Lei e a Subjetividade em João Calvino, Judith Butler e Slavoj Žižek
João Calvino, em sua monumental obra As Institutas da Religião Cristã, apresenta uma compreensão da Lei divina que desempenha um papel central na vida moral e espiritual do ser humano (Livro II, Capítulo 7). A Lei, para Calvino, é um reflexo da ordem e vontade de Deus, servindo tanto para guiar o crente na vida piedosa quanto para revelar a incapacidade humana diante da santidade divina. Em termos teológicos, Calvino atribui à Lei três funções principais: mostrar o pecado, disciplinar a conduta e, para os crentes regenerados, guiar a vida em gratidão a Deus. A Lei não é meramente uma imposição coercitiva, mas uma estrutura que, ao revelar a falibilidade humana, conduz o ser humano ao reconhecimento de sua dependência da graça divina.
No pensamento calviniano, a função pedagógica da Lei é um elemento-chave. Calvino argumenta que a Lei atua como um espelho, refletindo a corrupção da natureza humana em consequência do pecado original. Ao exigir a conformidade a padrões impossíveis de serem cumpridos integralmente, a Lei revela a natureza decaída da humanidade, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de redenção. Nesse sentido, a Lei não é vista apenas como um conjunto de preceitos morais, mas como um instrumento que conduz o ser humano à graça, ao demonstrar sua insuficiência em alcançar a santidade por meio de seus próprios esforços.
Para o crente, no entanto, a Lei tem uma função adicional: ela guia a vida em santificação. Após ser regenerado pela graça de Deus, o crente busca obedecer à Lei como uma expressão de gratidão e devoção. Aqui, a conformidade à Lei não é opressiva (ou coercitiva), mas um caminho de liberdade espiritual, em que o sujeito, transformado pelo Espírito, encontra prazer em obedecer às ordens divinas. A liberdade cristã, conforme Calvino, está intimamente ligada à capacidade de viver de acordo com a vontade de Deus, expressa na Lei, de modo que a obediência se torna uma manifestação da verdadeira liberdade espiritual.
Em contraste com a perspectiva calvinista da Lei como expressão benevolente da ordem divina, Judith Butler e Slavoj Žižek oferecem uma crítica radical às normas que regulam a subjetividade, incluindo a Lei, compreendida aqui não em termos teológicos, mas sociais e simbólicos. Butler, em especial, aborda a questão da normatividade a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, argumentando que as normas de reconhecimento que estruturam a subjetividade são, em sua essência, coercitivas e excludentes. A subjetividade, em sua visão, não é transparente (ou plenamente acessível ao sujeito); ao contrário, é constituída por normas sociais que o interpela e limitam sua capacidade de dar um relato coerente de si.
A crítica de Butler à normatividade começa com a noção de que as normas de reconhecimento são violentas em sua operação. Para que um sujeito seja reconhecido como tal, ele precisa se conformar às normas de inteligibilidade que regulam o que pode ser considerado uma identidade "válida" (ou "reconhecível"). Esse processo de interpelação é central para a constituição da subjetividade, mas também é a fonte de grande sofrimento psíquico. A conformidade às normas, por um lado, possibilita que o sujeito seja reconhecido no campo social; por outro lado, essas mesmas normas impõem limites sobre o que pode ser dito (ou feito), gerando uma tensão constante entre a necessidade de reconhecimento e a impossibilidade de ser plenamente compreendido.
Butler vai além ao argumentar que a subjetividade é, por definição, opaca, fragmentada e inarticulável de maneira completa. A opacidade do sujeito — a incapacidade de fornecer um relato final e transparente de si — é uma condição estrutural da vida ética. A tentativa de conformar-se às normas, portanto, resulta em uma forma de violência ética, na medida em que o sujeito é forçado a habitar identidades normativas que não capturam a totalidade de sua experiência. O sofrimento psíquico, então, surge da falha inevitável em conformar-se às normas que regulam o reconhecimento, uma falha que, para Butler, é inevitável e constitutiva da subjetivação.
S. Žižek, em sua leitura crítica da Lei, também oferece uma visão que se distancia da concepção calvinista. Enquanto Calvino entende a Lei como uma expressão da vontade de Deus, destinada a guiar o crente à santificação e revelar a necessidade da graça, Žižek vê a Lei como um mecanismo intrinsecamente perverso. Para Žižek, a Lei não é um guia moral benevolente, mas um aparato que sustenta sua própria violação. Ao sugerir que "a Lei é o crime", S. Žižek indica que a própria existência da Lei engendra o desejo de transgressão. A Lei, ao impor restrições, cria o desejo de sua própria violação, estabelecendo assim uma relação dialética entre norma e transgressão.
Essa análise se aprofunda em Vivendo no Fim dos Tempos, onde Žižek aborda criticamente a relação entre Lei, graça e amor, particularmente no contexto cristão e filosófico de São Paulo. Žižek argumenta que a Lei e o pecado estão interligados de maneira dialética, na qual a Lei, ao buscar regular o comportamento, acaba por gerar o pecado, instaurando a tentação inerente à sua própria violação. Nesse sentido, a presença da Lei fomenta o ciclo de pecado, onde um alimenta o outro em um processo de retroalimentação.
Por outro lado, Žižek propõe que o amor cristão, especialmente na forma do ágape, rompe radicalmente com essa lógica. O amor, ao contrário da Lei, não se submete ao ciclo de transgressão e culpa; ele inaugura um espaço ético que transcende a moralidade legalista. Žižek argumenta que o amor é uma alternativa à Lei, instaurando um campo de liberdade que escapa à lógica de proibição e violação. Desse modo, o amor não apenas escapa à Lei, mas rompe definitivamente com sua estrutura de controle, apresentando uma possibilidade emancipatória.
Ao contrastar essas visões com a de Calvino, vemos que, para o reformador, a Lei é uma estrutura benevolente que revela a corrupção do ser humano, mas ao mesmo tempo o direciona para a graça e para a vida moral correta. A obediência à Lei é, para Calvino, uma forma de liberdade espiritual, em que o crente, regenerado pela graça, encontra prazer em viver segundo a vontade divina. O fracasso em cumprir a Lei não é uma fonte de sofrimento psíquico per se, mas uma oportunidade de arrependimento e crescimento espiritual, que leva à dependência da graça redentora.
Por outro lado, Butler e Žižek veem a normatividade — seja ela expressa pela Lei divina ou pelas normas sociais — como um campo de coerção e violência. Para Butler, a subjetividade nunca pode conformar-se plenamente às normas de reconhecimento, e essa falha gera sofrimento psíquico e exclusão. Já para Žižek, a Lei é, em sua essência, perversa, pois cria o desejo de transgressão ao impor restrições impossíveis de serem plenamente observadas. A conformidade à Lei, portanto, não é uma expressão de liberdade, mas um processo que perpetua a opressão e o desejo de violar as normas.
Ainda que haja divergências fundamentais, há uma aproximação interessante em como ambos os lados entendem o papel da falha e do fracasso. Para Calvino, o fracasso humano diante da Lei é um elemento pedagógico, que leva o ser humano a reconhecer sua fraqueza e sua necessidade de redenção pela graça divina. Para Butler, o fracasso em conformar-se às normas de reconhecimento é uma condição inevitável da vida ética, que expõe a violência dessas mesmas normas. E para Žižek, o fracasso diante da Lei revela sua natureza perversa, onde a transgressão não é um desvio, mas parte integrante do funcionamento da própria normatividade.
Em síntese, a visão de Calvino sobre a Lei como um reflexo da ordem divina e como um caminho para a liberdade espiritual diverge profundamente das concepções críticas de Butler e Žižek, que veem a normatividade como um campo de exclusão, violência e desejo. Para Calvino, a obediência à Lei é um ideal a ser perseguido, mesmo que imperfeitamente, enquanto para Butler e Žižek, a conformidade às normas é uma fonte de sofrimento e opressão. Essa comparação revela não apenas divergências teóricas sobre o papel da Lei, mas também diferentes concepções sobre a natureza da subjetividade, da liberdade e do poder.
Referências
BUTLER, Judith. Relatar a Si Mesmo: Crítica da Violência Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
ŽIŽEK, Slavoj. A Marioneta e o Anão: O Cristianismo entre a Perversão e a Subversão. Lisboa: Relógio D'Água, 2006.
ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no Fim dos Tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.
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