O Mistério Revelado e a Predestinação
De momento, desejo apenas conseguir de todos os homens em geral que não esquadrinhemos nem queiramos saber o que o Senhor escondeu e não deseja que se sabia; e que não menosprezemos o que Ele nos manifestou e declarou com sua Palavra; e isso, para que, por um lado, não sejamos condenados por nossa excessiva curiosidade e, por outro, por nossa ingratidão. Porque Agostinho diz muito bem que podemos seguir a Escritura com toda segurança, pois ela, como uma mãe com seu filho, vai conhecendo pouco a pouco a nossa fraqueza, para não nos deixar para trás (João Calvino).
Em suas Institutio Christianae Religionis, João Calvino concebe a revelação como um ato de condescendência divina, no qual Deus, ao comunicar-se com a humanidade, adapta-se às nossas limitações cognitivas – Os altos mistérios do reino dos céus transmitidos “por meio de palavras em geral simples e pouco eloquentes” (Institutas, I.1.23; edição francesa de 1541). Ele o faz por meio de uma linguagem acessível, algo que Muller (2000) descreve como parte fundamental da teologia reformada de Calvino.
Por isso, Calvino, em sua teologia, coloca uma ênfase significativa na acomodação divina (condescendência) e no testemunho interno do Espírito Santo (testimonium Spiritus Sancti internum) – “O testemunho do Espírito é superior a toda razão” (Calvino, 2008, p. 74). Deus, ao descer ao nível da compreensão humana, utiliza-se de uma linguagem limitada, expressa no Verbum Dei (ὁ λόγος τοῦ θεοῦ). Essa linguagem, embora instrumental para a comunicação da vontade divina, não pode esgotar a essência de Deus, permanecendo incapaz de revelar a totalidade do mistério divino. A revelação, para Calvino, é, portanto, um ato de acomodação divina que permite ao ser humano conhecer a vontade de Deus dentro dos limites da nossa compreensão.
Segundo Calvino, é por meio da Palavra de Deus – que inclui tanto a Escritura quanto a pregação – que Deus se revela, ajustando-se às nossas limitações. Além disso, Richard A. Muller, em The Unaccommodated Calvin, destaca a importância do conceito de Verbo em Calvino, ressaltando que a Palavra tem um caráter performativo e criador: o Lógos não apenas comunica verdades, mas é a força através da qual o mundo é sustentado. Nessa perspectiva, Calvino defende que Deus, por meio do Lógos, fala ao ser humano não apenas nas Escrituras, mas também na criação.
Aqui, ambas as formas de revelação são marcadas pela apofaticidade – ou seja, aquilo que é revelado aponta para a vastidão do que permanece oculto. A revelação, em última instância, não oferece uma visão completa da essência divina, mas uma janela limitada, adaptada à nossa capacidade de compreensão. A apofaticidade (do grego ἀποφατικός, “negativa”) está, portanto, no cerne da revelação calvinista: aquilo que é revelado é sempre parcial e, paradoxalmente, aponta para aquilo que não pode ser revelado. Para Calvino, o divino transcende a linguagem e, portanto, o conhecimento humano.
A propósito, Calvino aborda a predestinação como um dos maiores mistérios da fé cristã, algo que, embora revelado nas Escrituras, nunca pode ser plenamente compreendido. A doutrina da predestinação, segundo Calvino, é uma verdade revelada, mas que permanece envolta em um véu de mistério: “não é dado aos mortais penetrar os segredos de Deus” (Calvino, 2009, p. 379). A soberania de Deus na escolha dos eleitos não pode ser plenamente compreendida pelo ser humano, e qualquer tentativa de penetrar nos mistérios da vontade divina leva à confusão e ao erro (“labirinto do qual não se pode sair”). A revelação de Deus na predestinação é, portanto, uma revelação que aponta para os limites da racionalidade humana (Institutas, III.21.4).
Portanto, a revelação de Deus, em Calvino, é ao mesmo tempo clara e misteriosa. Ela nos dá o que precisamos para viver com fé, mas a essência divina (ousia οὐσία) permanece sempre além de nossa plena compreensão, o que reflete a noção de apofaticidade – o reconhecimento de que não podemos expressar completamente o divino; há sempre um mistério que permanece, um mystérion (μυστήριον) velado.
Revelação, Linguagem e Apofaticidade em Giorgio Agamben
No capítulo dedicado à ideia de revelação em “A Potência do Pensamento”, Giorgio Agamben apresenta uma análise densa e sofisticada sobre o conceito de revelação e seu vínculo intrínseco com a linguagem, abordando-o a partir de uma perspectiva ontológica e teológica que permeia as tradições filosóficas ocidentais. O autor propõe que a revelação se caracteriza por uma relação de exterioridade e heterogeneidade em relação à razão humana. Diferentemente de outras formas de conhecimento, a revelação não pode ser apreendida ou reduzida às operações racionais ou ao discurso convencional da linguagem humana. Ela emerge de um horizonte que transcende a razão e revela um conhecimento que não apenas não poderia ser acessado sem a intervenção da própria revelação, mas que condiciona, fundamentalmente, a possibilidade de todo conhecimento e experiência do ser.
Agamben (2015), ao refletir sobre o conceito de revelação, remete-se à tradição cristã e judaica, sugerindo que ambos os sistemas teológicos identificam a revelação como o “Verbo de Deus” (ho Lógos tou Theoû, ὁ λόγος τοῦ θεοῦ) ou como o “nome de Deus” (onoma Theoû, ὄνομα τοῦ θεοῦ). Nessa chave, ele cita São Paulo (Romanos 16:25-26) e a tradição cristã para argumentar que o "mistério revelado" (mystérion, μυστήριον) não se refere a um evento empírico particular, mas à própria manifestação da Palavra divina. Essa revelação, para Agamben, não consiste em uma simples proposição que poderia ser enunciada ou analisada pela lógica, mas sim no desvelamento da própria possibilidade de enunciar e conhecer. Desse modo, a revelação não revela algo objetivo, isolado e distinto, mas a própria condição ontológica e epistemológica que permite a existência da linguagem e do conhecimento. A revelação, nesse contexto, tem um caráter primordial, ao revelar o fundamento do próprio ato de conhecer.
Ao aprofundar sua argumentação, Agamben sugere que a revelação comporta uma dimensão paradoxal: o ser humano é capaz de ver o mundo por meio da linguagem, mas é incapaz de ver a própria linguagem. Há, portanto, uma invisibilidade inerente ao que ele chama de “o revelante” no que é revelado. A linguagem, embora possibilite a mediação de todo o real, permanece invisível ao sujeito que a emprega para conhecer o mundo. Nesse ponto, Agamben aproxima-se de um tópico central na teologia negativa: a revelação é, simultaneamente, o seu próprio velamento. Deus, ao se revelar, também se oculta em sua incompreensibilidade. Esta noção de “velamento na revelação” expressa, para Agamben, a essência da revelação divina: não se trata de uma verdade específica que se dá ao conhecimento, mas da abertura para o próprio processo de revelação que permite ao ser humano acessar o mundo através da linguagem.
Nesse contexto, Agamben recupera uma formulação clássica do cristianismo: en archê ên ho Lógos (ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος), “No princípio era o Verbo”. Ele interpreta essa formulação não como uma simples doutrina teológica, mas como uma afirmação ontológica sobre a natureza primordial da linguagem. A estrutura trinitária de Deus – tradicionalmente compreendida como Pai, Filho e Espírito Santo – seria, na verdade, uma metáfora da autorrevelação da linguagem. A palavra, ao não pressupor nada além de si mesma, revela-se em seu próprio desdobramento autorreferencial. Nesse sentido, a revelação é a própria manifestação da linguagem que, ao ser o “princípio”, não pode ser explicada por algo que a transcenda. A palavra é, por si só, a revelação e não pressupõe qualquer instância externa que a fundamente.
No desenvolvimento dessa argumentação, Agamben se volta para o famoso argumento ontológico de Anselmo, buscando reinterpretá-lo. Embora tradicionalmente se entenda que o argumento tenta provar a existência de Deus através da ideia de que o conceito de Deus implica sua existência, Agamben argumenta que tal raciocínio ontológico se aplica mais propriamente à linguagem. A linguagem, diz ele, é a única entidade cuja nomeação implica necessariamente sua existência. Se os seres humanos falam e se entendem, isso já pressupõe a existência da linguagem como um fato fundamental. Assim, Agamben sugere que a revelação é, essencialmente, a revelação de que a linguagem existe. Não se trata, portanto, de um conteúdo específico, mas da manifestação do próprio meio pelo qual todo conteúdo pode ser enunciado e conhecido.
Ao abordar a relação entre linguagem e revelação, Agamben nos convida a uma reflexão sobre os limites da linguagem e da compreensão. Ele argumenta que a revelação, enquanto fenômeno que permite o conhecimento, está sempre além do alcance da tematização discursiva. O próprio fato de que o ser humano é capaz de conhecer e falar é, por si só, o conteúdo da revelação. Contudo, a linguagem – sendo o veículo da revelação – não pode ser plenamente capturada ou tematizada por um discurso que se volte para ela. Neste ponto, Agamben encontra uma ressonância com o pensamento pós-estruturalista, particularmente com a crítica de Derrida ao logocentrismo, que problematiza a tentativa de se construir uma metalinguagem capaz de descrever e transcender a linguagem.
Todavia, Agamben ultrapassa as limitações dessa crítica ao reconhecer que, embora a linguagem seja o "princípio" absoluto, esse reconhecimento também marca o limite do entendimento humano. O ato de nomear e conhecer é, em última instância, limitado pelo próprio caráter da linguagem como condição primordial do ser. A revelação, assim, coloca-nos diante de uma abertura radical para o conhecimento, mas também nos confronta com os limites dessa abertura, uma vez que a linguagem, sendo ao mesmo tempo o meio e o fim do conhecimento, não pode ser transcendida.
No encerramento de sua reflexão, Agamben afirma que a revelação da linguagem nos impele a reconsiderar nossa posição existencial. Ao compreender que a linguagem está no princípio de toda experiência e que a revelação divina não é outra coisa senão a revelação desse princípio, o filósofo nos convida a repensar a relação entre ser e linguagem. Estamos, de fato, imersos em um mundo que só se revela através da linguagem, mas essa revelação, ao mesmo tempo que abre a possibilidade de conhecer, oculta a estrutura fundamental da própria linguagem. A linguagem, portanto, não é apenas um instrumento de comunicação ou expressão, mas a própria condição de possibilidade de todo conhecimento.
Dessa maneira, Agamben, em “A Potência do Pensamento” oferece uma análise rica e complexa da relação entre revelação, linguagem e conhecimento. Ele nos convida a refletir sobre os limites da razão humana, ao passo que reconhece a linguagem como o centro de toda experiência do mundo. A revelação, longe de ser uma proposição teológica isolada, é a manifestação do próprio ser por meio da linguagem, que revela e oculta simultaneamente, marcando os contornos da condição humana na busca pelo conhecimento.
Um antídoto ao literalismo e ao biblicismo fundamentalista?
O biblicismo e o fundamentalismo geralmente se baseiam na crença de que a Bíblia deve ser interpretada literalmente, como uma verdade imutável e diretamente acessível. Eles tendem a ver as Escrituras como um conjunto de proposições claras e definitivas que podem ser compreendidas de maneira objetiva por qualquer leitor. Isso leva a uma compreensão reduzida e estática da revelação, onde o mistério é minimizado (ou mesmo ignorado), e a fé é muitas vezes vista como algo que deve ser aceito sem necessidade de interpretação (ou discernimento espiritual).
Em contraste, tanto Calvino quanto Agamben oferecem visões da revelação que estão profundamente enraizadas no mistério e na compreensão de que a revelação divina ou da linguagem não pode ser totalmente capturada por uma leitura literal ou fundamentalista. Para Calvino, o mistério de Deus e a necessidade do Espírito Santo para autenticar a revelação mostram que há mais na fé do que uma adesão cega a proposições literais. Para Agamben, a revelação é um fenômeno complexo que envolve a própria estrutura da linguagem e está sempre parcialmente oculta.
Conclusão
Assim, ao articular as conclusões de Agamben e Calvino, observamos que ambos partilham uma visão da revelação como algo que, ao desvelar, também oculta. Para Agamben, a linguagem é o meio da revelação e, ao mesmo tempo, o que escapa à compreensão completa; para Calvino, a revelação de Deus acomoda-se à limitação humana, mas sempre guarda um mistério que transcende qualquer tentativa de compreensão plena. A apofaticidade, portanto, define a natureza tanto da linguagem quanto do divino, impondo ao ser humano a necessidade de humildade diante do mistério.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. (2015), A potência do pensamento: Ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica.
CALVINO, João. (2008), A Instituição da Religião Cristã, Tomo I: Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP.
CALVINO, João. (2009), A Instituição da Religião Cristã, Tomo II: Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP.
CALVINO, João (2006), As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, v. 4.
MULLER, Richard A. (2000), The Unaccommodated Calvin: Studies in the Foundation of a Theological Tradition. Oxford: Oxford University Press.
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