terça-feira, 8 de outubro de 2019

João Calvino e o valor das tradições humanas

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

O calvinismo que conheci nos anos 1990 alimentava a expectativa de que as denominações presbiterianas se abrissem cada vez mais à inserção das mulheres nas “estruturas de poder” (e de produção simbólica) das comunidades locais, em nada se assemelhando a essa matriz teológica conservadora e dogmática de setores específicos da igreja evangélica brasileira contemporânea.

Nos púlpitos de nossas igrejas, a presença de seminaristas, missionárias, presidentes das Sociedades Internas, entre outras, não apenas se conectava, de certa forma, ao modo como aquela geração percebia o Evangelho (“ecclesia reformata et semper reformanda est”), principalmente no que diz respeito à temática de gênero, como também suscitava, em meio aos anseios por renovação teológica (e conscientização ecológica), no contexto de nossa abertura democrática, uma leitura crítica da obra do reformador que, no século XVI, procedera a uma radical dessacralização das tradições religiosas então vigentes (sem desprezar, como se sabe, os princípios caros à manutenção da ordem nas assembleias cristãs e protestantes).

Aqui, Calvino insiste “que na santa assembleia dos fiéis todas as coisas sejam feitas decentemente e com a dignidade que convém, e que a própria comunidade dos homens seja mantida em ordem, como que por certos laços de humanidade e moderação” (Institutas 4.10.28). Por outro lado, o reformador de Genebra procurou relativizar o poder espiritual da Igreja, problematizando as observâncias religiosas nos termos da doutrina da liberdade cristã (e do tratamento das assim chamadas “questões adiáforas”, i.e., de coisas por si só indiferentes) - as consciências devem ser regidas exclusivamente por Deus (Institutas 4.10.8).

Foto: Pixabay.com
 
Com a advertência de que, em última análise, “poder” e “discurso religioso” não deveriam (e não podem) aparecer separados numa reflexão teológica que procura proteger a “liberdade por Cristo dada às consciências dos fiéis”, trata de deslocar o debate para o campo das relações interpessoais ao converter o princípio da caridade numa poderosa “chave hermenêutica”, evitando, assim, o risco da tirania dos homens (Institutas 4.10.1).

Contextualizando a leitura bíblica, que exemplos João Calvino usa na construção de sua principal linha de argumentação contra as superstições vazias de conteúdo e destituídas de valor? Justamente os textos mais valorizados por um certo tipo de “neocalvinismo fake” - as recomendações paulinas e (deuteropaulinas) presentes em 1Co 11.2-16; 14.34,35; 1Tm 2.8-15!

“Todavia, devemos tomar todo o cuidado para que tais observâncias não sejam consideradas necessárias à salvação, subjugando assim as consciências; nem tampouco que elas se constituem em honra e culto a Deus, como se nelas estivesse localizada a verdadeira piedade. (…)”



“(…) Além disso, uma vez que se entenda que a lei de ordem visa ao uso comum dos homens, é posta abaixo a falsa opinião de sua obrigação e necessidade inapelável, opinião que perturba as consciências quando se considera que as tradições são essenciais à salvação.” (…) (Institutas 4.10.27, 28).

Portanto, o atual recrudescimento das práticas discursivas sexistas, além de se basear numa leitura seletiva da tradição reformada, desconhece, em muitos aspectos, a obra do Reformador. Calvinistas? Desconfio.


Referências

CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Livro IV. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989.

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