segunda-feira, 21 de abril de 2025

A União com Cristo e a Crise da Teologia Sistemática

A doutrina da união com Cristo (unio cum Christo) constitui o fulcro da soteriologia reformada e, ao mesmo tempo, o ponto de tensão mais agudo entre a teologia de João Calvino (1509–1564) e seus desdobramentos na ortodoxia reformada subsequente. Longe de ser apenas um conceito devocional ou metafórico, trata-se, para Calvino, de uma realidade ontológica e espiritual que estrutura toda a experiência da salvação. Tal abordagem, no entanto, não se preserva inalterada nos séculos seguintes, especialmente com o desenvolvimento da ordo salutis na escolástica protestante, culminando em debates teológicos e filosóficos que atravessam a modernidade e desembocam nas atuais reconfigurações da teologia sistemática.

Desde o início do Livro III das Institutas da Religião Cristã (1559), Calvino insiste que todo o valor redentor da obra de Cristo permanece inócuo enquanto ele estiver fora de nós (extra nos, Institutas, III.1.1). A mediação do Espírito Santo realiza, assim, uma verdadeira incorporação espiritual: a fé não é apenas um assentimento, mas uma participação vivificante. Calvino fala de Cristo como o receptáculo do Espírito, de quem recebemos toda a plenitude dos dons (Institutas, III.1.2). Em sua teologia, justificação, adoção, santificação e glorificação são aspectos derivados dessa união fundamental. Mais ainda: essa união é a forma concreta pela qual o crente participa de Cristo, num modelo fortemente trinitário, no qual o Pai concede o Filho, o Filho se entrega a nós, e o Espírito nos une a ele. Não se trata, portanto, de mera sequência espiritual, mas de uma teologia da habitação, do envolvimento pessoal e do engajamento sacramental, em que o batismo e a ceia têm valor porque ratificam e alimentam a realidade dessa união.

Ao contrário do que é frequente nos sistemas teológicos posteriores, Calvino não organiza os benefícios da salvação como uma cadeia causal rigidamente ordenada, mas como frutos simultâneos de um mesmo evento relacional. Não há, portanto, ordo salutis no sentido estrito: há um Christus totus, cujos benefícios são comunicados pela fé mediante o Espírito. O elo ético entre a justificação e a santificação, tantas vezes dissecado pela ortodoxia posterior, não se expressa em termos de precedência lógica ou ontológica, mas de simultaneidade espiritual. O mesmo Cristo que nos justifica nos santifica e nos glorifica, não por etapas estanques, mas por uma operação viva do seu Espírito em nós.

Com a consolidação da ortodoxia reformada nos séculos XVII e XVIII, especialmente com teólogos como Johannes Wollebius (1586–1625), Francis Turretin (1623–1687) e Petrus van Mastricht (1630–1701), ocorre uma sistematização da doutrina da salvação em termos lógico-causais. A influência das categorias aristotélicas – causa eficiente, formal, final e material – é notável. A ordo salutis emerge, nesse contexto, como tentativa de clarificar a aplicação temporal dos decretos eternos. Mesmo autores como William Perkins (1558–1602) ou William Ames (1576–1633), ainda próximos de Calvino, já esboçam uma catena aurea que, embora baseada na Escritura, se aproxima de uma teleologia hierárquica e causal.

Richard A. Muller, em sua reinterpretação historiográfica da ortodoxia reformada, argumenta com pertinência que a escolástica não representa uma corrupção da teologia reformada, mas um refinamento metodológico. Muller demonstra que o termo ordo salutis só surge tecnicamente no século XVIII, mas a estrutura causal já estava presente em exegeses como a de Romanos 8:29–30. Sua contribuição é decisiva para desmontar o clichê da ruptura entre Calvino e os calvinistas. Todavia, seus limites também são evidentes: ao enfatizar a continuidade institucional e metodológica, Muller por vezes negligencia as inflexões espirituais e existenciais que a teologia da união com Cristo comporta. O risco é que, ao salvar a reputação intelectual da ortodoxia protestante, se perca de vista o dinamismo relacional que estruturava a espiritualidade de Calvino.

Nesse ponto, é importante considerar o contraste metodológico entre a abordagem de Muller (2012) e a perspectiva proposta por Calvin and His Influence, 1509–2009. Enquanto Richard A. Muller se ancora em uma história das doutrinas com forte atenção ao desenvolvimento sistemático (e à precisão conceitual, diga-se de passagem), a coletânea organizada por Irena Backus e Philip Benedict adota um enfoque mais amplo, cultural e hermenêutico, voltado para a história da recepção e das transformações do calvinismo como conceito e fenômeno social. A obra insiste na importância da Begriffsgeschichte (história dos conceitos) e desconfia das tendências a essencializar ou identificar linearmente Calvino e calvinismo. Tal diferença metodológica permite que o volume explore a pluralidade dos legados calvinistas, inclusive seus usos políticos e ideológicos em contextos como o apartheid sul-africano, indo além do escopo estritamente dogmático. Enquanto Muller reconstrói os nexos internos da tradição reformada em termos teológicos, Calvin and His Influence desloca a questão para o campo das disputas sobre interpretação, memória e identidade confessional.

Com a modernidade, a estrutura que sustentava a ordo salutis – baseada em uma metafísica da essência, da causalidade e da teleologia – é profundamente abalada. Desde Immanuel Kant (1724–1804) e sua crítica à razão pura, passando por Friedrich Nietzsche (1844–1900) e Martin Heidegger (1889–1976), até os desdobramentos da hermenêutica filosófica (Hans-Georg Gadamer [1900–2002], Paul Ricoeur [1913–2005]) e da filosofia da linguagem (Ludwig Wittgenstein [1889–1951]), ocorre uma erosão da ideia de fundamento estável. O colapso da metafísica é, portanto, também o colapso de uma ontologia teológica que presumia uma ordem fixa e inteligível na relação entre Deus e o ser humano. A ordo salutis, enquanto estrutura causal dedutiva, torna-se cada vez mais estranha à sensibilidade contemporânea, não apenas em função de mudanças filosóficas, mas também pela desconfiança ética diante de sistemas que pretendem encerrar o mistério do agir divino em esquemas fechados.


Neste contexto, os conceitos clássicos da teologia sistemática reformada sofrem com a perda de sua inteligibilidade cultural. A ordo salutis perde seu vigor explicativo, pois não há mais base ontológica comum para sustentar uma cadeia causal da redenção. A tentativa de preservar o esquema mediante categorias dogmáticas torna-se insustentável sem revisão epistemológica. A própria linguagem de benefícios ou aplicação da redenção torna-se passível de crítica, ao pressupor uma estrutura do sujeito e do objeto que os pensadores contemporâneos colocam sob suspeita. Não se trata apenas de uma mudança de linguagem, mas de uma desconstrução da gramática teológica que sustentava toda uma cosmologia redentora. A crítica pós-estruturalista torna esse ponto ainda mais agudo: teólogos como Jean-Luc Marion (Dieu sans l'être), Gianni Vattimo (Credere di credere) e John Caputo (The Weakness of God) desestabilizam as categorias clássicas da presença, da soberania e da essência, propondo uma teologia do dom (donum), da fraqueza (kenōsis) e da desconstrução como paradigmas alternativos à teologia da glória. A ordo salutis, nesse horizonte, não é apenas um modelo arcaico: é um índice de um regime teológico de controle, que submete a liberdade do dom à lógica da previsibilidade e da estruturação metafísica.

Diante desse impasse, surgem alternativas que buscam recuperar a densidade da doutrina da salvação sem recorrer a sistemas causais. Muitas dessas propostas têm em comum a revalorização da unio cum Christo como categoria estruturante. Autores como Thomas F. Torrance, James K. A. Smith, John Zizioulas e Miroslav Volf propõem modelos de participação ontológica, narrativa ou eclesial da salvação. Em vez de uma sequência ordenada de atos, a salvação é compreendida como evento relacional, escatológico e comunitário. A encarnação, morte e ressurreição de Cristo são lidas não como marcos de um itinerário moral, mas como a irrupção de uma nova ontologia do ser, fundando não apenas uma nova economia da graça, mas também uma nova hermenêutica da esperança e da participação.

Tal deslocamento permite recuperar aspectos esquecidos da tradição reformada, como a centralidade do culto, da ceia, da vida comunitária e da tensão entre justificação e santificação não como fases, mas como dimensões coexistentes da vida em Cristo. Aqui, a tradição reformada reencontra, no coração da sua espiritualidade, os traços de uma teologia do dom e da presença, cuja inteligibilidade teológica só se sustenta a partir de uma ontologia participativa, relacional e escatológica.

Essas críticas não devem ser ignoradas por quem deseja repensar a teologia reformada em chave contemporânea. Ao invés de apego defensivo à forma escolástica, é preciso retornar ao nervo vivo da tradição: a união com Cristo como forma plena da salvação. Tal retorno não é regressivo, mas antecipatório, porque reencontra, no coração da tradição, os recursos para atravessar a crise da modernidade. A precisão histórica nos impede de romantizar Calvino ou demonizar os escolásticos reformados. Ambos são filhos de seu tempo, respondendo a desafios distintos. No entanto, é possível afirmar que a tensão entre uma teologia da relação e uma teologia do sistema permanece vigente. Reconhecer os limites do modelo causal não é abandonar a ortodoxia, mas retornar à sua fonte vital: o Cristo vivo, unido ao seu povo por graça, no Espírito, na história e na esperança.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (org.). Calvin and His Influence, 1509–2009. New York: Oxford University Press, 2011.
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

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