domingo, 20 de abril de 2025

A Ressurreição como Acontecimento Político-Teológico

Entre o Kairós e a Crise

A ressurreição de Jesus constitui, na tradição cristã, o evento por excelência — acontecimento a desestabilizar as categorias da história e da linguagem, da política e da teodiceia, da experiência e da promessa. Ela não se apresenta como um fato bruto a ser objetivamente verificado (cf. Mc 16,6), nem tampouco como uma metáfora inofensiva a ser dissolvida em subjetivismo. Trata-se, antes, de um acontecimento escatológico que irrompe da margem da história (e a reconfigura a partir de sua fratura interna), instaurando uma nova ontologia do tempo e da existência. A distinção entre o modo e o significado da ressurreição, tal como desenvolvida por John Dominic Crossan, revela-se aqui um instrumento hermenêutico de grande potência. Ao invés de restringir a ressurreição a um debate sobre sua literalidade (ou factualidade empírica), o que está em jogo é a capacidade dessa afirmação pascal de instaurar um mundo outro, uma ontologia alternativa, uma nova economia do desejo e da linguagem, enraizada em uma promessa escatológica que suspende e desafia a ordem do presente.

Nessa perspectiva, a afirmação “Cristo ressuscitou” não aponta para uma reanimação biológica (ou para um retorno espetacular à cena da história), mas para um acontecimento teológico de descontinuidade radical (cf. 1Cor 15,12-28). Ao dizer que o crucificado ressuscitou, afirma-se que o mundo está, desde então, sob o juízo e a promessa de um Outro que não se submete às lógicas do poder, da violência nem às narrativas da morte. A Páscoa não confirma o sentido linear da história; ela o desmente. Onde a ordem estabelecida via fracasso, Deus instaurou o começo. Essa inversão opera não apenas no plano espiritual, mas atinge em cheio o núcleo das estruturas sociopolíticas e simbólicas. A ressurreição, nesse sentido, não pode ser reduzida a uma experiência interior ou a uma projeção subjetiva do desejo humano por transcendência. Se há transcendência aqui, ela é a da justiça — uma justiça escatológica que exige corporeidade (cf. Rm 6,5), que restitui os humilhados e que confronta os dispositivos de morte em suas múltiplas expressões políticas, econômicas e teológicas.

Nesse horizonte, a ressurreição não pode ser instrumentalizada por agendas religiosas que desejam legitimar o poder soberano. A tentação constante da publicização da fé pascal em contextos seculares, sobretudo quando mediada por discursos teocráticos e sacralizantes do Estado, desfigura sua radicalidade escatológica e messiânica. A autoridade conferida ao Ressuscitado — e, por extensão, à sua eclésia —, segundo o testemunho sinótico, não é constituída pelas mediações institucionais (ou pela soberania jurídico-política), mas é compreensível somente sob o brilho da cruz. O Ressuscitado inaugura uma ἐξουσία (exousía) que é κενωτική (kenōtikḗ), oblativa, diaconal — uma autoridade que se realiza na vulnerabilidade, no discipulado, na renúncia e na proclamação escandalosa de um Reino cuja natureza é irreconciliável com as formas profanas de soberania. A fé pascal resiste, portanto, tanto à laicidade liberal que relega a religião ao âmbito do privado, quanto ao fundamentalismo religioso que instrumentaliza a cruz para fins de hegemonia cultural.

A fé da Igreja primitiva nasce da proclamação querigmática de que Jesus de Nazaré foi ressuscitado por Deus (cf. At 2,24), e que esse evento é a verificação escatológica da fidelidade divina à promessa. Essa proclamação não tem como referente apenas um dado biográfico, mas configura uma nova gramática teológica, a partir da qual a história é lida de forma escatológica. A ressurreição inaugura uma nova temporalidade, aquilo que Louis Martyn designa como invasão do tempo pelo evangelho, e que Giorgio Agamben interpreta como o tempo messiânico, o καιρός (kairós) que interrompe o χρόνος (chrónos). Nessa nova estrutura temporal, a comunidade dos crentes se constitui como espaço provisório de antecipação escatológica: corpo político da nova criação, mas ainda inserido no velho mundo. Por isso, sua vocação é também resistência. Ela não legitima o presente; ela o confronta, como presença de uma alteridade que o mundo não pode suportar.

Essa dimensão confrontadora da fé pascal encontra ressonância em Paulo de Tarso, cuja teologia apocalíptica, segundo Martyn, não pode ser reduzida a um espiritualismo ético ou a um projeto moral. O Cristo ressuscitado que Paulo anuncia não é o mesmo que viveu “segundo a carne” (cf. 2Cor 5,16); trata-se de uma nova realidade ontológica, inseparável da reconfiguração subjetiva de Paulo como testemunha de uma nova criação. Ao afirmar que a “aparência deste mundo passa” (1Cor 7,31), Paulo está anunciando o colapso da ontologia imperial, a desconstrução do cosmos antigo e o surgimento de uma nova economia existencial fundada na justificação pela graça. Aqui, a fé pascal opera como uma gramática disruptiva, que desmonta os pares morais binários e propõe uma nova forma de subjetividade — marcada por despossessão, hospitalidade, gratuidade e resistência.

Nesse sentido, a ressurreição de Jesus não é um evento privado, mas o início de uma transformação coletiva e cósmica. Tal como sugerem os ícones orientais que retratam o Ressuscitado rompendo as portas do Hades e libertando os justos do passado, trata-se de um acontecimento corporativo, não individualista. A ressurreição inaugura o tempo da comunidade messiânica, que se constitui como corpo social alternativo — não no sentido de separação sectária do mundo, mas como espaço de antecipação escatológica do Reino. Essa comunidade se realiza na prática da partilha, no gesto de partir o pão, na solidariedade com os pobres, na recusa da violência, na hospitalidade aos estrangeiros e na resistência aos dispositivos biopolíticos que governam a vida nua. Ela é o espaço do já-e-ainda-não: já redimida pelo Cristo, ainda ferida pelo mundo.



A teologia contemporânea, especialmente aquela que dialoga com a filosofia política continental, tem interpretado essa dimensão como um gesto subversivo que põe em xeque os fundamentos ontoteológicos da soberania moderna. A ressurreição de Cristo — compreendida como evento que desarticula o poder da morte e da exclusão — subtrai-se às categorias da representação e da legalidade. A tradição messiânica de Paulo, resgatada por autores como Badiou, Agamben e Žižek, revela que o evento pascal inaugura uma universalidade singular, irreconciliável com o universalismo formal do direito moderno. A fidelidade ao acontecimento da ressurreição implica um engajamento existencial que subverte os mecanismos de inclusão e exclusão, introduzindo uma nova economia do ser: aquela da graça, da reconciliação e da justiça.

Essa universalidade não se realiza por meio da normatividade de um sistema moral ou jurídico, mas por meio da convocação a uma subjetividade messiânica — aquela que, vivendo “como se não” ( ὡς μὴ [hōs mē]), encarna uma existência provisória, peregrina e apocalíptica. Essa subjetividade não se identifica com nenhuma forma de poder constituído, mas permanece como figura messiânica no seio de um mundo em colapso. A ressurreição, nesse horizonte, é evento de crise: crise para a história, crise para a linguagem, crise para a teologia. Ela exige um novo léxico, uma nova imaginação, uma nova ontologia. Como observou Dietrich Bonhoeffer, a Igreja não existe para si mesma, mas para o mundo: sua vocação é desaparecer como forma de poder, para que o Reino de Deus se manifeste em toda a sua plenitude.

Dizer que Cristo ressuscitou é proclamar que o mundo não está condenado à repetição da injustiça. É afirmar que a cruz não foi a última palavra. É convocar a comunidade dos discípulos à insurreição da ternura, à práxis do Reino, à resistência contra a naturalização da morte. Aqui ecoa o grito de Rubem Alves: “O corpo de Cristo continua crucificado. A criação é um gemido. E nós gememos [de dor] também...”. A ressurreição, nesse sentido, é também solidariedade histórica com os crucificados do presente. Como lembra Jon Sobrino, a ressurreição de Jesus é a confirmação definitiva de que Deus está com os pobres e crucificados da história — e que neles a esperança não será envergonhada. Nesse sentido, a fé pascal não pode ser capturada por nenhum projeto ideológico, pois ela excede todas as formas de instrumentalização. Sua verdade só se manifesta na carne concreta dos corpos restaurados, das relações reconciliadas, da terra regenerada. A ressurreição é o começo de uma nova criação, cuja manifestação plena ainda está por vir, mas cujos sinais já irrompem nas brechas do presente. A Igreja, como corpo do Ressuscitado, é chamada a viver sob esse signo: entre o já e o ainda não, entre a cruz e a glória, entre a memória do sofrimento e a esperança da plenitude. Essa é sua vocação pascal. Essa é sua responsabilidade escatológica. Feliz Páscoa!

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