tipo de discurso autoconsciente sobre uma modernidade cujas bases se tornaram incertas” (GRAF, 2011, p. 256). Sob uma perspectiva histórica, a tese das "afinidades eletivas" entre calvinismo e modernidade foi contestada por estudos recentes, que mostram que príncipes alemães incentivaram formas reformadas de espiritualidade precisamente porque suas características teocráticas reforçavam a lealdade política. Para o historiador marxista E. Hobsbawm, isso constitui uma “tradição inventada”.
O que dizer, então, do fervor autoritário, “orientado para a ordem”, que Graf identifica nas teologias de proeminentes pensadores neocalvinistas dos séculos XIX e XX (GRAF, 2011, p. 261)? Sem uma base histórica precisa, o argumento não nos autoriza a inverter a direção do debate. De qualquer forma, as ambiguidades do calvinismo se materializaram em um discurso que, ao longo do século XX, foi instrumentalizado tanto no contexto da segregação racial na África do Sul quanto na Declaração Teológica do Sínodo de Barmen (193), que se opunha ao Apartheid. Nesse sentido, podemos concluir que há “calvinistas e calvinistas”, onde uma mesma ideologia religiosa pode sustentar visões de mundo diametralmente opostas.
Referências
BIÉLER, A. A força oculta dos protestantes. São Paulo, Cultura Cristã, 1999.
GRAF, F. W. “Calvin in the Plural, The Diversity of Modern Interpretations of Calvinism, Especially in Germany and the English-Speaking World”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 12, pp. 255-266.
REID, W. S (Ed.). Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.