sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Paul Tillich e a Teologia da Preocupação Última: Integração, Ambiguidade e Crítica da Condição Humana

A Teologia Sistemática de Paul Tillich (1886–1965) articula um diálogo inovador entre a teologia cristã e as ciências humanas e sociais, revelando uma abordagem interdisciplinar onde a Psicologia, a Sociologia e a Filosofia tornam-se fundamentais para entender as ambiguidades e complexidades da condição humana. No volume 3 de sua obra, em especial nas seções “A Vida e o Espírito” e “A História e o Reino de Deus,” Tillich propõe uma visão onde o Espírito atua não para resolver as ambiguidades, mas para integrá-las, transformando as esferas individuais e coletivas da existência. A noção de “vida sem ambiguidade” emerge, então, não como uma categoria metafísica rígida ou escatológica final, mas como uma realização dinâmica e dialética do Espírito no ser humano, sustentada pelo conceito de “fé corajosa.” Esse conceito, central em sua obra, descreve a disposição do sujeito de se reconciliar com as tensões existenciais, sem anular as contradições intrínsecas à vida humana. As influências de Freud (1856–1939), Jung (1875–1961), Hegel (1770–1831), Kierkegaard (1813–1855) e pensadores da Escola de Frankfurt moldam essa visão de Tillich, que integra crítica e acolhimento às ciências humanas para propor uma teologia inclusiva e transformadora.

Para Tillich, as ciências humanas desempenham um papel crucial na compreensão das ambiguidades humanas e na cura espiritual. A influência de Freud e Jung, por exemplo, é evidente em sua interpretação do Espírito como uma força curativa que age sobre o inconsciente e os conflitos internos. Enquanto Freud, com sua teoria das pulsões, e Jung, com a noção de individuação, oferecem um entendimento das forças internas que moldam o ser humano, Tillich absorve essas noções, apresentando o Espírito como uma presença restauradora que atua tanto no consciente quanto no inconsciente, promovendo uma unidade que a Psicologia pode esclarecer, mas não alcançar por si só. Assim, Tillich propõe que a cura espiritual é um processo de autocompreensão contínua, onde a Psicologia facilita o reconhecimento das tensões, enquanto o Espírito propicia a possibilidade de integração.

A colaboração entre a Psicologia e o Espírito permite ampliar a compreensão espiritual e humana, estruturando uma parceria onde a “fé corajosa” se torna essencial. Em Tillich, a fé não é uma aceitação passiva, mas uma postura ativa e transformadora diante da existência, ressoando com a perspectiva pós-estruturalista de um sujeito descentralizado, continuamente transformado por suas relações com o outro e o mundo. A fé surge, então, como uma prática ética, na qual o sujeito se engaja nas ambivalências da existência, e o Espírito atua de maneira curativa e integradora. Nessa abordagem, o sujeito não é uma entidade fixa, mas um ser em constante construção, aberto às múltiplas dimensões e significações da vida.

Imagem: DALL-E

“A História e o Reino de Deus” assume, em Tillich, uma dimensão escatológica em que o Reino de Deus é concebido como uma realidade histórica e coletiva. Embora Tillich se baseie no idealismo dialético de Hegel para ver a história como um processo de transformação, ele vai além, propondo o Reino de Deus como uma resposta crítica e transcendente à alienação humana, que nunca se completa na história. Tillich rejeita uma leitura determinista, preferindo ver o Reino como um horizonte de esperança que transcende o tempo. Esse Reino simboliza a reconciliação das ambigüidades sociais e existenciais e representa uma utopia crítica que ilumina e questiona o estado humano e social, sem se esgotar em qualquer realização histórica.

A visão de Tillich também incorpora uma crítica profunda às ideologias e ao poder estabelecido. Alinhado aos pensadores da Escola de Frankfurt, ele identifica o Espírito como uma força redentora que desafia os domínios políticos e ideológicos. O Espírito, em Tillich, representa o “princípio protestante” que rejeita a idolatria das estruturas de poder, atuando como uma crítica imanente que transcende as limitações e opressões da realidade social. Para Tillich, a transformação escatológica do Reino de Deus é uma utopia crítica que desafia a fragmentação e alienação sociais e políticas, constituindo-se em um ideal dialético que ilumina e questiona o estado fragmentado do ser humano e da sociedade. Assim, o Espírito assume um papel crítico e transcendente, sem buscar uma concretização total e final, mas oferecendo um horizonte para práticas de justiça e inclusão.

O conceito de “preocupação última,” fundamental em Tillich, propõe uma teologia acessível a crentes e não crentes, apresentando-se como uma ciência universal da busca pelo sentido. Para Tillich, a teologia não é restrita ao círculo da fé, mas estende-se a todos que enfrentam questões sobre o sentido da existência e a finitude. Seu método correlacional, que relaciona perguntas existenciais a respostas teológicas, permite que a teologia dialogue com temas universais como ética, liberdade e alienação, tornando-se um espaço acessível a todos os interessados em compreender a condição humana. Tillich estrutura, assim, uma teologia inclusiva, onde as ciências humanas como a Psicologia e a Filosofia funcionam como mediadoras da experiência teológica, enriquecendo as perspectivas sobre o sentido último e a ação do Espírito na vida.

A força curativa do Espírito, de acordo com Tillich, abrange tanto as esferas psicológicas e sociológicas quanto as dimensões política e espiritual, propondo uma teologia que integra o potencial redentor do Espírito com as realidades históricas e sociais. Inspirado por Freud, Jung, Hegel, Kierkegaard e pela Escola de Frankfurt, Tillich desenvolve uma teologia que reconhece as ambiguidades humanas e a necessidade de cura e transformação contínuas. Com essa visão dialética, a vida sem ambiguidade torna-se uma experiência de integração onde a fé corajosa permite que o ser humano habite as ambiguidades, sem eliminá-las, mas compreendendo-as. Tillich utiliza a Psicologia como mediadora da autocompreensão e a Sociologia como facilitadora da reconciliação das realidades alienantes, expandindo a teologia para uma abordagem interdisciplinar que promove uma leitura inclusiva da espiritualidade.

Ao se aproximar de uma leitura pós-estruturalista, a teologia de Tillich não fixa sentidos absolutos, mas sugere um discurso aberto, onde o sujeito se constrói em meio a múltiplas significações e interações. Esse sujeito descentralizado assume uma postura ativa diante das ambiguidades, sendo constantemente reconstruído no processo existencial em que o Espírito age como força curativa. A guinada linguística permite ver a teologia como um jogo de linguagem, onde conceitos como o “Reino de Deus” e o “Espírito” se realizam de maneira performativa em uma rede de significados culturais e históricos, sem se limitarem a uma interpretação rígida ou estática.

Finalmente, o “Reino de Deus” pode ser interpretado, sob uma perspectiva inspirada por Deleuze (1925–1995) e Baudrillard (1929–2007), como um simulacro, uma representação que transcende as condições materiais e desafia opressões e desigualdades. Tillich concebe o Reino como uma utopia crítica, uma visão ética e transformadora que orienta a ação sem se fixar em uma definição final. Tillich confere, assim, à teologia uma função transformadora, onde o Reino de Deus ilumina e questiona práticas religiosas e sociais, promovendo uma espiritualidade crítica e transcendente. Dessa forma, ele reafirma o papel da teologia como uma ciência da “preocupação última,” que se estende à vida e à história, dialogando com outras ciências em busca de uma integração que transcenda a fragmentação e realize a plenitude do Espírito em uma vida concreta e histórica, crítica e aberta.

Referências
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

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