"A Lei é um açoite para esta carne, pelo qual, como um asno inerte e tardo, é impelida para a obra; ou melhor, para o homem espiritual, uma vez que ainda não se livrou do peso da carne, será um aguilhão contínuo que não se permita o que ele deseja"."O que seria menos amável do que a Lei unicamente atormentar as almas, com exigências e ameaças, pelo medo e oprimi-las pelo terror? Davi mostra que tenha tomado para si um Mediador na Lei, sem o qual não há diversão ou leveza".João Calvino"A ambiguidade básica da religião tem uma raiz mais profunda do que qualquer das demais ambiguidades da vida, pois religião é o ponto no qual é recebida a resposta à busca do que é sem-ambiguidade. Religião nesse sentido (isto é, no sentido da possibilidade de o homem receber essa resposta) é sem-ambiguidade; a recepção real, de fato, é profundamente ambígua, pois ocorre nas formas cambiantes da existência moral e cultural do homem. Essas formas participam do sagrado ao qual apontam, mas não são sagradas em si mesmas. Se reivindicam ser sagradas em si mesmas, acabam se tornando demoníacas exatamente por causa disso (...)".Paul Tillich
Paul Tillich (1886-1965), um dos mais influentes teólogos do século XX, desenvolveu uma obra profundamente marcada pela tentativa de superar as dicotomias tradicionais da filosofia e da teologia, oferecendo uma abordagem que pode ser considerada radicalmente eclética e integradora. Seu pensamento reflete uma vasta gama de influências, desde o idealismo alemão, o existencialismo, o realismo ontológico, até a teologia liberal, passando por correntes críticas como o neokantismo e o movimento dialético. Sua teologia sistemática é moldada por esse diálogo entre tradições filosóficas e teológicas, que Tillich sintetiza em um sistema coerente, porém aberto, que responde às questões existenciais e à realidade cultural de seu tempo.
Influenciado pelo idealismo alemão de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Friedrich Schelling (1775-1854), Tillich desenvolveu uma visão dialética da teologia, em que a verdade emerge da tensão entre opostos, como ser e não-ser, transcendência e imanência. Ao mesmo tempo, ele absorve elementos do existencialismo de Søren Kierkegaard (1813-1855) e Martin Heidegger (1889-1976), explorando a angústia existencial e o confronto com o não-ser como experiências fundamentais da condição humana. Contudo, ele vai além desses sistemas ao propor uma resposta teológica à crise existencial, onde o ser humano, ao confrontar sua finitude, pode acessar o “Ser-em-si”, que é a própria realidade divina. Nessa concepção, Tillich propõe uma ontologia teológica, na qual Deus é o fundamento último do ser e, ao mesmo tempo, transcende todas as conceituações humanas.
Em diálogo com a teologia liberal, especialmente a de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Albrecht Ritschl (1822-1889), Tillich enfatiza a relação entre fé e cultura, rejeitando a separação entre o mundo moderno e a teologia. No entanto, diferentemente de muitos teólogos liberais, Tillich mantém uma forte ênfase na transcendência divina, criticando qualquer tentativa de reduzir Deus a uma mera projeção cultural. Sua teologia também reflete influências do neokantismo, que reafirma os limites da razão humana na apreensão do transcendente, reconhecendo que a razão é incapaz de capturar a totalidade de Deus. Tillich se alinha à crítica neokantiana ao afirmar que o númeno (νοούμενον, nooumenon) — a realidade transcendente em si — está além do alcance da razão finita, o que reforça sua proposta de uma teologia sempre aberta à renovação e ao mistério.
Tillich, além disso, incorpora aspectos da psicanálise, especialmente na forma como interpreta os símbolos religiosos e a dimensão inconsciente da vida espiritual. Influenciado por Carl Jung (1875-1961), ele vê os símbolos religiosos como expressões de verdades espirituais mais profundas, que não se limitam à psique humana, mas conectam-se ao fundamento último do ser. Esses símbolos têm uma função mediadora, conectando a realidade humana com o transcendente, o que alinha Tillich tanto com uma compreensão existencial quanto com uma visão simbólica da teologia.
Em relação ao realismo, Tillich herda a tradição do realismo ontológico da filosofia clássica, especialmente no que tange à sua concepção de Deus como o “fundamento do ser”. Para Tillich, Deus não é um ser entre outros, mas a própria base do ser, o “Ser-em-si”, de onde tudo deriva. Essa perspectiva reafirma a existência objetiva dos universais, um ponto de convergência com o realismo. Contudo, Tillich rejeita um realismo ingênuo que pressupõe a existência de ideias universais independentes da experiência humana. Em sua visão, os universais são mediados pela relação existencial do ser humano com o transcendente, de modo que os conceitos universais encontram sua verdade última na participação com o divino.
Tillich, no entanto, evita qualquer confusão entre Deus e o Ser-em-si, de forma a não reduzir Deus à realidade fenomênica ou à totalidade do ser. Deus, para Tillich, é o fundamento do ser, o poder que sustenta todas as formas de existência, mas não se confunde com a própria existência finita. Afirmar que Deus é o “Ser-em-si” significa que Ele é a base de todo ser, mas transcende qualquer forma ou conceito particular de ser que possamos apreender. Deus está além de qualquer categoria que possa limitá-lo, permanecendo o "Deus acima de Deus", uma realidade que supera qualquer definição humana finita.
Contudo, é a própria ideia de fundamento ontológico que poderia ser alvo de uma crítica construtiva sob a perspectiva pós-estruturalista. Embora Tillich critique o dogmatismo teológico e busque evitar a absolutização de conceitos finitos, ele ainda mantém a noção de um fundamento transcendente fixo, que pode ser interpretado como uma forma de metafísica da presença, conforme criticada por filósofos como Jacques Derrida (1930-2004). Para Derrida e outros pós-estruturalistas, a tentativa de encontrar uma origem estável (ou um centro metafísico) para a realidade limita o campo do discurso e cria hierarquias que excluem a fluidez e a pluralidade.
Porém, essa crítica pode ser atenuada à medida que Tillich, em sua teologia, oferece um caminho para o transcendente sem fixá-lo rigidamente em um sistema. Embora a sua concepção de “Ser-em-si” seja um ponto de ancoragem ontológico, ele sugere que Deus transcende toda categoria e compreensão humana, permanecendo uma realidade que está além de toda finitude e definição. Nesse sentido, há uma abertura no pensamento de Tillich para uma teologia em constante movimento, alinhada, em certa medida, com o pensamento pós-estruturalista, que enfatiza a mudança e a contingência. Tillich não concebe o “Ser-em-si” como algo que exclui o devir ou a transformação; ao contrário, ele propõe uma teologia que está sempre em processo, aberta à crítica e à renovação.
Além disso, Tillich herda uma concepção de sujeito que, embora aberta à crítica, pode ser vista como centrada na relação com o transcendente. Sob uma perspectiva pós-estruturalista, influenciada por pensadores como Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995), o sujeito é visto como um constructo fluido, atravessado por discursos e relações de poder. No entanto, para Tillich, o sujeito não se dissolve nesses discursos; ao contrário, a busca pelo transcendente fornece uma âncora existencial na formação de uma identidade que, apesar de aberta ao devir, encontra sentido na relação com o “fundamento do ser”. Aqui, Tillich se afasta de uma visão puramente discursiva da subjetividade, mantendo que, embora as condições históricas e culturais moldem o sujeito, há uma dimensão ontológica que transcende essas determinações.
Essa tensão entre crítica e transcendência se manifesta de maneira interessante na relação entre o pensamento de Tillich e o protestantismo, particularmente em sua análise das tradições reformadas. Um exemplo importante é a abordagem do terceiro uso da lei (tertius usus legis) no pensamento reformado, especialmente no calvinismo. Para João Calvino (1509-1564), o terceiro uso da lei refere-se ao papel da lei como um guia para a vida cristã regenerada, oferecendo instruções para uma vida ética e de santificação, não mais como um fardo ou um instrumento de condenação, mas como expressão de gratidão pela salvação (Institutas, II.7.12). A lei, nesse sentido, se torna uma ferramenta de santificação e renovação moral na vida daqueles que foram salvos pela graça.
No entanto, o conceito calvinista de tertius usus legis — a função normativa da lei na vida do cristão regenerado — reflete uma visão mais estática da lei como guia para a santificação, ao passo que Tillich entende a lei de maneira mais dinâmica e dialética. No pensamento de Tillich, a lei, como uma estrutura externa, não deve ser absolutizada. Ele a vê como uma norma que orienta a vida ética, mas que está sempre sujeita à crítica e à reforma contínua à luz da experiência do Espírito e da renovação espiritual. Assim, para Tillich, a obediência à lei deve ser vivida dentro do contexto da liberdade cristã e da busca constante por renovação, diferentemente de Calvino, que considera a lei como um guia mais permanente e normativo para a santificação.
Tillich entende o princípio protestante como uma força crítica que atravessa a história das tradições cristãs, mantendo a religião aberta à renovação espiritual e cultural. Tradicionalmente, o protestantismo enfatizou a primazia da fé sobre as obras e a constante necessidade de reformar a igreja à luz das Escrituras e do Espírito. A lei, no contexto calvinista, exemplifica a relação entre prática religiosa e liberdade espiritual, onde a disciplina e as normas éticas não são fins em si mesmas, mas formas de viver em comunhão com Deus.
Além disso, Tillich adverte que tanto o protestantismo quanto outras tradições religiosas não estão imunes aos riscos da demonização e da profanização. A demonização ocorre quando uma estrutura ou doutrina religiosa se absolutiza, tornando-se um fim em si mesma, como no caso do fundamentalismo. A profanização, por outro lado, resulta quando as práticas religiosas perdem sua vitalidade espiritual, tornando-se meros rituais vazios. Para Tillich, a secularização pode ser vista como uma reação crítica à demonização e à profanização da religião, ao expor suas formas absolutizadas e rígidas.
Entretanto, Tillich também reconhece os riscos do secularismo, que, ao se absolutizar, pode eliminar a dimensão espiritual da existência humana. Quando o secularismo assume uma forma dogmática, ele pode transformar a vida em um processo materialista, vazio de transcendência. Para superar essa tensão, Tillich vislumbra a teonomia — uma integração harmoniosa entre o sagrado e o secular — como uma solução. Na teonomia, a presença do divino permeia as estruturas culturais sem se absolutizar, oferecendo uma nova forma de religiosidade que resgata a profundidade espiritual em meio à secularização.
No contexto do método da correlação, Tillich articula uma relação dinâmica entre as questões existenciais humanas e as respostas teológicas, recusando a ideia de que a teologia possa existir isolada das condições culturais. As questões humanas, como a alienação e a busca de sentido, encontram suas respostas nas formulações teológicas, que, por sua vez, são moldadas pela experiência histórica e cultural. A correlação, assim, serve como mediadora entre a experiência de alienação e a necessidade de uma estrutura ética e espiritual que responda a essa alienação de forma concreta e renovadora.
Em suma, Tillich oferece uma teologia que, ao possibilitar a integração de diferentes tradições e conceitos — como o protestantismo, o princípio protestante, o tertius usus legis, e a crítica à secularização — propõe uma abordagem que opera em tensão criativa entre a crítica constante e a corporificação do divino. Ao mesmo tempo, sua aplicação do método da correlação mantém a teologia relevante e dinâmica, respondendo às questões existenciais contemporâneas, sem perder de vista a estrutura ética e espiritual necessária para a vida cristã.
Referência
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
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