Entre História, Ideologias e Ressignificações no Brasil (e no Mundo)
O calvinismo, uma das tradições mais influentes da Reforma, demonstra-se historicamente dinâmico e multiforme ao longo de sua trajetória. Desde sua origem no pensamento de João Calvino, no século XVI, a tradição reformada passou por contínuas releituras e ressignificações, interagindo com diferentes contextos históricos, políticos e culturais. No Brasil, o presbiterianismo, como principal expressão do calvinismo, molda debates cruciais sobre política, sociedade e religião desde o século XIX, revelando uma relevância contemporânea complexa.
Uma Tradição Progressista e Conservadora
Historicamente, o presbiterianismo no Brasil desempenhou um papel de destaque em lutas sociais progressistas. No século XIX, missionários presbiterianos lideraram a defesa de causas essenciais, como a abolição da escravatura, a liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado. Essas lutas refletiam um calvinismo engajado com a transformação social, apesar de sua face pietista, isto é, com forte ênfase na conversão individual. Contudo, no século XX, especialmente durante o regime militar, essa tradição progressista foi eclipsada por uma vertente conservadora, que instrumentalizou a teologia reformada para justificar a repressão política e silenciar vozes dissidentes.
(Neo-)calvinismo e Teologia Pública no Brasil
Nos últimos anos, o neocalvinismo tem se manifestado de maneiras contrastantes no cenário global e no Brasil. No contexto global, inspirado pelos pensadores Abraham Kuyper e Herman Bavinck, o neocalvinismo busca promover justiça social por meio da “soberania das esferas”, articulando uma Teologia Pública que confronta desigualdade e exclusão de maneira não reativa. Essa corrente resgata a ideia de que cada domínio da vida — política, economia, cultura — deve funcionar segundo sua própria lógica interna, sem que uma esfera se sobreponha a outra, promovendo um equilíbrio que favoreça o bem-estar social.
Entretanto, no Brasil, esse neocalvinismo tem sido em parte cooptado por forças conservadoras, que reinterpretam suas propostas para legitimar agendas políticas reacionárias. Embora ainda conserve elementos de uma tradição reformada crítica, a sua apropriação por setores conservadores distancia-se de seu potencial emancipador original, servindo como ferramenta de legitimação para projetos políticos excludentes.
Teologia do Domínio: Uma Captura Conservadora
Essa dinâmica pode ser compreendida dentro de uma análise mais ampla das correntes contemporâneas do neocalvinismo, do Reconstrucionismo e da Teologia do Domínio, que se consolidaram como forças centrais no conservadorismo religioso brasileiro. Contrastando com o neocalvinismo, a Teologia do Domínio, amplamente defendida por movimentos neopentecostais, adota uma abordagem mais combativa e imediata. Defensores dessa vertente consideram que os cristãos têm o dever de conquistar diretamente as esferas de poder, como parte de uma “guerra espiritual”, cujo objetivo é implantar uma cosmovisão cristã nas instituições políticas e culturais. Ao contrário da gradualidade do neocalvinismo, a Teologia do Domínio promove uma polarização ativa, em que a ocupação das estruturas de poder é vista como um imperativo urgente, essencial para assegurar que as instituições reflitam princípios bíblicos conservadores.
Ao se aliar a essa visão, setores conservadores do calvinismo no Brasil adotam uma retórica que reforça uma estrutura hierárquica e excludente da sociedade, justificando projetos políticos que buscam subordinar as liberdades individuais a uma interpretação teológica rígida e autoritária. A Teologia do Domínio, assim, alimenta uma agenda conservadora que ameaça as bases pluralistas e democráticas da sociedade contemporânea, promovendo uma visão teocrática e polarizada, que visa à conquista de todas as esferas de poder.
No entanto, no plano das práticas sociais, essa distinção teórica tende a enfraquecer-se frente à sobreposição das agendas políticas e sociais no contexto do conservadorismo brasileiro (seja ele religioso ou secular), especialmente em torno de questões associadas ao “pânico moral”, como revela o Estado da Arte.
Imagem gerada por IA (DALL-E)
Fetichização contemporânea da Crença e Cosmovisão Reformada
Dentro desse contexto, emerge o fenômeno descrito por Slavoj Žižek como “fetichização da crença”. No Brasil, a noção de “cosmovisão reformada” tornou-se uma ferramenta retórica central em setores conservadores, consolidando uma identidade religiosa que se opõe a pretensos inimigos ideológicos como o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”. Embora originalmente concebida como uma forma crítica de engajamento com a sociedade, essa cosmovisão foi cooptada para sustentar agendas políticas reacionárias.
Nesse processo, a crença torna-se um “grande Outro”, uma construção que parece unir os fiéis sob uma identidade comum, mas que, na realidade, é uma unidade ilusória/ fantasmática, em termos pós estruturais. A fé transforma-se em um instrumento ideológico, justificando posições conservadoras enquanto se dissocia de sua função transformadora original.
Conclusão
O calvinismo, tanto no Brasil quanto em contextos globais, permanece uma tradição teológica rica e multifacetada. Enquanto correntes como o neocalvinismo e a Teologia Pública reformada oferecem uma alternativa para o engajamento social e a promoção da justiça, outras vertentes, como a Teologia do Domínio, revelam como essa tradição pode ser instrumentalizada para fins políticos conservadores. O desafio contemporâneo é reconhecer as múltiplas possibilidades que o calvinismo oferece e resistir às tentativas de captura ideológica que o afastam de seu potencial emancipador.
Para saber mais:
NOVAIS, Tiago de Melo; CAMPOS, Breno Martins. (2021), “Teologias do domínio: revisitando fontes e autorias”. Protestantismo em Revista, v. 47, n. 2, p. 29-40, jul./dez. Disponível em: https://revistas.est.edu.br/periodicos_novo/index.php/PR/article/view/2520/2081 Acesso em: Acesso em: 25 set. 2024.
SOUZA, Robson da Costa de. (2020), “A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada”. Reflexão, v. 45, e204792. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4792 .
SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2022), “Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista”. Religião e Sociedade, v. 42, n. 1, p. 37-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872021v42n1cap02 .
SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281
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