quinta-feira, 16 de maio de 2019

João Calvino e a Resistência ao Estado

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

 (...) Cumpre, porém, acima de tudo que nos guardemos de desprezar e desobedecer a autoridade de nossos superiores, a qual, como vimos, permanece revestida de majestade mesmo quando exercida por pessoas indignas que a corrompem com sua maldade. Porque embora a punição de uma autoridade seja ato de vingança de Deus, não devemos concluir que ela nos tenha sido confiada e seja lícito exercê-la; cabe-nos apenas obedecer e suportar. Refiro-me sempre a pessoas particulares. Porque, se em nossos dias existissem magistrados instituídos para a tutela do povo e para conter a excessiva licença e a cobiça dos soberanos, como outrora os éforos entre os espartanos e os tribunos da plebe entre os romanos, os demarcas atenienses, ou como os três estados quando se reúnem as cortes, a estas pessoas, que estão investidas de autoridade, não posso de modo algum proibir, segundo as exigências de seu ofício, que façam oposição e resistiam à excessiva licença dos reis, pois, deixando de fazê-lo, trairão ao dever de proteger a liberdade do povo (Institutas, 4.20.31).

Na obra “Contingency, Hegemony, Universality”, S. Žižek, E. Laclau e J. Butler, num rico diálogo sobre a radicalidade das lógicas democráticas, partiram do interessante argumento de que qualquer posição-de-sujeito, no âmbito de um quadro teórico de referência, torna-se necessariamente “incompleta” na medida em que o conteúdo resultante de uma articulação/ interpelação específica sempre “fracassa”, isto é, constitui-se, num determinado horizonte político, por meio da exclusão radical de suas premissas fundamentais. 

Nessa perspectiva, torna-se constantemente “assombrada” pelas forças simbólicas historicamente reprimidas no contexto de sua emergência, possibilitando, na tensão dialética entre contingência e necessidade, a crítica radical de sua “coerência interna” – em termos hegelianos, a expectativa de um “sentido” é de uma só vez produzida (e contrariada) pelo ato formal de sua postulação. Aqui, mesmo sabendo que centenas (ou milhares) de páginas já foram escritas sobre a teologia política do reformador João Calvino, aventuro-me a perguntar pela construção daquela análise “estrutural” de uma reflexão política que, na sua gênese, deixou-se conhecer, justamente, pela inconsistência de seus argumentos (cf. HÖPFL, 2011), combinando a um só tempo, “obediência irrestrita às autoridades seculares” e o “direito de resistência”.

De fato, a tradição política (e eclesiológica) do reformador de Genebra se definiu não apenas pelas formas de recepção (e transmissão) de seu pensamento político, como também por meio de um conjunto de afirmações, negações e adequações, sob um regime “duplex” de autoridade, do dever de obediência, piedade pessoal, lógica aristocrática, relativa independência da Igreja com relação ao Estado e resistência “espiritual” por meio do ideal regulador de uma igreja “puramente reformada”. Portanto, qualquer apropriação teológica do pensamento político de Calvino será sempre seletiva (e estará sujeita à crítica da ideologia).

O que dizer, então, daqueles grupos reformados “conservadores” que, em nome de uma pretensa “resistência espiritual” da igreja evangélica brasileira, tinham uma postura “reativa” com relação aos governos que nos precederam? Os mesmos que, por ironia do destino, solicitam neste momento “orações” pelo presidente da República...

 Se, de um lado, Calvino se viu inicialmente no desafio de responder às insinuações dos adversários da Reforma, que tentavam fazer passar os reformadores, aos olhos dos príncipes europeus, por agitadores políticos (o argumento era o de que o “novo evangelho” levava à rebelião e à insubordinação), de outro precisou constantemente repensar os fundamentos “externos” da verdadeira igreja: a pregação da Palavra e os dois sacramentos logo se mostraram insuficientes. (…)

Embora tivesse desenvolvido os fundamentos teológicos (e morais) do “direito à resistência”, Calvino não tinha em mente uma mera revolta popular ao combinar, paradoxalmente, “aristocracia humanista da virtude” e a legitimidade da hierarquia. O cristão devia obedecer aos reis e aos tiranos quanto aos magistrados virtuosos? Sua teoria política da não-resistência evidentemente não se sustenta quando confrontada com a “luz da razão secular” e da prudência no que concerne a assuntos de natureza política e religiosa. Calvino curiosamente sabia disso, considerando a evolução política de seu pensamento (e as sucessivas revisões pelas quais passou sua principal obra).  Por isso, A. Biéler foi bastante incisivo ao reconhecer:
A Reforma nunca exigiu dos crentes que repetissem servilmente o que ela fez ou disse. Os reformadores nunca pretenderam ser infalíveis […] Nosso mestre único, dizia um teólogo reformado (K. Barth), não é Calvino, mas Jesus Cristo, o mestre de Calvino. Pode-se dizer igualmente de Lutero e dos outros autores reformados. No tocante às Confissões de fé da Reforma e à sua ética, elas são modelos, mas não dogmas ou princípios eternos na sua formulação ou aplicação. Estão ligadas a uma linguagem, uma cultura, as do Ocidente, e pertencem a uma certa época. As Igrejas doutros locais, doutros tempos e doutras culturas devem constantemente refazer o que a Reforma fez: repensar, novamente e para sua época, a eterna Palavra de Deus que ressoa nas Escrituras (BIÉLER, 1999).
Para conhecer o pensamento político de Calvino, favor verificar, entre outras obras, o seguinte texto: SILVESTRE, Armando. Calvino: o potencial revolucionário de um pensamento. São Paulo: Editora Vida, 2009.

Referências
BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes.  São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
CALVINO, João.  A instituição da religião cristã, Tomo II, Livros III e IV.  São Paulo: Editora UNESP, 2009.
HÖPFL, H. M., “The Ideal of Aristocratia Politiae Vicina in the Calvinist Political Tradition”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip, “Calvin and His Influence, 1509-2009”.
SILVESTRE, Armando. Calvino: o potencial revolucionário de um pensamento. São Paulo: Editora Vida, 2009.
ŽIŽEK et al. Contingency, Hegemony, Universality. London: Verso Books, 2000.






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