sábado, 26 de outubro de 2024

Paradigmas, Discursos e Revoluções: A Ontologia da Ressignificação em Agamben

No primeiro capítulo de Signatura Rerum, o filósofo Giorgio Agamben introduz o conceito de paradigma, destacando-o como uma estrutura que organiza o conhecimento e ao mesmo tempo permite sua transformação. A partir das ideias de Thomas Kuhn, Michel Foucault, Martin Heidegger e Platão, Agamben estabelece as bases epistemológicas e ontológicas dessa noção. Nos capítulos seguintes, ele amplia a análise ao explorar o paradigma em contextos de poder e historicidade, incorporando pensadores como Aby Warburg, Walter Benjamin, Franz Overbeck e Georges Dumézil para aprofundar as perspectivas cultural e histórica dessa estrutura.

O paradigma, para Agamben, revela-se não apenas como uma estrutura organizativa e normatizadora, mas como um dispositivo de inteligibilidade que, em sua repetição e normatividade, carrega também o potencial de ruptura e transformação. Esse duplo caráter do paradigma – enquanto estabilizador e desestabilizador – permite a Agamben situá-lo em uma zona de tensão constante, onde a normalidade e a interrupção coexistem de forma produtiva. A inteligibilidade proporcionada pelo paradigma não se sustenta em uma norma fixa, mas em um estado de suspensão, no qual o que é estabelecido está sempre à beira de se transfigurar.

Contudo, o papel do paradigma no pensamento de Agamben vai além de uma simples função epistemológica. Em Signatura Rerum, ele surge como um dispositivo fundamental tanto metodológico quanto ontológico, central para o projeto teórico de Agamben. O paradigma, no sentido mais profundo, atua como uma ferramenta de desarticulação das estruturas normativas da modernidade ocidental, revelando as condições subjacentes que moldam e restringem a vida e o pensamento. A análise paradigmática, assim, insere-se no compromisso de Agamben com a crítica das estruturas de poder e saber que configuram o sujeito e regulam a existência. A estrutura do paradigma, em sua obra, desvela uma dialética de normatividade e suspensão que traz à tona as zonas de indeterminação que permeiam o ser e o saber, possibilitando uma compreensão radical da realidade enquanto espaço de potencialidade.

Agamben começa sua análise com a concepção de paradigma em Thomas Kuhn, que define o termo como fundamento da “ciência normal”, estruturando um conjunto de práticas, problemas e valores aceitos pela comunidade científica. Para Kuhn, o paradigma não é uma regra explícita, mas um modelo que estabiliza o campo científico, possibilitando avanços enquanto a normatividade permanece questionada apenas indiretamente. Essa estabilidade, porém, traz consigo o potencial de ruptura: quando os fenômenos não explicáveis pelo paradigma se acumulam, ocorre uma crise que impulsiona uma revolução científica, onde o paradigma é substituído por um novo conjunto de pressupostos. Agamben vê, nessa oscilação entre estabilidade e substituição, uma tensão central para entender o paradigma, que age como “exemplo paradigmático” – tal como o Principia de Newton, que orientou a física por séculos, o paradigma é um modelo de repetição. Contudo, é justamente essa repetição que expõe suas limitações e o leva a ser ultrapassado, desafiando a normalidade que ele mesmo organiza. Essa interpretação de Kuhn permite a Agamben fundamentar a ideia do paradigma como uma estrutura essencialmente dinâmica e instável, onde a capacidade de adaptação e renovação desafia qualquer concepção rígida de normatividade.

Quando Agamben volta-se a Foucault, o paradigma desvia-se do campo científico para situar-se no centro das práticas sociais e do poder. Embora Foucault evite o termo “paradigma”, preferindo “positividades” e “problematizações”, Agamben argumenta que ele usa um método paradigmático ao analisar dispositivos de poder como o panóptico, que não apenas disciplina corpos e mentes, mas se estrutura como um modelo replicável de normalização social. A vigilância no panóptico opera em uma zona de suspensão: o sujeito não sabe se está sendo observado, o que cria um estado de incerteza que o conduz à autorregulação. A prática de vigilância, então, é uma normatização que ocorre na suspensão, onde o controle é ao mesmo tempo estabelecido e questionado pela dúvida constante. O panóptico é um exemplo claro de como a normalidade pode estar fundamentada numa suspensão – o paradigma estabiliza o comportamento enquanto o mantém instável pela possibilidade de punição invisível. Para Agamben, o paradigma foucaultiano evidencia que o poder disciplinar, tal como o paradigma kuhniano, depende dessa tensão entre presença e ausência, entre a normatização e a possibilidade de ruptura.

Ao incorporar Heidegger, Agamben aprofunda a dimensão ontológica do paradigma, explorando o círculo hermenêutico como uma estrutura paradigmática de pré-compreensão que orienta a interpretação. Em Heidegger, a interpretação nunca é neutra, mas ocorre a partir de uma prática já orientada por uma compreensão anterior. Esse movimento circular contém uma suspensão interna: a interpretação, ao tornar-se consciente de sua limitação, abre-se à possibilidade de uma nova compreensão. O paradigma, então, opera como um “círculo de luz”, que revela o fenômeno sem fixá-lo. Agamben interpreta o círculo hermenêutico como uma prática que ilumina e, simultaneamente, desestabiliza o fenômeno, onde a pré-compreensão se coloca em questão ao confrontar-se com a abertura ao novo. Com Heidegger, Agamben sugere que o paradigma não é apenas uma ferramenta interpretativa, mas uma condição ontológica de possibilidade para a compreensão, que se realiza em um estado de tensão entre a normalidade da compreensão estabelecida e a suspensão que permite a emergência de novos significados.

A análise de Agamben se expande ao resgatar a perspectiva paradigmática platônica, onde o paradigma opera como uma prática suspensa entre o ideal e o real. Platão sugere que o paradigma é um “exemplo de si mesmo”, onde o artesão, ao construir uma cama, intui uma ideia sem necessidade de regras explícitas, participando de uma forma ideal. Esse exemplo é fundamental para Agamben, pois mostra que o paradigma não fixa o sentido na norma, mas o realiza num espaço de indefinição, conectando o particular e o universal. O paradigma platônico não é apenas um caso representativo; ele ilumina tanto a singularidade quanto a totalidade sem reduzi-las uma à outra, possibilitando que o conceito se realize e se transfigure. Para Agamben, o paradigma platônico estabelece-se numa zona de tensão entre prática e ideal, onde a prática normativa é, simultaneamente, uma abertura para o novo.

Quando Agamben introduz Aby Warburg e Walter Benjamin, o paradigma se expande para o campo da imagem e da história, situando-se no conceito de “imagem intensiva”, que suspende a cronologia linear e revela descontinuidades no tempo histórico. Warburg, ao construir o Atlas Mnemosyne, utiliza imagens como paradigmas culturais que conectam diferentes momentos históricos e revelam intensidades comuns em tempos e contextos distintos. Benjamin, por sua vez, traz a ideia de “imagens dialéticas” para indicar a descontinuidade da história, composta por momentos de ruptura e intensidade. Para Agamben, o paradigma imagético suspende a linearidade do tempo e cria uma conexão que estabiliza e abre à interpretação, desafiando a continuidade histórica e estabelecendo rupturas que permitem novos entendimentos. O paradigma, aqui, estabiliza o sentido histórico enquanto o mantém em suspensão, pronto para ser ressignificado.

Na obra de Overbeck e Dumézil, o paradigma adquire uma função crítica em relação à tradição e à permanência, onde a noção de Urgeschichte desestabiliza a linearidade e propõe uma arqueologia do sentido. Overbeck sugere que a história é uma camada arqueológica que expõe significados ocultos, enquanto Dumézil vê o paradigma como estrutura cultural que se estabiliza em práticas rituais e mitológicas, mas que, ao ser reinterpretada, se atualiza. Para Agamben, o paradigma opera como uma arqueologia, revelando camadas de sentido que a tradição linear obscurece. Ele estabelece-se na tradição, mas é transformado ao ser revisitado. O paradigma histórico e mitológico, portanto, estabiliza o tempo cultural enquanto abre espaço para a ressignificação e a inovação.

O desenvolvimento da noção de paradigma em Signatura Rerum insere-se no projeto teórico mais amplo de Agamben, no qual o paradigma opera como dispositivo de suspensão e revelação, indo além de um modelo ou exemplo. No cerne do pensamento agambeniano está o comprometimento com a crítica das estruturas de poder e de normatividade que configuram a vida. Em Homo Sacer, por exemplo, ele explora o homo sacer como um paradigma de exclusão, uma figura paradigmática que revela a dialética entre inclusão e exclusão que define o poder soberano. A figura do homo sacer não é meramente ilustrativa, mas um paradigma ontológico que torna visível a zona de indeterminação entre a vida que é incluída no sistema jurídico e a vida que é suspensa, revelando a fragilidade e a arbitrariedade da soberania.
Imagem: DALL-E

Em O Reino e a Glória, o paradigma da oikonomia (οἰκονομία ) exemplifica como as operações de poder e governo são estruturadas e estabilizadas. O paradigma econômico, para Agamben, revela uma dimensão do poder que não apenas governa, mas que é, simultaneamente, governado pela própria lógica de gestão e de suspensão. O paradigma não apenas esclarece a historicidade das estruturas de poder, mas permite compreender o governo como um processo contínuo que está em suspenso, pronto para ser desarticulado e transfigurado.

Assim, a análise paradigmática em Agamben revela-se não apenas como uma estrutura metodológica, mas como uma ontologia da potencialidade, onde o ser e o saber permanecem em um estado de abertura e indeterminação, estruturados e, simultaneamente, desestruturados pelas forças que os moldam. O paradigma transcende a função de estabilizar o conhecimento para tornar-se uma condição de possibilidade para a transformação e a ressignificação. Ele opera como um “organizador invisível”, revelando as zonas de potencialidade entre norma e exceção, o visível e o invisível, a estabilidade e a ruptura. Agamben, ao conceber o paradigma como uma estrutura ontológica, propõe que a realidade política, social e histórica deve ser compreendida como uma série de potencialidades em suspenso, onde a estabilidade se conecta constantemente à possibilidade de revolução e ressignificação.

No contexto do eixo paradigmático, a ressignificação dos discursos e das revoluções surge como um processo essencialmente vinculado ao potencial disruptivo que o paradigma contém em sua própria estrutura. Para Agamben, o paradigma não é apenas um modelo que organiza práticas e saberes de forma estática; ele é uma matriz de inteligibilidade que permite que cada discurso e prática sejam constantemente reinterpretados e atualizados, mantendo-se em uma zona de tensão entre normatividade e transformação. Essa característica faz com que o paradigma não seja apenas uma referência ao passado, mas uma abertura contínua para o futuro, possibilitando a ressignificação dos elementos discursivos e revolucionários que define.

Discursos, nesse sentido, não são unidades fixas, mas fenômenos paradigmáticos que, ao serem reiterados, carregam em si o germe da diferença e da inovação. A cada nova enunciação, o discurso encontra-se aberto a alterações e desvios, permitindo que o que é dito e o que é silenciado se reorganize de maneira inesperada. Analogamente, as revoluções, quando lidas sob o prisma paradigmático, não se resumem à substituição de um sistema por outro, mas revelam a possibilidade de uma reestruturação mais ampla das condições de possibilidade de sentido, em que o próprio ato revolucionário se redimensiona enquanto prática de abertura e interrupção. Assim, a revolução, como um fenômeno paradigmático, não só desloca estruturas estabelecidas, mas também ressignifica o entendimento da mudança, inscrevendo-se como um potencial sempre presente na dinâmica dos discursos. Agamben, ao conceber o paradigma como um eixo capaz de manter-se entre a normalidade e a ruptura, reconfigura o próprio sentido de revolução e discurso: ambos tornam-se processos abertos e contingentes, onde a ressignificação é não apenas uma possibilidade, mas uma condição constitutiva.

Para o discurso teológico, especialmente no contexto da tradição calvinista, a leitura paradigmática agambeniana oferece um horizonte promissor de interpretação e ressignificação. A teologia calvinista, centrada em princípios doutrinários rigorosos (e na exegese profunda das Escrituras), pode parecer, à primeira vista, estruturada de forma fixa e imutável. No entanto, ao aplicar o conceito de paradigma, é possível compreender esses princípios não apenas como normas dogmáticas, mas como matrizes de inteligibilidade que, em sua repetição, criam espaço para abertura e renovação. Nesse sentido, a doutrina da predestinação ou a visão calvinista sobre a soberania divina, por exemplo, não precisam ser entendidas exclusivamente como sistemas rígidos, mas podem ser reinterpretadas como práticas paradigmáticas que contêm o potencial de ressignificação. Cada exegese, cada interpretação dos textos fundamentais e cada liturgia são enunciações que, ao serem reiteradas, oferecem a possibilidade de novos significados e adaptações aos contextos contemporâneos. A teologia, assim, pode ser vista como um campo paradigmático que preserva a tradição enquanto mantém a potencialidade de uma renovação autêntica e significativa. Agamben, ao conceber o paradigma como um eixo que opera entre normatividade e interrupção, sugere que o próprio discurso teológico, mesmo em uma tradição de ordem e disciplina como o calvinismo, pode manter-se entre a estabilidade doutrinária e a abertura ao novo, onde a ressignificação e a continuidade caminham juntas.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum: sobre el método. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Barcelona: Editorial Anagrama, 2008.

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