“É em torno do motivo da Queda que a oposição entre gnósticos e cristãos é mais evidente. Ambos partilham a ideia de Queda, mas para os gnósticos trata-se de uma queda da dimensão puramente espiritual para o mundo material inerte, com a ideia de que nos esforçamos para regressar à pátria espiritual que perdemos, enquanto para os cristãos a Queda não é verdadeiramente uma queda, mas, ‘em si’, o seu contrário, a emergência da liberdade” (Slavoj Žižek)
A relação entre a Queda e a liberdade tem sido objeto de amplas discussões tanto na teologia quanto na filosofia. Nesta breve reflexão, exploraremos as interpretações da Queda no pensamento gnóstico, cristão e filosófico, com ênfase nas reinterpretações propostas por Slavoj Žižek em diálogo com Hegel e Lacan. Particularmente, destacaremos as ressonâncias e divergências entre a visão dialética de Žižek e a perspectiva teológica de João Calvino sobre a Queda (e suas implicações para a liberdade humana).
O motivo da Queda: gnósticos, cristãos e a emergência da liberdade
O motivo da Queda é um ponto de partida crucial para compreender a oposição entre gnósticos e cristãos. Embora ambos compartilhem a ideia de uma Queda, suas interpretações divergem radicalmente. Para os gnósticos, trata-se de uma queda da dimensão puramente espiritual para o mundo material inerte, e o esforço humano deve ser o de retornar à pátria espiritual perdida. Já para os cristãos, a Queda não é verdadeiramente uma “queda”, mas, em certo sentido, o seu contrário: a emergência da liberdade. Slavoj Žižek explora essa distinção de maneira aprofundada, relacionando-a à dialética hegeliana e à noção de subjetividade.
Na tradição cristã, conforme analisada por Žižek, a Queda adquire um caráter paradoxal: ao invés de ser meramente uma perda trágica, ela inaugura a possibilidade da liberdade humana. Tal formulação encontra eco no pensamento hegeliano, que Žižek revisita em sua obra Menos que Nada. Segundo Hegel, o Absoluto deve ser entendido não apenas como substância, mas também como sujeito, ou seja, não como uma totalidade estática, mas como um processo dinâmico e auto-transformador. Essa ideia é central para compreender como, tanto no cristianismo quanto na dialética hegeliana, a liberdade emerge precisamente a partir da negatividade e da incompletude.
Substância e sujeito: a dialética da incompletude
No pensamento hegeliano, a substância não é uma entidade fixa, imóvel ou atemporal. Ao contrário, ela é definida por sua incompletude e pela relação que mantém com o sujeito. Hegel não concebe o Absoluto como uma substância plena e autossuficiente; ele o vê como algo que existe por meio de seu movimento e de sua negatividade interna. Essa concepção desafia a ideia de uma totalidade harmoniosa, sugerindo que o sujeito não é uma entidade externa que se apropria da substância, mas o próprio resultado do movimento dialético da substância.
Žižek aprofunda essa análise ao argumentar que a substância hegeliana é marcada pela negatividade autorrelativa: ela se autonega continuamente, e é essa negação que abre espaço para a subjetividade. A famosa máxima de Hegel, de que o Absoluto é “não só substância, mas também sujeito”, implica que o sujeito emerge da incapacidade da substância de se realizar plenamente. O sujeito, portanto, é a figura da negatividade da substância — o resultado da falha, do corte, da divisão que impede a substância de se constituir como uma totalidade unificada.
Essa formulação possui implicações profundas, uma vez que desafia tentativas de reconciliar sujeito e substância em uma unidade orgânica e estável, como sugerido por tradições filosóficas anteriores. A subjetividade, a partir dessa perspectiva, não deve ser vista como uma apropriação da substância, mas como a marca da falha da substância em sustentar-se como totalidade. Assim, a liberdade subjetiva não é a capacidade de dominar ou controlar a substância, mas a aceitação da radical inconsistência da substância.
A falha como condição para a verdade
Um dos aspectos mais provocadores dessa formulação é a relação dialética entre erro e verdade. Para Hegel, o erro não é um estágio preliminar que deve ser corrigido para se alcançar a verdade; ao contrário, a verdade emerge do erro, e, em certo sentido, é o erro repetido. Žižek conecta essa ideia à fórmula lacaniana “la verité surgit de la méprise” (a verdade surge da equivocação). Para ele, a verdade não é o oposto do erro, mas algo enraizado nele, de modo que a subjetividade só pode emergir ao reconhecer essa falha fundamental.
Essa leitura subverte a ideia tradicional de que a busca pela verdade seria uma superação ou eliminação do erro. Em vez disso, para Hegel e Lacan, a verdade é inseparável do erro, implicando que o movimento dialético do erro é constitutivo da verdade. Esse ponto é central para a crítica de Žižek à tradição marxista, particularmente no que diz respeito à noção de desalienação. Žižek argumenta que o comunismo não deve ser entendido como uma simples reapropriação da substância alienada, mas como a aceitação da falha radical que marca tanto a substância quanto o sujeito.
O sujeito barrado: Lacan e Hegel
Nesse ponto, Žižek incorpora o conceito lacaniano de sujeito barrado, ou seja, o sujeito dividido por uma falta constitutiva. Assim como o sujeito é barrado, a substância hegeliana também é “barrada” — ela nunca pode se identificar completamente consigo mesma e permanece incompleta. A relação entre substância e sujeito, portanto, não é uma relação de integração ou harmonia, mas de negatividade, onde o sujeito surge como a manifestação da incompletude da substância.
A incompletude torna-se o núcleo da dialética hegeliana e é central para a filosofia de Žižek. Tanto o sujeito quanto a substância são definidos pela sua incapacidade de constituir uma totalidade. Não há, portanto, um sujeito soberano que possa se apropriar da substância, assim como não há uma substância plena que possa originar um sujeito sem divisão.
Universalidade concreta e lutas políticas
Essas reflexões filosóficas de Žižek se conectam diretamente às condições contemporâneas da pós-modernidade, do capitalismo neoliberal e das lutas políticas emancipatórias. Em sua releitura crítica do idealismo e materialismo, Žižek formula o conceito de “universalidade concreta”, que se opõe às concepções relativistas da pós-modernidade. Enquanto a visão pós-moderna celebra a fragmentação da verdade e das identidades, Žižek propõe que a verdadeira universalidade emerge da aceitação da incompletude e das contradições que caracterizam tanto o sujeito quanto a substância.
No contexto do capitalismo neoliberal, Žižek identifica uma profunda conexão entre o idealismo subjetivo e a narrativa neoliberal de autonomia individual. O neoliberalismo promove a ilusão de que o sujeito é autônomo e capaz de controlar suas condições materiais, ocultando, assim, as contradições e a exploração inerentes ao capitalismo. Žižek, no entanto, argumenta que essa visão disfarça as contradições estruturais do capitalismo, que perpetua desigualdades sob o disfarce de liberdade e autonomia.
A Queda e a liberdade em Žižek e Calvino
Finalmente, chegamos à comparação entre as visões de Žižek e João Calvino sobre a Queda (e suas implicações para a liberdade humana). Enquanto Žižek vê a Queda como a própria origem da liberdade, Calvino a interpreta como um evento trágico que destrói a integridade da natureza humana e condena o homem à depravação total.
Para Calvino, a liberdade está inteiramente perdida após a Queda, e o ser humano encontra-se escravizado pelo pecado. A liberdade só pode ser restaurada por meio da intervenção soberana da graça divina. Em contraste, para Žižek, a Queda não é uma perda da liberdade, mas o seu surgimento, na medida em que introduz a negatividade e a alienação necessárias para a autoconstituição da subjetividade. Esse contraste revela duas formas distintas de conceber a liberdade: enquanto para Calvino a Queda marca a perda total da liberdade, para Žižek ela inaugura a condição de possibilidade da liberdade.
Conclusão
Tanto no cristianismo quanto na dialética hegeliana, a liberdade emerge da contradição e da incompletude. A universalidade cristã, simbolizada pela morte de Cristo, pode ser lida como uma forma de “universalidade concreta”, onde a particularidade da experiência humana, marcada pelo pecado e pela alienação, se torna o ponto de partida para a liberdade. De forma semelhante, a universalidade hegeliana é uma universalidade concreta que emerge da negatividade interna da substância.
A comparação entre Žižek e Calvino nos oferece um panorama enriquecedor das diferentes formas de pensar a relação entre a Queda, a subjetividade e a liberdade. Para Žižek, a falha e a negatividade são condições produtivas que inauguram novas possibilidades de liberdade, enquanto para Calvino, a liberdade é restaurada apenas pela intervenção divina. Essa divergência aponta para concepções radicalmente distintas de subjetividade e emancipação, mas que compartilham uma preocupação comum: a centralidade da Queda e da falha como pontos cruciais para a compreensão da condição humana.
Referências
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009. 4 v.
ŽIŽEK, Slavoj. A Marioneta e o Anão: O cristianismo entre a perversão e a subversão. Lisboa: Relógio D'Água, 2006.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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