quinta-feira, 24 de abril de 2025

Calvinismo como Significante: o jogo da différance

Ou ainda: A tradição teológica como jogo da différance

A leitura desconstrutiva proposta pelo filósofo J. Derrida oferece uma chave teórico-analítica poderosa para interrogar o estatuto epistemológico dos conceitos que circulam na tradição teológica ocidental. Entre esses, o termo “Calvinismo” se destaca não apenas por sua centralidade historiográfica e dogmática, mas também por sua instabilidade semântica e performativa. Longe de nomear uma essência teológica unificada, o Calvinismo é, no horizonte derridiano, um significante atravessado por différance: ele só pode ser compreendido como uma cadeia de traços, de exclusões e de adiamentos de sentido que, ao mesmo tempo que fundam sua inteligibilidade, impossibilitam sua fixação semântica.

Antes de adentrarmos a desconstrução do termo “Calvinismo”, é preciso retornar ao nome que lhe serve de origem: João Calvino. Nascido em 1509, Calvino publicou antes dos trinta anos a primeira edição de Institutio Christianae Religionis (“As Institutas da Religião Cristã”), obra que se tornaria a espinha dorsal do sistema teológico reformado (e o documento fundacional de sua influência duradoura, diga-se de passagem). A partir de sua liderança em Genebra, Calvino não apenas consolidou uma visão sistemática da fé reformada, como também arquitetou uma visão de comunidade eclesial disciplinada, que rapidamente se tornou modelo para outros centros reformados na França, Escócia, Países Baixos, Inglaterra e além.

A propósito, Calvino combinava formação jurídica com erudição teológica autodidata. Sua prática pastoral foi marcada por uma disciplinarização rigorosa da vida eclesial, pelo engajamento nas estruturas civis da cidade de Genebra e por uma percepção profética de sua própria missão: reformar a cristandade. Contudo, sua influência jamais foi homogênea. Desde os primórdios, Calvino foi simultaneamente reverenciado e combatido, e as leituras de suas obras produziram tradições diversas que rapidamente escaparam ao seu controle direto. Como bem registra a introdução da coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009, os próprios termos “Calvinismo” e “Calvinista” emergiram como designações polêmicas, muitas vezes atribuídas por opositores, e passaram a circular com sentidos variáveis conforme as disputas doutrinárias, institucionais e geográficas.


Importa, desde já, distinguir cuidadosamente entre Calvino enquanto sujeito histórico — autor, pastor, teólogo e cidadão de Genebra — e o termo “Calvinismo”, que não designa diretamente o conjunto de suas ideias, mas um efeito discursivo posterior. Calvino produziu textos, pregou sermões, interveio em disputas eclesiásticas, mas o “Calvinismo” é uma construção que emerge da recepção e reelaboração de sua figura e de sua obra ao longo de diferentes momentos históricos. O nome de Calvino passa a operar, assim, como um ponto de condensação simbólica em debates que ele próprio não anteviu, e sua imagem se torna ela mesma um traço — uma inscrição estratégica num campo de disputas sempre em transformação.

Essa distinção é central para uma leitura desconstrutiva: o “Calvino histórico” não pode ser plenamente recuperado, pois tudo o que dele nos resta são registros textualizados, mediados, interpretados etc. O “Calvinismo”, por sua vez, é o nome de um significante que se constitui por deslocamento — ele remete a Calvino ao mesmo tempo que o distancia, reinscrevendo-o em novos jogos de sentido. Assim, não se trata de perguntar se determinado conteúdo é “fiel a Calvino”, mas de analisar como o nome Calvino é mobilizado para organizar posições teológicas, identidades confessionais ou fronteiras doutrinárias. O Calvinismo, nesse sentido, não é extensão linear de uma origem, mas efeito de um jogo — e esse jogo é o próprio campo da tradição.

O gesto desconstrutivo exige, portanto, que se abandone a busca por um centro originário e se escute o jogo de diferenças que possibilita a circulação do sentido. “Calvinismo”, nesse registro, não é o nome de uma doutrina, mas o ponto de inflexão de uma série de disputas, negociações, reiterações e recusas. A análise de Richard A. Muller em Calvin and the Reformed Tradition é exemplar nesse sentido: ao recusar tanto a identificação direta entre Calvino e os desenvolvimentos ortodoxos quanto a narrativa simplificadora de uma oposição entre Calvino e os calvinistas, Muller propõe compreender o Calvinismo como uma tradição polifônica, em que diferentes vozes dialogam, disputam e se desdobram em direções muitas vezes incongruentes. O Calvinismo não é um bloco; é um arquivo.

Essa mesma instabilidade é registrada pela introdução do volume Calvin and His Influence, 1509–2009, de Irena Backus e Philip Benedict. Os autores mostram que o termo “Calvinismo” foi, desde suas primeiras ocorrências na década de 1540, utilizado em sentidos diversos e frequentemente polêmicos. Inicialmente empregado por opositores, como no caso dos berneses que criticavam a teologia eucarística de Lausanne, o termo designava mais uma posição controversa do que uma identidade positiva. Em contextos posteriores, “Calvinismo” é associado à predestinação, à perseguição dos hereges, à disciplina eclesiástica genevense, à ortodoxia doutrinária do século XVII, ou ainda à cultura moral do puritanismo. Cada um desses usos reinscreve o termo numa nova cadeia de traços, e, com isso, produz um deslocamento do centro de sentido.

A desconstrução derridiana opera, então, não como anulação do conceito, mas como exposição de seu funcionamento diferido. O Calvinismo é uma cadeia de significantes cuja inteligibilidade depende de oposições contingentes: Calvinismo/Luteranismo, Calvinismo/Catolicismo, Calvinismo/Arminianismo, Calvinismo/Zwinglianismo. Nenhum desses pares é estável: em cada contexto histórico, as fronteiras se deslocam, os antagonismos se reformulam, os significados se contaminam. A tradição reformada não é um sistema fechado de proposições, mas um campo discursivo em constante rearticulação.


O estudo de Muller reforça esse ponto ao demonstrar que conceitos centrais do sistema reformado, como expiação limitada, predestinação, união com Cristo e ordem da salvação (ordo salutis), foram tratados de forma diversa por teólogos como Beza, Amyraut, Du Moulin, Ursinus, Perkins e Olevianus. Mesmo dentro da ortodoxia reformada, não há unidade doutrinária absoluta: há tensões, deslocamentos, disputas hermenêuticas etc. Isso é evidência da operação do traço: cada afirmação dogmática é também a exclusão de uma possibilidade que foi deixada de lado, mas que continua a assombrar a estrutura.

A edição de Backus e Benedict reforça esse gesto ao mostrar como o Calvinismo foi apropriado e reconfigurado nos Países Baixos, na França, na Escócia, na Inglaterra, na Polônia e na África do Sul. Cada contexto nacional reconstruiu o Calvinismo segundo suas próprias lógicas institucionais e teológicas. A figura de Calvino, inclusive, foi deslocada, ampliada, condensada, fragmentada. Em muitos casos, como mostra a recepção genevense, Calvino não é o centro, mas um dos polos numa constelação de autores, como Farel, Beza, Bullinger e Vermigli. E mesmo quando Calvino é celebrado, como no Monumento da Reforma de 1909, ele é rodeado por outros nomes, em um gesto que tanto o consagra quanto o descentraliza.

Derrida insistiria: o desejo de centro não desaparece, mas é constantemente frustrado pela diferença que o constitui. O Calvinismo se constitui pela ausência de um fundamento pleno. Ele é sempre já outro: não o pensamento de Calvino, mas sua releitura; não uma doutrina fixa, mas um conjunto de diferenciações. O uso do termo é sempre político: serve para afirmar identidades, excluir heresias, disciplinar práticas, organizar poder. Mas esse uso não escapa à contaminação. Toda identidade calvinista é instável, toda ortodoxia é marcada pela ausência de origem.

Desconstruir o Calvinismo é, pois, desestabilizar seu uso como essência e reinscrevê-lo como estratégia discursiva. Não se trata de negar a tradição reformada, mas de ler seus textos com escuta atenta ao que excluem, ao que diferem, ao que apenas insinuam. O gesto é teológico e político. O Calvinismo, como qualquer significante teológico, é um nome em jogo. E nesse jogo, não há vitória final, mas apenas a exigência de responsabilidade pela maneira como nomeamos o que cremos.

A presença do Calvinismo no centro da cadeia de significantes proposta em nossa ilustração não deve ser compreendida como um reconhecimento de sua primazia ontológica ou teológica, mas sim como um recurso analítico crítico. Derrida nos lembra que o centro, em qualquer estrutura, é uma função e não uma substância: ele organiza o jogo das diferenças sem se confundir com um ponto fixo de origem. O Calvinismo, nesse sentido, ocupa o centro apenas porque sua inteligibilidade é constantemente mobilizada em oposição a outros discursos — é no contraste com o Catolicismo, o Luteranismo, o Arminianismo e o Zwinglianismo que ele adquire contornos momentaneamente estáveis. O centro do diagrama não expressa fundação, mas o campo em que os deslocamentos semânticos são mais visíveis.

Esse arranjo visual revela, portanto, o modo como o Calvinismo funciona como um significante saturado: ele condensa uma multiplicidade de traços, posições e disputas que se atualizam na medida em que ele é reinscrito em diferentes contextos históricos. O centro é, nesse caso, o lugar onde o jogo se mostra com maior intensidade — e não onde ele se interrompe. O centro gráfico do Calvinismo é o lugar do conflito semântico, da tensão histórica e da produção incessante de sentido. Sua centralidade é estratégica e irônica: ao mesmo tempo que parece estruturar, ele se desfaz em différance.

Referências
DERRIDA, Jacques. A escrita e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.​
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.​

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