A Reforma Protestante e a temporalidade do “futuro anterior”
Com o passar dos séculos, eventos como a Reforma Protestante correm o risco de serem fixados como meros marcos históricos, encerrados em um passado distante. No entanto, se adotarmos a perspectiva dialética hegeliana, conforme reinterpretada por Slavoj Žižek em “Menos que Nada”, veremos que a Reforma não pode ser vista como um evento finalizado no século XVI. Ao contrário, eventos históricos dessa magnitude precisam ser entendidos através da lente do “futuro anterior”, ou seja, uma forma de temporalidade na qual o verdadeiro significado de um evento só se revela retrospectivamente, a partir de seus desdobramentos no futuro.
De acordo com o teórico esloveno, o sentido pleno de um evento como a Reforma não está contido em seu momento de ocorrência, mas continua a se desdobrar ao longo da história. O conceito de retroatividade dialética sugere que, longe de ser um episódio encerrado, a Reforma Protestante “acontece” continuamente, pois suas implicações e contradições se revelam (e se reconfiguram) em novos contextos históricos. Esse “futuro anterior” implica que a Reforma não apenas teve efeitos em sua época, mas continua a impactar a subjetividade, a política e a religiosidade contemporâneas.
Assim, ao perguntarmos se ainda há sentido em comemorar a Reforma, devemos evitar uma celebração de um evento fixado no passado. Em vez disso, o aniversário da Reforma pode ser uma oportunidade para refletir sobre como suas tensões fundamentais — entre liberdade e autoridade, fé e razão, indivíduo e comunidade — ainda estão em curso. O impacto da Reforma, como veremos, não é algo que se esgotou em suas consequências históricas imediatas, mas algo que continua a se desdobrar dialeticamente, permitindo novas interpretações e reconfigurações discursivas.
A Reforma como processo dialético inacabado
Sob a perspectiva dialética, a Reforma Protestante deve ser vista não como um evento isolado, mas como um processo dialético marcado por momentos de ruptura, negação e superação (Aufhebung). Ao romper com a autoridade centralizada da Igreja, Martinho Lutero e os reformadores introduziram uma nova ordem simbólica, redefinindo a relação entre o crente e Deus. No entanto, como S. Žižek nos lembra, essa negação da mediação clerical não resolveu todas as tensões, mas gerou novas formas de subjetividade e novas contradições internas no cristianismo.
Ao invés de liberar completamente o sujeito da autoridade religiosa, a Reforma reorganizou essas relações. O indivíduo, agora em contato direto com as Escrituras, enfrentou novas formas de alienação e fragmentação, exemplificadas tanto pelas divisões doutrinárias que surgiram no seio do protestantismo de modo geral, como também internas a cada tradição de forma particular. Essas divisões são um reflexo do caráter inacabado da Reforma, um processo dialético que não chega a uma síntese final, mas continua a gerar tensões e transformações.
Além disso, o impacto da Reforma se estendeu para além do campo religioso. A dialética da secularização, que veremos a seguir, também faz parte desse desdobramento. A Reforma, ao dessacralizar certas práticas (e ao enfraquecer a autoridade institucional da Igreja), abriu caminho para o surgimento de esferas autônomas de atuação social, como a política e a economia. No entanto, a secularização não deve ser entendida como o fim da religião, mas como uma nova fase dialética, onde as contradições entre o sagrado e o secular continuam a operar.
Imagem: DALL-E
A secularização, conforme interpretada sob uma ótica dialética, é uma manifestação direta das tensões geradas pela Reforma. A ruptura com a autoridade central da Igreja não resultou simplesmente em um afastamento da religiosidade, mas em uma reconfiguração das esferas de poder e autoridade. Ao transferir o foco da mediação eclesiástica para a consciência individual, a Reforma inadvertidamente abriu espaço para o crescimento de uma esfera pública secular, onde questões políticas e sociais poderiam ser discutidas sem a tutela direta da Igreja.
Žižek nos ajuda a entender que a secularização, em vez de representar o fim da religião, expressa uma nova fase de seu desdobramento dialético. A modernidade secular é moldada pelas mesmas tensões e contradições que a Reforma trouxe à tona. A pluralidade religiosa, o desencantamento do mundo e a autonomia das esferas política e econômica são, em grande parte, resultados da liberação do indivíduo da autoridade religiosa central, mas essa liberação trouxe consigo uma nova forma de alienação secular. O sujeito moderno, agora imerso em um mundo de escolhas plurais e sem uma estrutura simbólica unificada, continua a enfrentar as consequências de um processo inacabado de secularização.
Assim, a secularização não deve ser vista como uma ruptura radical entre o sagrado e o secular, mas como uma continuidade do processo dialético iniciado pela Reforma. A subjetividade moderna, moldada pela secularização, ainda carrega consigo as marcas das contradições religiosas reveladas por esse processo. Tanto o crente secularizado quanto o ateu religioso não são totalmente independentes da tradição religiosa (ou da secularidade em sentido estrito), mas vivem uma relação dialética com essas heranças, na qual as tensões entre fé e razão, indivíduo e comunidade, continuam a moldar suas experiências.
A Dialética Hegeliana: O indivíduo e a estrutura em movimento
Uma das críticas comuns à abordagem dialética de processos históricos como a Reforma é o risco de “estruturalizar” a relação entre indivíduo e sociedade, ou entre crente e Igreja. No entanto, S. Žižek, ao reinterpretar Hegel e Lacan, oferece uma saída para essa armadilha estruturalista, ao insistir que as estruturas sociais e simbólicas nunca são estáveis ou fechadas. Pelo contrário, elas estão sempre atravessadas por contradições internas que permitem a ação do sujeito.
O indivíduo, dentro dessa visão, não é um agente passivo, determinado pela estrutura. Ao contrário, ele emerge justamente nos pontos de falha ou negatividade dentro das estruturas. O sujeito é o produto dessas falhas internas, e é por meio delas que ele pode atuar de forma transformadora. No contexto da Reforma, figuras como Lutero e Calvino não estavam simplesmente desafiando a estrutura da Igreja a partir de fora; suas ações surgiram de dentro das contradições internas do sistema religioso, que já estava tensionado pelas crises doutrinárias e institucionais da época.
Ao invés de “estruturalizar” rigidamente a relação entre indivíduo e sociedade, a dialética hegeliana, conforme adotada por S. Žižek, vê essa relação como aberta e dinâmica. A estrutura social nunca é totalizante, pois contém em si mesma as condições para sua própria transformação. O sujeito moderno, moldado pelas tensões da Reforma e da secularização, continua a atuar dentro de estruturas que estão em constante movimento. O indivíduo, portanto, é tanto produto (efeito) quanto agente de transformação das estruturas religiosas e sociais.
Conclusão: A Reforma ainda não acabou
À luz dessa leitura dialética, podemos concluir que a Reforma Protestante ainda não chegou ao seu fim. Suas tensões e contradições continuam a moldar tanto o mundo religioso quanto o secular. O aniversário da Reforma, portanto, deve ser visto não como uma comemoração de um evento passado, mas como uma oportunidade de refletir sobre sua continuidade. A Reforma, ao abrir o espaço para novas formas de subjetividade e para a secularização, permanece um processo em curso, cujo desfecho está sempre em aberto: Ecclesia reformata, semper reformanda est.
Seguindo a lógica do futuro anterior, o verdadeiro significado da Reforma só pode ser plenamente compreendido à medida que novas configurações históricas e sociais emergem, tanto no contexto global como em contextos locais. A relação dialética entre indivíduo e estrutura, entre o crente e a Igreja, e entre o sagrado e o secular, permanece em movimento. A Reforma, assim, ainda está acontecendo — suas reverberações continuam a moldar o presente e o futuro. Com isso, reconhecemos que a Reforma, longe de ser um evento encerrado, ainda não acabou.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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