quinta-feira, 9 de maio de 2019

João Calvino e o livre uso das coisas indiferentes

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

Comum nunca é propriedade, somente o inapropriável.
O compartilhamento desse inapropriável é o amor” G. Agamben

Num brilhante tratado de arqueologia política, o filósofo italiano G. Agamben problematiza, de um lado, a emergência de uma esfera de intimidade (privacy) que se constituiu, na modernidade, por meio de um dispositivo de regulação do uso que fazemos de nós mesmos e das coisas, sob a forma de posse, pelo direito ou pela força, numa relação com o inapropriável e, de outro, estratégias políticas de desativação da máquina que orienta nossas percepções sobre a condição humana. Como exemplo radical de uma potência destituinte, o autor da obra “O uso dos Corpos” resgata importantes discussões teológicas (das antíteses paulinas à teoria das hipóstases, passando pela doutrina dos sacramentos), lembrando-nos que o apóstolo Paulo, frente à lei, expressa a relação entre o messias e a lei com o verbo katargein, que significa nada menos “tornar inoperante”, “desativar” (2017, p. 305).
Na Carta aos Romanos, a lei não é simplesmente abolida, mas “suprassumida (Aufhebung), ou seja, transformada por meio da potência da fé (conservada e levada ao cumprimento). A propósito, essas questões teológicas eram bastante conhecidas do reformador de Genebra. No tratado sobre a liberdade cristã, João Calvino não apenas faz alusão à misericórdia divina (“devemos afastar de nós mesmos o olhar para fixá-lo somente em Jesus Cristo”), no que diz respeito à noção teológica da justificação, como também convida seus leitores a uma obediência livre e voluntária da moral religiosa (sem coerção).
Em termos teológicos, o cumprimento da lei deixa de ser uma “obra”, no sentido de uma “obra meritória”, e paradoxalmente se converte naquele “ato da liberdade” que pode se manifestar, inclusive, sob a forma de renúncia – da renúncia aparentemente à própria liberdade, mas que, antes, é uma manifestação paradoxal da própria liberdade, tal como expressa no “porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos” (1 Co 9.19).
 No Calvinismo, a liberdade com relação à lei tem, portanto, um caráter fundamentalmente dialético: libertação e cumprimento de uma exigência que, em termos luteranos, manifesta-se sob um duplo regime: “um espiritual, mediante o qual se instrui a consciência na piedade e no culto de Deus; e outro político, pelo qual o homem é instruído em suas obrigações e deveres de humanidade e de educação que devem presidir as relações humanas” (Institutas, 3.19.15).
Além disso, a lacuna que separa a liberdade de uma exigência religiosa e, não obstante, comprometimento com ela, expressa-se na tese do “livre uso das coisas indiferentes”. Trata-se, inclusive, de uma zona de indeterminação negligenciada por muitos reformados brasileiros: uma coisa pode ser boa ou má segundo certas circunstâncias.

A terceira parte da liberdade cristã nos instrui no sentido de que não devemos preocupar-nos diante de Deus com certas coisas externas que em si mesmas são indiferentes, e nos ensina que podemos praticá-las ou deixar de praticá-las indiferentemente. Também temos grande necessidade de conhecer esta liberdade, pois, se não, a nossa consciência não terá repouso e não terão fim as nossas superstições (CALVINO, 2002, p. 106).
Ao fazer a crítica radical da atitude monástica, marcada por um padrão duplo de moralidade, e atribuir um sentido religioso à atividade cotidiana por meio da ideia religiosa de vocação, a lógica calvinista inscreveu-se, rapidamente, naquele dispositivo ontológico-político agambiano de vida cindida: o desenvolvimento de uma ascese que, separada de seus fundamentos religiosos, permitiu o surgimento da atividade humana (trabalho) como ergon (Agamben, 2017, p. 37; McGrath, 2004, p. 249-277). Segundo uma sugestiva análise de S. Žižek,
A lição que deve ser tirada do paradoxo básico do protestantismo (como é possível que uma religião que ensina a predestinação tenha sustentado o capitalismo, a maior explosão de atividade e liberdade humanas da história) é que a liberdade não é nem necessidade apreendida (a vulgata de Espinosa a Hegel e os marxistas tradicionais) nem necessidade negligenciada/ignorada (a tese das ciências cognitivas e do cérebro: liberdade é a “ilusão do usuário” da nossa consciência, que não tem ciência dos processos bioneurais que a determinam), mas uma Necessidade que é pressuposta como/e desconhecida/desconhecível. Sabemos que tudo é predeterminado, mas não sabemos o que é nosso destino predeterminado, e é essa incerteza que direciona nossa incessante atividade (ŽIŽEK, 2013).
Aqui, gostaria de sugerir a ideia de que apenas no resgate das formas de inoperosidade implícitas no livre uso das coisas que, em si mesmas, são αδιάφοροι, poderemos reencontrar aquela dimensão radicalmente progressista e libertadora do cristianismo reformado. E, como bem enfatizou Agamben (2017, p. 85, grifo do autor) ao tratar da teoria messiânica que Paulo elabora na primeira epístola aos Coríntios (1 Coríntios 7.21), o uso, assim como o hábito, é uma forma-de-vida e não o saber ou a faculdade de um sujeito. Tomando como ponto de partida uma questão já desenvolvida por Weber (2004) na obra “a ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo”, Agamben (2016) também destaca o fato de que a “vocação messiânica” é um chamado do chamado: “a vocação chama a própria vocação, é como uma urgência que a trabalha e escava do interior, nulifica-a no próprio gesto no qual se mantém nela, habita nela” (ibid., p. 37).

Foto: “Grant Wood
 [Public domain], via Wikimedia Commons
Nessa perspectiva, o “cada um permaneça na profissão em que foi chamado” (1Co 7.20) assume um sentido radicalmente novo: “a vocação chama a nada e em direção a nenhum lugar: por isso, ela pode coincidir com a condição factícia na qual cada um se encontra chamado; mas, exatamente por isso, ela a revoga completamente” (ibid., p. 37). Em termos mais precisos, a expressão paulina para esse chamado é κλῆσις. Em oposição implícita à noção weberiana de racionalização, Agamben esclarece que: “A vocação messiânica é a revogação de toda vocação” (ibid., p. 37, grifo do autor). Nesse sentido, a “nova criatura” (2Co 5.17) não funda uma nova identidade: “não é senão o uso e a vocação messiânica da velha” (ibid., p. 40).
Não é simplesmente que a identidade-de-si de um sujeito se confunde consigo mesma após a vocação messiânica (“ela não é senão uma retomada das mesmas condições factícias ou jurídicas nas quais ou tais quais alguém é chamado” [por Deus]. Cf. ibid., p. 36). Para Agamben, a κλῆσις paulina, graças ao hōs mē, ao “como se não” (1co 7.20-31), suspende a eficácia simbólica de todas as vocações, tornando-as inoperantes desde dentro: “não é um direito nem constitui uma identidade: é uma potência genérica de que se usa sem jamais ser seu titular. Ser messiânico, viver no messias significa a desapropriação, na forma do como não, de toda propriedade jurídico-factícia (circunciso/ não incircunciso; livre/escravo; homem/mulher)” (cf. ibid., p. 40). Sob a vocação messiânica (1Co 7.29-32), toda identidade carece de plena identidade: a vocação messiânica separa toda κλῆσις de si mesma, colocando-a em tensão consigo mesma, sem lhe fornecer uma identidade ulterior: judeu como não judeu, grego como não grego (ibid., p. 69).
O messiânico é para ele [Paulo] o lugar de uma exigência, que concerne precisamente à redenção daquilo que foi. Ele não é um ponto de vista, do qual se possa olhar para o mundo como se a redenção estivesse cumprida. O advento do messias significa que todas as coisas - e com elas o sujeito que as olha - são tomadas no como não, chamadas e revocadas no mesmo gesto (AGAMBEN, 2016, p. 54).

Portanto, a plena aceitação do abismo do processo dessubstancializado como a única efetividade existente sob o “chamado messiânico” converte-se numa poderosa forma de desativação daquela ansiedade ontológica instaurada pelos desenvolvimentos posteriores do Calvinismo, nos séculos XVI e XVIII, possibilitando uma nova relação de familiaridade com o mundo e com os entes intramundanos (um novo “uso do mundo”, nos termos de Agamben).

 Referências
AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

_________________. O uso dos corpos.  São Paulo: Boitempo, 2017.

CALVINO, João.  A instituição da religião cristã, Tomo II, Livros III e IV.  São Paulo: Editora UNESP, 2009.

______________. As Institutas – Edição especial para estudo e pesquisa. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002. Vol. 4. 251 p.
 
MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

 WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
 

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