A construção de uma imagem biográfica de João Calvino (1509–1564) como um trabalhador compulsivo — ou, nos termos contemporâneos, um workaholic — encontra respaldo nas análises de Max Engammare, especialmente em seu ensaio incluído na coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009. Engammare (2011) descreve um Calvino cuja vida era marcada por uma meticulosa organização do tempo, disciplina ferrenha e uma dedicação incansável ao trabalho teológico e pastoral, mesmo diante de severos problemas de saúde. Acordando por volta das quatro da manhã, Calvino lia e escrevia ainda na cama, dedicava-se à pregação diária em semanas alternadas, ministrava duas pregações aos domingos, lecionava teologia, participava do Consistório e de reuniões do “Petit Conseil”, além de manter uma vasta correspondência e uma produção exegética constante. Mesmo em seus últimos dias, debilitado por dores físicas que incluíam febre, cálculos renais, úlcera estercoral e possíveis sintomas de tuberculose, ele insistia em manter sua rotina, sendo por vezes levado à cátedra nos braços. Essa autoimposição de uma disciplina absoluta do tempo, da produção e do corpo revela não apenas uma subjetividade religiosa austera, mas configura um “tipo ideal” que ecoa profundamente as análises de Max Weber sobre o ethos protestante.
Em “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo”, Weber (2004) busca compreender o fenômeno do desenvolvimento capitalista não apenas como estrutura econômica, mas como cultura — como “espírito” (Geist), isto é, como uma conduta racional de vida enraizada em fundamentos morais e simbólicos de natureza religiosa. O que Weber identifica no calvinismo é a emergência de uma ascese racional e intramundana, na qual o mundo não é rejeitado como no ascetismo monástico medieval, mas abraçado como campo de exercício da vocação religiosa (Beruf), expressão da vontade divina. Para o indivíduo calvinista, cuja salvação está predeterminada por um decreto absoluto e inescrutável de Deus, resta apenas lançar-se ao trabalho metódico, disciplinado e contínuo como sinal indireto de pertença ao número dos eleitos. A ansiedade espiritual gerada pela doutrina da predestinação não encontra alívio na confissão ou no sacramento, mas apenas na produção de sinais exteriores de graça: uma vida ética irrepreensível, marcada pela produtividade, frugalidade e responsabilidade.
Nesse ponto, seria possível sugerir, de forma provocativa, que o calvinismo tal como descrito por Weber — enraizado em uma ascese racionalizada, em uma ética do trabalho metódico e na interiorização angustiada da eleição divina — jamais encontrou terreno fértil no Brasil. Em solo brasileiro, as manifestações históricas de tradição reformada tenderam a perder esse componente ascético rigoroso, diluindo-se em espiritualidades mais afetivas, comunitárias ou adaptativas, distantes da rigidez produtivista que caracterizou o tipo ideal analisado por Weber.
A propósito, essa forma de vida analisada por Weber (2004) difere substancialmente de outras expressões do protestantismo. O luteranismo, por exemplo, embora conserve o conceito de vocação, enfatiza a aceitação passiva da condição em que se nasce, e não uma busca ativa por comprovação da salvação através de obras. Já o metodismo valoriza experiências emocionais intensas de regeneração pessoal, produzindo um tipo de religiosidade que, embora disciplinada, está muito mais ligada à certeza afetiva do perdão do que à conduta sistemática. Os anabatistas, por sua vez, tendem à separação radical do mundo, valorizando comunidades igualitárias e puras, o que os distancia da valorização intramundana do trabalho característico do calvinismo weberiano.
O caso biográfico de Calvino, portanto, torna-se emblemático. A compulsão produtivista de seu cotidiano, seu desprezo pelo lazer e a administração meticulosa do tempo, relatadas por Engammare (2011), parecem encarnar perfeitamente a Lebensführung que Weber identificou como matriz cultural do capitalismo moderno. Contudo, há tensões e nuances importantes. Calvino não viveu em um contexto de economia capitalista madura, nem visava promover a acumulação de capital; sua ética visava a glorificação de Deus e a edificação da comunidade cristã. O desprezo ao luxo e à ostentação, bem como a valorização da austeridade, indicam uma contenção moral da lógica do consumo, algo que Weber reconhece, mas também relativiza ao observar como tais traços foram secularizados ao longo do tempo.
Na coletânea organizada por Irena Backus e Philip Benedict, esse debate é retomado com cuidado e certa desconfiança em relação às teses weberianas. Os editores afirmam que “as últimas gerações de pesquisa tornaram implausíveis as grandes teorias que atribuíam ao calvinismo um papel motor da modernidade e do capitalismo”. Tal ceticismo não nega a força do argumento de Weber, mas propõe um reposicionamento historiográfico: mais do que deduzir o capitalismo do pensamento calvinista, importa compreender a diversidade interna do calvinismo, suas formas de recepção e reelaboração ao longo dos séculos. É nesse espírito que textos como o de Richard Muller examinam os desenvolvimentos da teologia reformada pós-Calvino, mostrando como seus seguidores moldaram doutrinas como a predestinação e a ética do trabalho de maneira muitas vezes distinta do próprio reformador. Da mesma forma, John de Gruchy, em seu estudo sobre o calvinismo na África do Sul, revela como diferentes apropriações do legado calvinista puderam servir tanto à teologia da libertação quanto à legitimação do apartheid, colocando em xeque qualquer leitura unívoca do “espírito calvinista”.
Em vista disso, a aproximação entre Calvino e Weber revela-se tanto fecunda quanto problemática. Por um lado, a imagem biográfica do reformador, tal como reconstruída por Max Engammare, oferece uma figura histórica cuja conduta de vida parece exemplificar com notável precisão o ethos ascético e disciplinado descrito por Weber. Por outro, a própria complexidade dessa imagem — marcada por elementos culturais renascentistas, pelo sofrimento físico estetizado e por uma lógica do tempo que é ao mesmo tempo religiosa e performativa — impede sua redução a um tipo ideal unitário. A recepção do calvinismo nos séculos seguintes, conforme argumentam autores como Richard Muller, evidencia um processo de sistematização, endurecimento doutrinário e adaptação cultural que muitas vezes se distancia das intenções originais de Calvino, reconfigurando sua teologia a partir de contextos sociais e eclesiais diversos. Nesse sentido, a hipótese weberiana sobre a relação entre ética protestante e espírito do capitalismo permanece intelectualmente instigante, mas demanda releituras mais sensíveis à pluralidade interna do protestantismo reformado, à historicidade dos conceitos e às mediações culturais e políticas que moldaram — e continuam a moldar — os legados de João Calvino.
Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and his influence, 1509–2009. New York: Oxford University Press, 2011.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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