Em “Menos que Nada”, Slavoj Žižek (1949-) examina criticamente o conhecido debate entre Michel Foucault (1926-1984) e Jacques Derrida (1930-2004), dedicando especial atenção à relação entre loucura, subjetividade e a questão da exterioridade no discurso filosófico. Ao revisitar esse diálogo, Žižek oferece uma perspectiva única sobre as tensões epistemológicas e filosóficas que caracterizam as abordagens desses dois pensadores.
No debate sobre loucura e subjetividade, Žižek explora a divergência central entre Foucault e Derrida no que diz respeito à leitura do cogito cartesiano. Para Foucault, em “História da Loucura”, Descartes (1596-1650) teria estabilizado o cogito ao excluir a loucura, relegando-a ao “Outro” da razão. A razão ocidental, portanto, constituiria sua identidade ao marginalizar a loucura, tratada como algo exterior à racionalidade. Segundo Foucault, ao invocar a dúvida metódica, Descartes não inclui a loucura como uma possibilidade genuína de ameaça à razão; ao contrário, ele a exclui de modo a consolidar o cogito como uma estrutura estável e racional. Derrida, no entanto, desafia essa interpretação em seu ensaio “Cogito e a História da Loucura”. Ele argumenta que, mesmo que Descartes aparentemente marginalize a loucura, ela permanece inscrita no cogito como uma possibilidade que não pode ser completamente excluída. Para Derrida, a loucura assombra o cogito (e revela a fragilidade da própria razão cartesiana), que se sustenta a despeito da possibilidade da loucura.
A resposta de Foucault à crítica de Derrida é igualmente reveladora. Foucault sustenta que a análise derridiana se limita ao “texto”, ignorando as relações materiais de poder que determinam a exclusão da loucura e outras formas de exterioridade. Ele sugere que, em vez de desconstruir infinitamente o discurso, é necessário compreender como o discurso filosófico está imbricado em dispositivos de poder que operam concretamente na produção de subjetividades e na regulação social. Assim, a crítica foucaultiana é que Derrida não capta as forças externas ao discurso que, para ele, são fundamentais na configuração dos sujeitos e das instituições.
Ao analisar essa controvérsia, S. Žižek adota uma postura crítica em relação ao que considera uma forma de historicismo reducionista na abordagem de Foucault. Segundo Žižek, ao enfatizar as práticas extratextuais e os dispositivos de poder, Foucault sugere que existe um “fora” radical do discurso filosófico que pode ser acessado diretamente pela genealogia histórica. No entanto, Žižek argumenta que essa perspectiva falha ao não reconhecer que o discurso filosófico contém um núcleo que não pode ser completamente reduzido às suas condições materiais ou históricas de produção. Derrida, por sua vez, demonstra que tal tentativa de situar o “Outro” fora da filosofia é inviável, pois a própria filosofia já está sempre contaminada por essa exterioridade.
A noção de “ex-timidade”, que Žižek utiliza para articular essa crítica, é central para seu argumento. Enquanto Foucault procura uma exterioridade passível de ser analisada genealogicamente, Derrida e Žižek percebem que essa exterioridade está sempre já internalizada no discurso, desestabilizando-o desde dentro. O verdadeiro debate entre Foucault e Derrida, para Žižek, gira em torno da compreensão dessa relação entre o interno e o externo: enquanto Foucault tenta escapar do discurso ao localizar práticas extratextuais que operam fora dele, Derrida revela que essa tentativa de exterioridade é sempre já estruturada pela própria lógica interna do discurso filosófico. Portanto, a crítica de Žižek a Foucault é que o próprio ato de tentar sair do discurso filosófico acaba reafirmando as categorias filosóficas que ele tenta subverter.
Nesse sentido, Žižek conclui que a radicalidade de Derrida está em sua capacidade de mostrar que não há um “fora” do discurso filosófico que possa ser acessado diretamente. Ao contrário, toda tentativa de localizar essa exterioridade, seja por meio de uma genealogia histórica ou de uma análise de poder, está fadada a falhar, pois a exterioridade é sempre ex-tímica, interna ao próprio sistema que tenta excluí-la. Para Žižek, a verdadeira tarefa da filosofia contemporânea é reconhecer essa falha interna, essa negatividade constitutiva que impede qualquer tentativa de síntese ou totalização.
Imagem: DALL-E
O debate entre Foucault e Derrida sobre discurso e exterioridade oferece uma base fundamental para refletir sobre a análise do discurso teológico. Foucault, com sua genealogia, enfatiza a construção histórica e as relações de poder que moldam os discursos, enquanto Derrida, por meio da desconstrução, expõe as contradições internas que permeiam o discurso. Ao aplicarmos essas abordagens à teologia, surge a questão de qual metodologia seria mais adequada para compreender sua construção e tensões. A crítica de Žižek sugere que ambas as abordagens capturam aspectos essenciais, mas é na dialética que encontramos uma integração capaz de reconhecer a falha constitutiva que move e transforma o discurso, seja filosófico ou teológico.
Portanto, a escolha entre genealogia e desconstrução como abordagem para analisar o discurso teológico apresenta uma questão fascinante e profundamente complexa, envolvendo implicações teóricas que ultrapassam a filosofia contemporânea. Ambas as metodologias, oriundas das tradições de Michel Foucault e Jacques Derrida, oferecem ferramentas críticas robustas, mas cada uma com suas limitações e particularidades. No contexto da ideia de que não há uma exterioridade absoluta ao discurso — seja ele filosófico ou teológico —, o confronto entre essas abordagens se torna ainda mais instigante. A genealogia foucaultiana e a desconstrução derridiana partem de premissas distintas, e a escolha por uma ou outra dependerá dos objetivos teóricos e da profundidade analítica desejada.
A genealogia, conforme desenvolvida por Foucault, é uma prática filosófica que busca desvelar os processos históricos e materiais que constituem os discursos e as subjetividades. No caso da teologia, a genealogia permitiria uma análise que revela como os discursos teológicos emergem a partir de contextos históricos específicos, imersos em dinâmicas de poder, e como certas práticas e crenças foram naturalizadas ao longo do tempo. A teologia, sob essa lente, seria o resultado de um emaranhado de práticas que, ao longo da história, consolidaram certas formas de pensar (e de viver) a religião, legitimando verdades doutrinárias e silenciando outras possibilidades. A força da genealogia reside na sua capacidade de mostrar que o discurso teológico não é uma entidade transcendente e imutável, mas um produto histórico em constante construção, ligado às relações de poder que definem as sociedades.
Contudo, essa mesma ênfase na historicidade e materialidade apresenta um desafio que Žižek critica como uma forma de “historicismo reducionista”. Ao insistir que a genealogia pode revelar um “fora” do discurso (teológico) — algo que seria acessível por meio da análise histórica e material —, o método foucaultiano corre o risco de simplificar a complexidade discursiva, tratando o teológico apenas como um efeito das condições históricas de seu surgimento. Para Žižek, essa visão perde a dimensão mais radical do discurso, aquela que envolve sua falha constitutiva e sua incapacidade de se estabilizar completamente. Ao concentrar-se excessivamente nas relações de poder que moldam o discurso, Foucault parece sugerir que é possível acessar uma exterioridade pura, externa ao próprio discurso (teológico ou não) , que explicaria suas condições de formação. No entanto, essa abordagem não reconhece que o discurso carrega dentro de si uma negatividade irreconciliável, uma falha interna que não pode ser plenamente explicada pela história.
É aqui que a desconstrução de Derrida se apresenta como uma alternativa crítica. Ao invés de buscar a origem histórica do discurso ou tentar explicar suas condições externas de surgimento, Derrida desconstrói as estruturas binárias e as hierarquias discursivas, revelando como o próprio discurso teológico é incapaz de sustentar suas pretensões de unidade e universalidade. A desconstrução mostra que o que o discurso tenta excluir — a “exterioridade” — está sempre já presente, contaminando e estruturando o discurso desde dentro. Derrida rejeitaria a ideia de que existe um “fora” puro ao discurso teológico, mostrando que as fronteiras entre o interno e o externo são instáveis e permeáveis. Nesse sentido, a desconstrução é eficaz para expor como o discurso teológico tenta se apresentar como totalizante, ao mesmo tempo em que é atravessado por contradições internas.
Contudo, a crítica mais comum à desconstrução, e que Žižek também destaca, é que ao concentrar-se tanto na destruição das hierarquias discursivas e das oposições binárias, ela pode parecer menos orientada para a ação política ou social concreta. Desconstruir o discurso teológico é revelar suas falhas e contradições internas, mas sem oferecer um caminho claro para uma transformação prática das relações de poder envolvidas na teologia ou na religião. A desconstrução, em sua ênfase na multiplicidade de significados (e no jogo infinito de diferenças), pode resultar em uma postura passiva frente às dinâmicas de poder que estruturam o campo discursivo teológico. Para Žižek, a desconstrução é um passo necessário, mas insuficiente, pois ela não alcança a dimensão mais radical da negatividade que, segundo ele, está no cerne da dialética hegeliana.
O dilema entre genealogia e desconstrução, portanto, pode ser visto como uma escolha entre duas abordagens que oferecem diferentes formas de acessar a exterioridade do discurso. A genealogia nos dá as ferramentas para entender o papel das práticas históricas e das relações de poder que moldam a teologia, enquanto a desconstrução nos revela que essa teologia está internamente comprometida com aquilo que tenta excluir. Entretanto, se ambas as abordagens possuem limitações, como sugere Žižek, qual seria a “melhor saída”?
Para Žižek, a solução não está em escolher uma ou outra de maneira exclusiva, mas em adotar uma abordagem dialética que reconhece o valor de ambas, ao mesmo tempo em que transcende suas limitações. A dialética zizekiana, influenciada por Hegel e Lacan, oferece uma visão em que o discurso teológico é visto como atravessado por uma falha constitutiva, uma negatividade interna que impede qualquer tentativa de fechamento total. A teologia, assim como a filosofia, não pode ser totalmente explicada pelas suas condições históricas (como na genealogia), nem pode ser desconstruída até um ponto final (como propõe Derrida), pois há sempre uma contradição interna que move o discurso e o transforma constantemente. Para Žižek, o discurso teológico se sustenta em uma falha que jamais pode ser resolvida, mas que paradoxalmente o mantém em movimento e em constante processo de reconfiguração.
Em última instância, a “melhor saída” pode não estar na escolha entre genealogia ou desconstrução, mas em uma leitura dialética que reconhece a necessidade de integrar ambas as abordagens. A genealogia nos ajuda a entender as condições históricas e sociais que moldam o discurso, enquanto a desconstrução nos permite expor as tensões internas e as contradições constitutivas do próprio discurso. A dialética zizekiana, ao operar nessa interface, reconhece que o discurso teológico é, por natureza, inacabado e sempre em transformação, mantendo-se em movimento precisamente por causa de suas falhas constitutivas. Assim, tanto a genealogia quanto a desconstrução oferecem insights valiosos, mas é a dialética que nos permite capturar a complexidade do discurso teológico em sua totalidade contraditória.
Referência
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013
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