Sir Arthur St. Clare, como já disse, era um homem que lia sua Bíblia. Esse era o problema dele. Quando as pessoas vão entender que é inútil um homem ler a sua própria Bíblia, a menos que ele também leia a Bíblia de todo mundo? Um impressor lê a Bíblia em busca de erros tipográficos. Um mórmon lê sua Bíblia e encontra a poligamia; um Cientista Cristão lê a sua e descobre que não temos braços nem pernas. St. Clare era um velho soldado anglo-indiano protestante. (...) Claro, ele encontrou no Antigo Testamento tudo o que queria — luxúria, tirania, traição. Ah, eu ouso dizer que ele era honesto, como vocês dizem. Mas de que adianta um homem ser honesto em sua adoração à desonestidade?
(Extraído do romance The Innocence of Father Brown, de G.K. Chesterton).
Na obra “Em Defesa das Causas Perdidas”, Slavoj Žižek critica autores conservadores como G.K. Chesterton (1874–1936), mas reconhece sua perspicácia teológica e as profundas observações sobre as contradições morais e espirituais do cristianismo e da modernidade. Em particular, Žižek utiliza personagens como o padre Brown, criado por Chesterton, para exemplificar uma crítica moral sutil, que vai além da simples condenação.
Em um de seus contos, Chesterton critica o cristianismo protestante por sua leitura unilateral da Bíblia, alertando para os perigos de interpretações individuais distorcidas sem uma compreensão mais ampla. Žižek observa que essa abordagem se assemelha à crítica de Heidegger à “metafísica ocidental”, vista por ele como fonte de catástrofes ético-políticas no século XX. Para Chesterton, o erro reside no uso limitado de textos religiosos, como a Bíblia, em prol de agendas políticas e éticas questionáveis.
Dessa forma, embora Žižek critique as implicações conservadoras de Chesterton, ele valoriza a crítica subjacente às leituras religiosas reducionistas e utiliza suas ideias para abordar questões como ética cristã e metafísica ocidental. Para Žižek, Chesterton é um recurso útil para desvelar as complexidades da ética e da política contemporâneas, mostrando como até pensadores conservadores podem contribuir para a crítica ao status quo.
Mesmo ao criticar a teoria da hegemonia desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Slavoj Žižek recorre, de forma paradoxal, a estratégias discursivas que podem ser associadas àquilo que Laclau denominaria de “gramática populista”. Laclau e Mouffe constroem sua teoria a partir da ideia de que o “povo” não é uma entidade fixa, mas uma construção discursiva que emerge por meio da articulação de demandas sociais heterogêneas em torno de um antagonismo comum.
O ponto central dessa teoria é a capacidade de unificar diversas demandas em uma cadeia equivalencial que contrasta o “povo” com uma elite, ou uma classe dominante, que representa o “outro” a ser combatido. Essa concepção de hegemonia se baseia na flexibilização das identidades políticas, que podem se constituir ou reconstituir a partir de momentos de ruptura e contingência, dando origem ao que Laclau e Mouffe chamam de “povo” político. Tal processo, para os autores, é intrinsecamente contingente e discursivo, constituído pelo antagonismo entre as demandas do povo e os interesses da elite.
Žižek, no entanto, critica essa concepção do populismo, argumentando que, embora a articulação discursiva possa ser eficaz em termos de mobilização política, ela acaba mascarando as contradições de classe que constituem a essência das relações de poder no capitalismo. Para Žižek, o perigo da abordagem de Laclau e Mouffe reside na superficialidade com que essas contradições estruturais são tratadas. A ênfase na construção discursiva do “povo” e na criação de um antagonismo simbólico com a elite ou o “inimigo” político obscurece a necessidade de uma análise mais profunda das condições materiais que fundamentam a desigualdade e a exploração dentro da lógica capitalista. Ao limitar-se à articulação de demandas sociais em torno de um antagonismo discursivo, o populismo deixa de lado o confronto com as causas econômicas e estruturais subjacentes que sustentam a reprodução das desigualdades e as dinâmicas de exploração.
Para Žižek, a crítica a Laclau e Mouffe não é apenas uma questão de diferença teórica sobre a constituição discursiva do povo; é uma crítica mais fundamental sobre o que constitui a verdadeira transformação política. Em “Em Defesa das Causas Perdidas”, Žižek sublinha que o populismo, ao centrar-se no antagonismo simbólico e na construção de uma identidade coletiva simplificada, acaba evitando um engajamento com as contradições reais que permeiam o modo de produção capitalista. Essa superficialidade populista é vista por Žižek como uma forma de desviar a atenção das causas estruturais da dominação capitalista, conduzindo a mobilizações políticas que não atacam diretamente o cerne do problema: a organização econômica e as relações de produção que perpetuam as injustiças sociais.
Nesse sentido, Žižek considera a teoria da hegemonia insuficiente porque ela não desafia a essência do que ele chama de “Real” — as contradições irreconciliáveis do capitalismo que não podem ser resolvidas por meio de mediações discursivas. A construção de um “povo” político, para Žižek, é, em última análise, uma solução provisória e inadequada, uma vez que não lida diretamente com as estruturas econômicas que perpetuam a desigualdade e a exploração. Embora o populismo possa, temporariamente, fornecer uma forma de mobilização política, ele falha em conduzir à transformação revolucionária necessária para romper com as dinâmicas sistêmicas do capitalismo. Para Žižek, qualquer mudança política significativa deve envolver um confronto direto com a lógica estrutural do capitalismo, algo que ele acredita ser ausente na abordagem populista de Laclau e Mouffe.
Assim, embora Žižek reconheça a eficácia prática do populismo para mobilizar as massas em determinados momentos de crise, ele considera que, em termos teóricos, a abordagem populista é limitada. A criação de um antagonismo entre o “povo” e a elite, por meio de uma cadeia discursiva, pode até funcionar como um meio de galvanizar apoio popular, mas esse processo é, para Žižek, insuficiente: Ao não atacar diretamente as raízes do sistema, o populismo acaba funcionando, em última análise, como uma forma de estabilização temporária do capitalismo, ao invés de sua superação.
Porém, ao incorporar pensadores conservadores como Chesterton em sua crítica à mistificação religiosa e política, Žižek poderia ser interpretado como operando dentro de uma “gramática populista” nos termos de Laclau. Pergunta-se: Chesterton é mobilizado por Žižek como um aliado crítico contra as interpretações distorcidas do cristianismo, lembrando a estratégia populista de unificar diferentes perspectivas sob um antagonismo comum, neste caso, contra a ideologia dominante? Essa articulação de figuras de tradições variadas, de Chesterton a Robespierre, de Marx a Lacan, parece criar uma narrativa crítica unificada contra o neoliberalismo e a pós-política, semelhante ao que o populismo busca ao mobilizar demandas diversas contra um “inimigo comum”.
Ao que parece, Žižek não pretende criar um “povo” discursivo como sujeito político. Ao invés de promover antagonismos simbólicos, Žižek concentra-se nas estruturas econômicas e sociais subjacentes que sustentam as desigualdades. Sua crítica visa expor, de forma bastante eclética, diga-se de passagem, as contradições do capitalismo global, e não construir um discurso populista. Portanto, apesar das aparentes similaridades, a estratégia de Žižek visa a desestabilização radical das estruturas de poder, ao invés da construção de uma nova hegemonia discursiva.
Finalmente, Žižek engaja-se criticamente com a religião de uma forma que, à primeira vista, pode parecer populista ao utilizar figuras conservadoras, mas sua análise transcende essa lógica ao considerar o cristianismo não apenas como fonte de mistificação ideológica, mas também de radicalismo político. Ele recorre frequentemente à figura de Cristo como símbolo de subversão revolucionária, contrastando com Chesterton, que enxerga o cristianismo como sustentáculo da ordem moral e social. Ao reinterpretar a tradição cristã para extrair seu potencial radical, Žižek busca desestabilizar tanto a ordem neoliberal quanto a conservadora. Grosso modo, a questão central abordada no blog Calvino Distante tem se concentrado em uma temática semelhante, a saber, a busca por uma leitura pós-estruturalista que questiona o status quo e a ordem estabelecida em autores conservadores, como o reformador João Calvino (1509–1564).
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.
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