Desde a vitória de Trump, parte da esquerda tornou-se alvo de críticas pela sua aliança com o projeto político do identitarismo. Para alguns críticos, essa aliança enfraquece as lutas progressistas ao permitir que o identitarismo seja rapidamente absorvido pelo liberalismo político, o que limita seu alcance transformador e promove a fragmentação da classe trabalhadora. Contudo, no contexto de uma proposta de democracia radical, emergem alternativas ao universalismo liberal, alternativas que buscam uma compreensão mais inclusiva da solidariedade. Judith Butler, em “The Force of Nonviolence”, oferece uma dessas abordagens ao reformular o conceito de universalismo com base na noção de precariedade compartilhada, vista como uma condição intrínseca e inescapável da existência humana, capaz de fundamentar um universalismo ético que transcenda divisões identitárias.
Distante do universalismo liberal, que se ancora em uma igualdade formal e na defesa de direitos abstratos, Butler critica a ideia de que todos os indivíduos, como sujeitos autônomos e independentes, são igualmente protegidos e valorizados no sistema liberal. Contrapondo-se a essa concepção, ela argumenta que o verdadeiro ponto de partida para um universalismo ético e político deve ser a precariedade – a vulnerabilidade e interdependência inerentes à experiência humana. Para Butler, reconhecer essa precariedade, com todas as suas implicações éticas e políticas, é essencial para construir uma sociedade em que todas as vidas sejam igualmente valorizadas, protegidas e respeitadas.
Essa obra articula-se diretamente ao projeto teórico-filosófico da autora, especialmente em seu compromisso com a crítica à violência normativa e a defesa de uma ética relacional que atravessa sua produção intelectual. Essa ética relacional e baseada na precariedade ressoa, de forma potente, com uma crítica radical ao liberalismo e suas limitações em entender a vida humana como algo autossuficiente e isolado. Butler desafia o conceito de sujeito liberal autônomo, que constitui a base do universalismo moderno, ao propor que a real universalidade está no reconhecimento de uma interdependência ontológica (e na proteção da vida vulnerável em todas as suas formas).
A crítica de Butler ao individualismo liberal ecoa as noções foucaultianas de biopolítica e poder pastoral, conceitos centrais para a compreensão de como a vida humana é regulada e classificada em termos de quem merece proteção e cuidado. Foucault argumenta que o biopoder moderno impõe uma distinção entre os que devem ser “feitos viver” e os que podem ser “deixados morrer”, configurando assim uma violência estrutural nas instituições contemporâneas. Butler apropria-se dessa leitura para afirmar que o universalismo liberal, com sua pretensão de neutralidade e abstração, falha ao não considerar as diferenças materiais e simbólicas que estruturam a sociedade.
Em vez disso, Butler propõe que o universalismo deve ser construído sobre a noção de “grievability” (lamentabilidade), ou seja, sobre o reconhecimento de que todas as vidas merecem ser vividas e lamentadas igualmente. Butler expande essa crítica, sugerindo que o conceito foucaultiano de biopolítica, ao regular quem pode ser feito viver ou deixado morrer, legitima uma violência normativa que perpassa as instituições e permeia as práticas de exclusão social. Para Butler, o reconhecimento ético de uma vida como digna de lamento se torna central na luta por uma justiça que, além de reivindicar direitos, desafia a lógica de valor desigual das vidas, estabelecendo uma resistência à hierarquia normativa que institui a violência estrutural. Essa leitura foucaultiana fundamenta a crítica de Butler à desigualdade de tratamento e ao valor desigual das vidas, especialmente nas questões raciais e de gênero, que estão no cerne do pensamento biopolítico. Dessa forma, ela mantém sua abordagem crítica das normas que regulam as subjetividades e define o valor das vidas, um traço fundamental de seu projeto teórico, visível desde suas obras anteriores sobre performatividade e poder.
Neste ponto, Judith Butler utiliza as análises de Fanon sobre a violência colonial para construir uma crítica abrangente à violência estrutural que permeia as instituições modernas. Para Fanon, o colonialismo impõe uma violência total, que transcende a esfera física e incorpora formas de violência simbólica e psicológica que remodelam a subjetividade dos colonizados. Butler se apoia nessa perspectiva para afirmar que a violência contra populações marginalizadas, incluindo as racializadas e economicamente desfavorecidas, é sustentada por uma rede de estruturas sociais que justifica e até naturaliza a exclusão desses grupos. Este ponto é crucial para Butler, pois revela como a violência estrutural pode se apresentar como “não-violenta” em sua superfície, mas atua de forma insidiosa no cerne das práticas institucionais.
A partir desse conceito de violência estrutural, Butler aprofunda a ideia de “vidas grieveis” (grievable lives), que constitui um dos alicerces de sua obra. Enquanto Fanon demonstra como o colonialismo desumaniza e “desgrievabiliza” os colonizados, Butler amplia essa lógica para compreender como o Estado moderno se engaja em práticas biopolíticas que definem quais vidas são dignas de proteção e quais são relegadas ao abandono. A exclusão de certas vidas da esfera de proteção estatal reflete, para Butler, uma violência estrutural que vai além da força física, funcionando como uma forma de violência simbólica que legitima e reforça desigualdades. O diálogo com Fanon permite que Butler elabore uma crítica da violência que não apenas reconhece, mas enfatiza as dimensões racializadas e econômicas dessa exclusão institucional. Ao discutir “vidas grieveis”, Butler propõe uma ética da não-violência comprometida com a igualdade radical, onde toda vida é digna de luto e proteção.
Essa visão é enriquecida pela abordagem de Fanon à autodefesa como um ato de sobrevivência frente a uma estrutura violenta e opressiva. Para Fanon, a violência dos colonizados é uma resposta necessária à violência colonial, e, de certa forma, uma tentativa de reconstituir a dignidade humana através do rompimento da opressão. Butler revisita essa concepção, subvertendo a noção de autodefesa como defesa de um “eu” individualista e propondo uma “autodefesa relacional”, onde a proteção da vida do outro se torna essencial para a própria sobrevivência. Ao reinterpretar a autodefesa, Butler sugere que a verdadeira prática da não-violência está na preservação e no fortalecimento das relações interdependentes que formam a base da sociedade. Dessa forma, ela propõe uma “não-violência agressiva” que não foge do conflito, mas o redireciona para resistir à lógica de exclusão e destruição social. Fanon, então, oferece a Butler um ponto de partida para imaginar uma resistência que, embora determinada, evita a perpetuação do ciclo de violência e rejeita o individualismo como estrutura fundamental da política.
Além disso, o conceito de “grievability” de Butler se torna um elemento analítico central na articulação de uma ética de não-violência, inspirada pela crítica fanoniana da desumanização colonial. Em Fanon, a violência desfigura tanto a humanidade do colonizador quanto a do colonizado, reforçando a divisão entre o que é considerado humano e subumano. Butler amplia essa perspectiva para discutir como a violência estrutural do Estado não apenas exclui fisicamente os marginalizados, mas os torna invisíveis e “não-grieveis” aos olhos da sociedade. Ao defender que toda vida merece ser lamentada, Butler afirma uma ética que desafia as hierarquias de valor social e se compromete com uma transformação que inclui todas as vidas. Este compromisso ético cria uma nova prática de resistência que vai além da retribuição violenta e enfatiza a solidariedade e o reconhecimento mútuo, fundamentando-se numa interdependência que se opõe à lógica da exclusão.
O diálogo entre Butler e Fanon também ilumina a visão de Butler sobre a não-violência como resistência coletiva frente à violência do Estado. Fanon observa que a violência é muitas vezes a única expressão de resistência possível para aqueles cujas vozes e vidas são sistematicamente silenciadas. Butler, no entanto, propõe que essa resistência pode e deve adotar uma forma coletiva de não-violência, onde a interdependência entre os sujeitos é central. Ela sugere que a resistência não deve ser entendida como mero confronto, mas como a construção de alternativas de vida e solidariedade que se opõem ao abandono e à fragmentação promovidos pelo Estado. Inspirada por Fanon, Butler propõe uma prática de não-violência que desafia as divisões raciais e culturais que fundamentam a violência estrutural. Esse compromisso ativo com a construção de redes de apoio e reciprocidade promove uma ética política que rejeita as normas excludentes e legitima uma forma de vida solidária e integrada.
Em última instância, o diálogo entre Butler e Fanon fornece uma base sólida para que Butler critique a ordem social baseada na exclusão e proponha uma ética da não-violência como compromisso contínuo com a transformação das condições materiais de vida. Para Fanon, a libertação dos colonizados exige a erradicação das estruturas de opressão colonial; Butler amplia essa visão ao afirmar que a não-violência precisa ir além da resistência passiva e construir um projeto de futuro onde a interdependência e a igualdade sejam fundamentos centrais. A partir da análise de Fanon, Butler reforça que a não-violência é uma prática ativa de confrontação com a violência estrutural, e não uma aceitação resignada. Assim, a criação de um espaço social mais justo e igualitário passa pela reafirmação do valor e dignidade de todas as vidas, promovendo uma resistência que desafia e redesenha as formas como as vidas são valorizadas e reconhecidas.
A relação de Butler com a obra de Walter Benjamin é igualmente significativa, especialmente no que diz respeito à crítica do instrumentalismo na prática da violência. Em seu ensaio “Crítica da Violência”, Benjamin distingue entre a violência que cria e preserva a lei e uma “violência divina” que questiona essas estruturas de poder. Butler se apropria dessa distinção para explorar a não-violência como uma forma de resistência ética que transcende o campo legal e o contrato social, posicionando-a como um compromisso com a justiça e a igualdade que não se submete às estruturas de poder hegemônicas. Nesse sentido, a não-violência assume uma qualidade quase messiânica, pois desafia a instrumentalização da violência e a lógica de dominação, oferecendo um modelo de resistência radical que se opõe às hierarquias normativas. A referência à violência divina de Benjamin fornece a Butler uma maneira de visualizar a resistência não-violenta não como um ato passivo, mas como uma prática agressiva e transformadora. Esse aspecto também se alinha com a perspectiva de Butler sobre a necessidade de transformar as estruturas normativas que geram e perpetuam a violência, mostrando que a não-violência requer uma crítica radical às normas e que, para Butler, essa crítica deve ser agressiva, um ato de resistência que não cede à pacificação.
Um ato de resistência que não cede à pacificação, segundo Butler, é aquele que se recusa a aceitar a “paz” oferecida por estruturas de poder que mantêm hierarquias e desigualdades intactas. Em vez disso, essa resistência persiste em desestabilizar e expor as violências normativas, sejam elas institucionais, raciais, de gênero ou de classe, afirmando continuamente a necessidade de mudanças reais e profundas. Inspirada nas filosofias de Gandhi e Martin Luther King Jr., Butler defende que a verdadeira força da não-violência reside em sua capacidade de recusar compromissos que apenas perpetuem as dinâmicas de opressão e que mantenham o status quo. Dessa forma, um ato de resistência não-violenta que se recusa à pacificação é aquele que confronta o poder de maneira contundente, demonstrando que a não-violência não se trata de evitar o confronto, mas de transformar radicalmente as bases de convivência social, revelando a precariedade e interdependência compartilhadas como fundamentos para um novo horizonte ético e político.
Nessa perspectiva, Judith Butler recorre aos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. para enriquecer sua concepção de não-violência como uma prática ativa e transformadora. Ela examina a filosofia de Gandhi, especialmente seu conceito de “satyagraha”, traduzido como “força da alma”, que rejeita a violência e posiciona a não-violência como uma forma de resistência ativa e moral. Ao distinguir a “satyagraha” da simples resistência passiva, Gandhi vê nela um “instrumento dos fortes”, sugerindo que a não-violência requer coragem e determinação. Butler se apropria desse entendimento para desafiar a visão convencional de não-violência como fraqueza ou inação, argumentando que a recusa em recorrer à violência exige um comprometimento ético profundo com a justiça e a dignidade humana. A resistência não-violenta torna-se, assim, uma prática que não apenas evita a agressão, mas que também confronta e desestabiliza as estruturas de poder que sustentam a opressão, assumindo um caráter ético transformador.
Martin Luther King Jr., influenciado diretamente pela filosofia de Gandhi, também é uma figura central no argumento de Butler. King via a não-violência não apenas como uma tática de resistência, mas como um compromisso ético e espiritual que enraiza a luta pela justiça na fé na dignidade humana e na solidariedade social. Para Butler, a abordagem de King exemplifica a não-violência como uma prática que desafia a violência estrutural de forma contundente, sustentada por um ideal de igualdade que transcende a violência. A não-violência, para King e para Butler, não é uma mera abstenção de agressão, mas um ato de resistência com poder de transformação, que exige tanto um compromisso com a justiça quanto a crença na capacidade de reorganizar a sociedade em torno de princípios de respeito mútuo e interdependência. Esse ideal de não-violência, inspirado em figuras religiosas, fortalece a proposta de Butler ao ressaltar que a verdadeira força da não-violência está em sua capacidade de agir como uma forma de resistência ética, que rejeita o ciclo da violência e aponta para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Além disso, Sigmund Freud e sua teoria da pulsão de morte desempenham um papel central na concepção de Butler sobre a não-violência. Freud argumenta que a pulsão de morte e a agressividade são forças inerentes à psique humana, representando o potencial destrutivo nas relações interpessoais e sociais. Butler utiliza essa concepção para propor que a não-violência não se limita a reprimir a agressividade, mas implica uma constante negociação com essas forças destrutivas, ressignificando-as em práticas de cuidado e solidariedade que reconhecem a interdependência humana. A partir de Freud, Butler constrói uma ética de não-violência que admite a ambivalência e os conflitos inerentes aos laços sociais, sugerindo que o compromisso com a preservação da vida demanda um reconhecimento ativo dessas tensões. Essa postura sugere que a não-violência de Butler não é uma simples rejeição do conflito, mas uma negociação ativa com a agressividade. Ao integrar a teoria freudiana ao seu modelo de não-violência, Butler defende que a ética do cuidado deve ser entendida como uma prática dinâmica, capaz de sustentar uma vida coletiva em meio à pulsão destrutiva. Esse diálogo com Freud ressoa com a preocupação de Butler com a complexidade das relações sociais e as ambivalências que permeiam as construções da identidade e da subjetividade.
Aqui, Judith Butler oferece uma análise densa sobre a filosofia política freudiana, articulando as noções de guerra e destruição no contexto das pulsões humanas e seu papel na dinâmica social e política. Para Butler, a reflexão freudiana sobre a pulsão de morte não é meramente descritiva das tendências destrutivas do sujeito humano, mas levanta um questionamento profundo sobre como essas pulsões moldam as estruturas institucionais e os processos de violência sistemática. Baseando-se na correspondência entre Freud e Einstein, Butler examina a possibilidade de conter ou sublimar esses impulsos destrutivos e os desafios intrínsecos à própria construção de uma ética da não-violência, que, segundo a autora, não se baseia em um ideal pacífico individualista, mas sim em uma resistência ativa e agressiva contra as forças de opressão e violência estrutural.
Freud postula uma dialética entre Eros e Thanatos – a pulsão de vida e a pulsão de morte –, que configura o sujeito humano como um espaço de ambivalência psíquica, onde o desejo de preservação e união está em constante tensão com o impulso de destruição. Butler utiliza esse dualismo freudiano para problematizar as noções tradicionais de violência e não-violência. Para ela, ao tratar da destrutividade como parte constitutiva do sujeito, Freud permite uma leitura da violência que ultrapassa o âmbito do ato físico, revelando um substrato estrutural de violência que permeia as instituições e práticas sociais. Esta ambivalência freudiana, como argumenta Butler, desestabiliza a ideia de que a não-violência seria uma postura naturalmente pacífica; ao contrário, a autora propõe que a não-violência é, em si, uma prática carregada de uma agressividade que é direcionada contra a perpetuação da violência sistêmica.
Ao ampliar a noção freudiana da “faculdade crítica” como mecanismo psíquico que inibe a pulsão de destruição, Butler aponta para as implicações políticas desse conceito, em que o potencial de autocrítica do sujeito poderia funcionar como uma força moderadora dos impulsos destrutivos. Freud sugere que essa capacidade crítica é indispensável para a contenção dos impulsos de violência, especialmente no contexto de grupos sociais, onde o risco de dissolução dos laços é acentuado pela presença de forças destrutivas coletivas. Butler interpreta essa inibição como uma forma de resistência à destruição, propondo que, no campo da política, a crítica e a autocrítica podem ser formas de contenção de tendências autodestrutivas de caráter estrutural. Assim, a “faculdade crítica” freudiana torna-se central na análise de Butler sobre a possibilidade de uma política de não-violência, onde o exercício da crítica se manifesta não como um ideal abstrato, mas como uma prática necessária para conter e redirecionar as forças de violência e destruição que permeiam as estruturas sociais.
A discussão de Butler sobre o “crítico ambivalente” e a inibição crítica retoma a questão freudiana da formação do super-ego, que, ao internalizar as normas sociais, cria um espaço onde a pulsão destrutiva pode se voltar contra o próprio sujeito, em um processo de autonegação que pode assumir proporções autodestrutivas. Butler explora como essa dinâmica de autocrítica pode ser, ao mesmo tempo, uma prática de autocontrole e uma armadilha psíquica, em que o sujeito se torna vítima de um regime de normas que reforçam um ciclo contínuo de violência e autoagressão. No contexto político, isso sugere que a contenção da violência por meio de normas sociais deve ser acompanhada por uma análise crítica das próprias normas, evitando que o controle da violência acabe gerando novas formas de opressão e exclusão. Butler parece, assim, convocar o leitor a pensar a crítica como uma prática ética que desafia os mecanismos institucionais que instrumentalizam a violência, expondo os limites da contenção normativa e os perigos de uma cultura da pulsão de morte que se perpetua sob a aparência de ordem social.
A propósito, esse debate posiciona a psicanálise freudiana no centro do projeto ético-político de Butler, onde a não-violência é compreendida como um “vínculo ético-político” que transcende o individualismo e abraça uma interdependência agressiva. A autora sugere que a luta contra a violência estrutural exige uma reformulação da ética e da política, em que a crítica à violência sistêmica está intrinsecamente ligada à crítica do individualismo. Butler questiona as noções de autonomia e soberania, propondo que a verdadeira não-violência emerge do reconhecimento de uma interdependência que resiste à normatividade opressiva e ao abandono dos sujeitos mais vulneráveis. Assim, o capítulo se alinha com a tese central do livro ao propor que o combate à violência estrutural requer uma reavaliação da própria ideia de sujeito e da relação entre o eu e o outro, enfatizando que a ética da não-violência deve ser uma prática coletiva de resistência.
A análise de Butler, portanto, expande a filosofia freudiana ao explorar a dimensão social das pulsões destrutivas, questionando como a pulsão de morte influencia o comportamento coletivo e a organização política. Em sua visão, a luta pela não-violência não pode se restringir ao âmbito individual ou moral, pois demanda uma abordagem crítica da estrutura social e das condições materiais que promovem a violência como meio de controle. Butler propõe que a filosofia política e a psicanálise se encontram no compromisso de compreender a destrutividade como elemento constitutivo das relações sociais, mas também na tarefa de canalizar essa energia destrutiva para a construção de uma política de interdependência que valorize a vulnerabilidade e a precariedade da vida. Em última análise, o capítulo serve para reafirmar o argumento de Butler de que a não-violência é uma prática de "construção de mundo" que se opõe radicalmente ao individualismo e ao isolamento, promovendo um compromisso ético com a igualdade e a interconexão.
Outro diálogo filosófico que enriquece o argumento de Butler é com Immanuel Kant, particularmente em relação ao princípio da universalidade moral. Kant, ao formular o imperativo categórico, propõe que uma ação moral deve poder ser universalizada sem contradições. Butler aplica essa ideia ao questionar os limites éticos da violência, especialmente nas justificativas de autodefesa. Ao propor um universalismo fundamentado na precariedade, ela sugere que o ideal de igualdade deve ir além das fronteiras liberais e incorporar o reconhecimento da interdependência, um movimento que ela acredita ser necessário para ampliar a concepção kantiana de moralidade universal. Este diálogo com Kant reforça o argumento de Butler de que a não-violência não é uma simples escolha individual, mas uma responsabilidade coletiva que transcende o indivíduo e se estende ao coletivo. Ao propor uma revisão kantiana que inclui a precariedade como fundamento ético, Butler está, de certo modo, reinterpretando o imperativo categórico para uma ética que reconhece a complexidade da diferença e da vulnerabilidade humana.
Para Butler, Étienne Balibar e Hannah Arendt oferecem ainda perspectivas adicionais para a análise do poder e da violência. Balibar, ao discutir a violência e a civilidade, sugere que a violência inerente às estruturas sociais deve ser constantemente confrontada para que se construa uma sociedade mais justa. Butler usa essa ideia para ampliar seu entendimento da não-violência como uma prática ativa de resistência que não apenas rejeita a violência explícita, mas que também desafia as formas de violência estrutural que regulam e marginalizam. Por outro lado, Arendt, em sua distinção entre poder e violência, argumenta que o poder verdadeiro não necessita da violência para se manter, uma visão que Butler incorpora ao discutir a não-violência como uma manifestação de poder que valoriza a solidariedade e a construção de alianças. Butler se apropria dessa distinção arendtiana para questionar as justificativas de autodefesa usadas por Estados e outras instituições, que utilizam a violência sob o pretexto de proteger a “segurança pública” e a “ordem social”. Tais perspectivas complementam o projeto de Butler ao aprofundarem a crítica às formas de poder que se utilizam da violência, reforçando seu compromisso com a criação de alianças e redes de apoio mútuo.
Em “The Force of Nonviolence”, Judith Butler também confronta a questão da violência revolucionária, discutindo-a sob uma perspectiva crítica e diferenciada. Ao tratar do uso da violência como uma possível ferramenta de resistência em contextos de opressão, ela levanta uma importante questão: pode a violência revolucionária realmente fomentar uma transformação estrutural duradoura ou, ao contrário, corre o risco de reproduzir as mesmas lógicas de dominação que pretende abolir? Butler sugere que, ao recorrer à violência, mesmo por motivos considerados justos, os movimentos revolucionários podem inadvertidamente perpetuar uma ética instrumental e normativa que fundamenta os sistemas de poder opressivos. A ideia de que a violência, quando usada para fins revolucionários, pode se tornar um meio necessário para alcançar um objetivo justo, tende, para Butler, a comprometer a integridade ética do movimento. Nesse sentido, sua visão ecoa a crítica de Walter Benjamin, para quem a violência instrumental jamais pode ser completamente separada da lógica de dominação que busca destruir. Ao adotar a violência, a resistência revolucionária pode, portanto, se enredar nas mesmas estruturas que luta para subverter.
A partir dessa crítica, Butler propõe que a não-violência deve ser entendida como uma alternativa radical à violência revolucionária, não como ausência de conflito, mas como uma prática de resistência ética que transcende a lógica binária entre opressor e oprimido. Em sua visão, a verdadeira transformação política e social não reside na conquista do poder pelo poder, mas sim na criação de relações e instituições que rejeitem a instrumentalidade violenta. Em vez de reivindicar o poder por meio da força, Butler defende que a resistência política e ética deve reimaginar o próprio conceito de poder, buscando estruturas que se baseiem em princípios de dignidade, solidariedade e interdependência. A proposta de Butler, então, não nega o valor das lutas históricas contra regimes opressores, mas questiona se a violência, mesmo com propósitos revolucionários, pode efetivamente conduzir a uma sociedade mais justa e igualitária. Para ela, o compromisso com a não-violência não é uma postura passiva, mas uma forma ativa de resistência que desafia e subverte os mecanismos de poder hegemônicos, promovendo um novo horizonte político fundamentado na ética do cuidado e no respeito universal pela precariedade compartilhada.
Assim, a não-violência, segundo Butler, constitui-se como uma prática de resistência que, longe de se submeter ao status quo, busca criar as condições para uma transformação que transcende as relações de poder baseadas na violência. Esse ideal de resistência ativa e não-violenta, que recusa a lógica da violência revolucionária, emerge como um imperativo ético para Butler, na medida em que coloca a dignidade humana e o reconhecimento da vulnerabilidade mútua no centro do projeto político. Em sua concepção, a luta por justiça e igualdade requer uma reestruturação completa das formas de interação social, na qual o reconhecimento e a valorização das vidas precarizadas passam a ser fundamentais para o novo imaginário político.
Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.
Imagem: DALL-E
Podemos aqui ensaiar algumas provocações: em que medida as reflexões de Butler poderiam dialogar com o individualismo protestante, especialmente no contexto brasileiro, e contribuir para uma ética social mais abrangente? Vale lembrar que o calvinismo, de modo análogo, também parte da precariedade dos indivíduos: O conceito de depravação em João Calvino, como articulado nas Institutas da Religião Cristã (1559), fundamenta-se na concepção mítica de uma corrupção essencial e total da natureza humana, originada a partir da queda de Adão. Calvino não trata o pecado apenas como um conjunto de ações específicas ou falhas morais pontuais, mas o conceitua como um estado ontológico de alienação, que representa uma ruptura profunda e contínua entre o ser humano e Deus. Para ele, o pecado original é uma “depravação e corrupção hereditária”, algo que se infiltra na própria essência da humanidade e permeia todas as faculdades da alma, impossibilitando o ser humano de realizar, por seus próprios meios, qualquer ação que agrade a Deus (Institutas II.1.5). Esse ponto é central, pois fundamenta a necessidade de uma intervenção divina para qualquer retorno à retidão.
Na perspectiva de Calvino, essa corrupção é abrangente e absoluta, sem qualquer parte do ser humano que esteja imune à influência devastadora do pecado. O intelecto, a vontade e as emoções encontram-se igualmente corrompidos, o que configura o ser humano em um estado de contínua incapacidade para o bem. A profundidade dessa corrupção coloca o ser humano em um dilema insuperável, pois, mesmo que o desejo de buscar o bem se manifeste, ele se vê perpetuamente inibido pelo domínio do pecado, que aprisiona sua vontade. Ao contrário das perspectivas que enfatizam o livre-arbítrio como uma força ativa e operante para o bem, Calvino descreve a vontade humana como “em miserável servidão” ao pecado. A noção de depravação total e o conceito de um livre-arbítrio “escravizado constroem uma visão pessimista da condição humana, subjugada a uma “rebeldia estrutural” contra Deus (Institutas II.2.8).
Esse entendimento da natureza humana rejeita veementemente as ideias pelagianas, que atribuem a transmissão do pecado original à mera imitação. Para Calvino, o pecado não é uma mera influência externa, mas uma realidade intrínseca, um “contágio” transmitido hereditariamente desde Adão a toda a sua descendência. Assim, a depravação é uma corrupção radical e inescapável que se perpetua através das gerações, deixando o ser humano em uma condição que só pode gerar ações contrárias à vontade divina. Ao afirmar que o ser humano é “fecundo em todas as coisas ruins”, Calvino enfatiza a insuficiência das capacidades naturais humanas para o bem, reforçando que, sem a intervenção da graça divina, o homem está condenado a viver em oposição aos desígnios de Deus (Institutas II.1.8).
No cerne dessa depravação encontra-se o conceito de “concupiscência”, que Calvino entende como uma inclinação incontrolável e desordenada para o pecado. A concupiscência representa, para ele, um estado de corrupção moral interna, que molda as escolhas, desejos e motivações do indivíduo, direcionando-o para uma contínua alienação da bondade divina. Esse estado de alienação é, segundo Calvino, tão determinante que a natureza humana se vê conduzida a uma trajetória de autodestruição espiritual e moral. A concupiscência não é, portanto, um desejo específico ou restrito, mas uma inclinação radical que contamina todos os aspectos da vida humana, reforçando a necessidade de uma intervenção externa para qualquer possibilidade de reconciliação com Deus (Institutas II.2.10).
A solução para essa condição de depravação, na visão de Calvino, não se encontra em qualquer potencial humano, mas exclusivamente na obra redentora de Cristo e na regeneração operada pelo Espírito Santo. Calvino defende que essa regeneração não é um mérito ou conquista humana, mas uma obra da graça soberana de Deus. Somente por meio desse ato regenerador a mente e o coração humanos podem ser transformados, habilitando o ser humano a buscar a justiça. Essa regeneração é um processo monergístico, em que a vontade e a ação de Deus são essenciais e exclusivas, determinando a renovação espiritual do ser humano sem qualquer cooperação humana. Assim, a redenção se torna um reflexo da glória divina, como um dom que transcende as capacidades humanas e que só pode ser recebido por meio da graça (Institutas II.3.3).
Por fim, a doutrina da depravação total em Calvino não apenas destaca a profundidade do pecado humano, mas sublinha a centralidade da graça divina como o único meio de redenção. Ao afirmar que o ser humano está em um estado de perdição completo, Calvino exalta a necessidade absoluta da graça para libertá-lo das amarras da corrupção. A regeneração, neste contexto, é mais do que uma mudança de comportamento ou uma reorientação moral; é um dom divino que transforma a essência do ser humano, renovando a sua natureza e permitindo-lhe viver de acordo com a justiça divina. Dessa forma, a depravação total e a regeneração monergística constituem elementos interdependentes, estabelecendo as bases teológicas para a salvação, onde a intervenção divina é a única esperança de restauração (Institutas II.3.6).
Na proposta de leitura dialógica entre a noção de depravação total em Calvino e a vulnerabilidade em Judith Butler, surge uma interpretação secular da insuficiência humana que ressoa em ambas as concepções. A perspectiva de Calvino sobre a depravação total descreve uma corrupção ontológica que abrange todas as faculdades humanas, tornando o indivíduo completamente incapaz de alcançar o bem divino sem uma intervenção sobrenatural. Esse estado de alienação não se refere meramente à prática de atos imorais, mas a uma condição existencial de insuficiência, onde o ser humano é profundamente dependente da graça divina para obter regeneração espiritual. A depravação, portanto, não permite que o sujeito supere sua própria alienação sem uma força transcendental que o resgate de sua natureza corrompida.
Judith Butler, ao tratar da vulnerabilidade e da precariedade, apresenta uma visão da condição humana que ecoa, em termos seculares, essa dependência essencial. Em sua concepção, a vulnerabilidade é uma característica ontológica que revela o ser humano como inerentemente exposto e interdependente, incapaz de sustentar-se fora de relações sociais e de apoio mútuo. A sobrevivência e o reconhecimento dependem de uma resposta ética a esse estado de exposição, implicando uma fragilidade que demanda uma estrutura de cuidado e coabitação. Surge então a provocação: essa vulnerabilidade, situada no plano ético-social, espelha de certo modo o estado de necessidade essencial descrito por Calvino, em que o ser humano, sem uma intervenção externa, estaria inevitavelmente destinado à autodestruição ou ao isolamento? Em ambos os casos, a insuficiência humana parece requerer uma transformação que transcende as capacidades individuais, seja pela graça divina ou pela ética da interdependência. Desenvolver esse ponto, no entanto, exigiria inúmeras mediações sócio analíticas, correndo o risco de trair a especificidade de cada autor. Ainda assim, ele permanece como uma instigante questão para futuras reflexões.
Concluindo, a precariedade em Butler não se limita a um estado ontológico de fragilidade humana, mas é constituída materialmente por relações de poder que definem quais vidas merecem amparo e quais são deixadas à margem. Em “The Force of Nonviolence”, Butler vincula a vulnerabilidade a condições estruturais que expõem populações racializadas, economicamente desfavorecidas ou marginalizadas a uma violência silenciosa, onde o abandono e a exclusão operam com a mesma força que a violência física. Para Butler, essas condições produzem um estado de vulnerabilidade distribuído de forma desigual, resultante de uma economia política que determina o valor das vidas segundo sua posição nas hierarquias sociais. Assim, a grievability representa um reconhecimento da dignidade e do valor de todas as vidas, desafiando não apenas a exclusão ética, mas também os processos materiais que perpetuam desigualdades. Essa “graça” secular, portanto, se fundamenta na resposta às necessidades concretas das vidas precarizadas, propondo uma solidariedade ativa e relacional que reconfigura as estruturas sociais de amparo e proteção.
Ao deslocar a crítica ao individualismo liberal para o plano das práticas de reconhecimento e proteção social, Butler também desafia o conceito de sujeito autônomo que caracteriza o universalismo abstrato. Sua ênfase na interdependência humana revela uma crítica mais ampla à noção de que o indivíduo é uma unidade completa, que existe independentemente dos laços sociais. Em contraste com o sujeito calvinista, que depende exclusivamente da graça divina, o sujeito de Butler encontra sua dignidade e reconhecimento na coabitação e no cuidado mútuo, onde a “graça” se manifesta não como intervenção sobrenatural, mas como prática coletiva de resistência e de justiça. Assim, enquanto o liberalismo promove a autonomia do sujeito, o pensamento de Butler radicaliza o entendimento do sujeito como dependente da interdependência social e da dignidade partilhada, sugerindo, paradoxalmente, uma ética relacional que ecoa, em chave secular, a dependência radical da graça calvinista. Nesse sentido, o universalismo da precariedade exige uma ética do cuidado que transcenda o sujeito isolado, posicionando o valor da vida no centro de um projeto político e ético que desafia as exclusões estruturais e redefine as bases da solidariedade em uma democracia radical.
Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. A “graça” secularizada, nos termos desta “precária” tentativa de tradução teológica, torna-se um compromisso ativo de justiça, respondendo não apenas a um ideal ético abstrato, mas às urgências concretas que desafiam a exclusão estrutural. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.
Referências
BUTLER, Judith. The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind. London: Verso, 2020.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 4 v. (Baseada na edição de 1559).
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