A Reforma Protestante é uma tradição profundamente diversificada, tanto em suas origens quanto na evolução do pensamento reformado ao longo dos séculos. O calvinismo, em particular, não possui um consenso claro sobre o que constitui o seu núcleo central. Seriam as Institutas de Calvino? A Confissão de Westminster? Os Cânones de Dort? Ou os cinco “solas”? A pluralidade de perspectivas que molda o protestantismo reformado não deve ser vista como uma fraqueza. Na verdade, essa diversidade, em vez de fragmentar, foi historicamente um motor para a construção de uma comunidade religiosa que se define pela fraternidade, pela democracia interna e pelo respeito às diferenças.
Não podemos ignorar que, ao longo da história, as Escrituras foram usadas para legitimar instituições opressivas, como o patriarcado, a escravidão e o apartheid. Mesmo nos dias de hoje, certas tradições religiosas continuam a marginalizar grupos, como as mulheres, excluindo-as das estruturas de poder e da produção simbólica em suas comunidades. Tais práticas revelam um uso ideológico da religião que muitas vezes é camuflado por interpretações supostamente neutras ou atemporais do texto sagrado.
O filósofo Friedrich Nietzsche, no aforismo 382 de Humano, Demasiado Humano II, argumenta que “o espírito do tempo oferece resistência a si mesmo”. Esse aforismo poderia ser aplicado ao cristão de Lutero, que, ao celebrar sua liberdade diante da autoridade eclesiástica, rapidamente se viu capturado pela vontade da massa. Embora a Reforma tenha inicialmente oferecido uma via de autonomia espiritual, essa independência logo se viu comprometida pelas pressões sociais e pelas correntes ideológicas dominantes.
No século XVII, a institucionalização das confissões protestantes deu origem à “escolástica protestante”, um esforço de sistematização teológica que pretendia interpretar as Escrituras de maneira definitiva. Tais formulações, que se diziam baseadas na correta interpretação da revelação divina, muitas vezes serviram como lentes exclusivas através das quais o texto bíblico era compreendido pelas comunidades reformadas. Isso trouxe uma rigidez doutrinária que, paradoxalmente, reproduzia algumas das características que a própria Reforma havia tentado superar.
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Essa tensão entre a liberdade individual e a rigidez institucional não é nova. Sören Kierkegaard, um dos mais importantes críticos do cristianismo institucionalizado, afirmou que uma reforma que colocasse a Bíblia de lado teria tanto valor em seu tempo quanto a de Lutero, que colocou o papa de lado. Sua provocação sugere que a institucionalização da fé corre o risco de desviar a religião de seu propósito original, transformando-a em uma ferramenta de controle burocrático, enquanto o Sagrado se esvazia de seu poder transformador.
No contexto moderno, a crescente secularização deu origem a um ethos privado e não confessional, associado à tolerância e ao pluralismo. Esse ethos moldou nossas relações com o Sagrado na era pós-iluminista, onde a fé se tornou, em grande parte, uma questão de consciência individual e a religião institucional perdeu grande parte de sua influência pública. A crença, antes uma expressão comunitária compartilhada, tornou-se um fenômeno cada vez mais subjetivo e fragmentado.
Entretanto, a recente popularização da chamada “cosmovisão reformada” — uma tentativa de encapsular toda a vida dentro de um paradigma protestante — constitui um erro não apenas histórico, mas também teológico. A ideia de que o protestantismo reformado oferece uma única visão abrangente do mundo, capaz de rivalizar com supostos inimigos contemporâneos como o “marxismo cultural” ou a “ideologia de gênero”, é, na verdade, uma forma de fetichização da crença. Em vez de ser um diálogo vivo e transformador com o mundo, a “cosmovisão reformada” contemporânea tende a cristalizar-se em torno de inimigos fictícios, nutrindo-se de medos e ansiedades sociais.
Nesse sentido, ela funciona como o que Slavoj Žižek descreve como um “grande Outro”, uma construção que parece compartilhar os mesmos pressupostos religiosos, mesmo quando os próprios indivíduos não aderem plenamente a eles. Essa “comunidade imaginada” de fé, na qual todos supostamente acreditam nas mesmas coisas, se sustenta na suposição de que a crença é compartilhada coletivamente, ainda que não o seja de fato. O resultado é uma forma de autoengano, onde os fiéis acreditam estar defendendo uma fé sólida e coesa, mas que, na realidade, está fragmentada e vulnerável às influências ideológicas.
A imagem, gerada por IA (DALL-E), tenta refletir a tensão entre unidade e fragmentação na modernidade tardia.
Nesse contexto, o conceito de “Grande Outro”, proposto por Slavoj Žižek, revela-se particularmente elucidativo. Ele se refere a uma construção simbólica que parece garantir a coesão e a consistência dos pressupostos religiosos compartilhados por uma comunidade, ainda que, em nível individual, muitos de seus membros não adiram plenamente a essas crenças. Essa “comunidade imaginada” de fé, onde se presume que todos partilham das mesmas convicções, subsiste menos pela adesão concreta dos indivíduos e mais pela suposição de uma crença coletiva. O resultado é um processo de autoengano, em que os fiéis, convencidos de estarem defendendo uma fé coesa e robusta, na verdade mantêm uma estrutura profundamente fragmentada, vulnerável às influências ideológicas e aos desdobramentos discursivos externos. Assim, o que se projeta como uma unidade de fé é, muitas vezes, um campo de disputas internas e ressignificações contínuas.
Assim, o protestantismo reformado contemporâneo, ao se definir por meio de oposições e construções imaginárias de inimigos, arrisca perder sua vitalidade transformadora. O desafio, portanto, é reencontrar a essência da Reforma — não como um conjunto fechado de doutrinas, mas como um impulso contínuo por liberdade, reflexão crítica e engajamento com o mundo.
Referências
BURITY, Joanildo. Ainda uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia e muitas histórias pelo meio… e nas margens. In: REBLIN, Iuri; von SINNER, Rudolf (Orgs.). Reforma: tradição e transformação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. p. 69-92. GOUVÊA, Ricardo. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Editora Novo Século, 2000.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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