domingo, 27 de outubro de 2019

Cosmovisão bíblica e reformada?

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

A Reforma é diversificada tanto nas suas origens quanto na evolução de seu pensamento. No que diz respeito ao calvinismo, não há, inclusive, consenso sobre o cerne da identidade reformada (As Institutas? Confissão de Westminster? Outras confissões reformadas? Os Cânones de Dort? Os 5 “solas”?) Em si mesma, essa diversidade de percepções não é ruim. Ao longo dos séculos, a frágil substância da “catolicidade protestante” fomentou a construção de uma comunidade fraterna e democrática, em respeito à diversidade.

Porém, o pensamento reformado, ao romper com a grande síntese medieval (escolástica), tornou-se vulnerável às ideologias em todas as suas manifestações históricas. Como a leitura do Texto Sagrado deixa de ser mediada pela Igreja-instituição, a interpretação dada pelo fiel constitui-se, muitas vezes, num mero “epifenômeno” da realidade social, isto é, justificações racionais “a posteriori” de crenças seculares. “Fé e ideologia”, nos termos de um texto recentemente publicado por um amigo.

Aqui, não podemos ignorar o fato de que muitos cristãos usaram a Bíblia para legitimar instituições perversas, tais como o patriarcado, a escravidão e o apartheid. Ainda hoje, grupos inteiros insistem em excluir as mulheres das estruturas de poder e de produção simbólica de suas comunidades religiosas.

No aforismo 382 de “Humano, demasiado humano (II)”, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) sugere que “o espírito do tempo oferece resistência a si mesmo, carrega a si mesmo”. Se, de um lado, o cristão de Lutero, “um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito”, teve condições de celebrar sua relativa independência com relação à autoridade eclesial, de outro, tornou-se rapidamente refém da multidão.

No século XVII, formulações doutrinárias supostamente baseadas na correta interpretação de uma única e mesma fonte de revelação, percebidas como expressão da “verdade revelada por Deus”, apresentaram-se como as lentes pelas quais o texto era lido (e compreendido) pelas comunidades protestante. Assim nasceu a “escolástica protestante”.

Foto: Pixabay.com

Ao perceber a instrumentalização religiosa do Sagrado, sob as lógicas burocratizadas da Igreja, um pietista como S. Kierkegaard (1813-1855), em sua luta contra o cristianismo institucionalizado, ousou sugerir o seguinte: “Uma reforma que colocasse a Bíblia de lado hoje teria tanto valor quanto a de Lutero, que colocou o papa de lado”.

Certo ou não, um “ethos” privado não confessional generalizado, associado cada vez mais à ideia de tolerância, cristaliza-se, em termos políticos, no ideário liberal, “estruturando” desde a era pós-iluminista nossas relações com o Sagrado. No máximo, pode-se falar, na atualidade, de uma congregação de sujeitos irmanados por uma mesma disposição ética e espiritual.

Portanto, essa noção contemporânea (e pseudoteológica) de “cosmovisão reformada” não apenas se constitui num erro de compreensão do processo histórico, como também só se sustenta atualmente com o apoio fantasmático de supostos inimigos, tais como “marxismo cultural”, “ideologia de gênero”, “comunismo” etc. Nesse sentido, implica numa fetichização contemporânea da “crença”, que passa a funcionar como esse grande “Outro virtual” que crê, que compartilha os mesmos pressupostos religiosos, mesmo que nenhum indivíduo empírico creia, nenhum cristão compartilhe o mesmo conjunto de percepções acerca do mundo, da sociedade como um todo, para irmos ao extremo. Ainda assim, cada um deles, individualmente ou coletivamente, pressupõe que a “comunidade de fé” assim crê, e esse pressuposto basta a si próprio. Estaríamos aqui, nos termos de Slavoj Žižek, diante daquela “consciência” que se pensa lúcida, mas que está terrivelmente presa ao autoengano?

Referências

BURITY, Joanildo. Ainda uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia e muitas histórias pelo meio… e nas margens. In: REBLIN, Iuri; von SINNER, Rudolf (Orgs.). Reforma: tradição e transformação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. p. 69-92.
GOUVÊA, Ricardo. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Editora Novo Século, 2000.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.

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