A recente polêmica entre neocalvinistas e pentecostais arminianos, no contexto das ideias religiosas, parece ser mais do que um simples debate teológico. Trata-se de uma questão que não apenas revela a ocultação das instituições mais dinâmicas da espiritualidade reformada, como também expõe uma nova fase de mistificação do discurso religioso protestante no Brasil.
A Reforma do século XVI, com seu caráter libertador e ecumênico, introduziu novas estruturas sociais que exigiam condições econômicas, políticas e culturais capazes de garantir o pleno exercício da liberdade (cf. Will Durant). Esse dinamismo levou o teólogo Paul Tillich (1886-1965) a refletir sobre a tensão entre instituições religiosas, que buscavam estabilidade social, e um princípio reformador, que, em sua essência, era uma força permanente de transformação. Will Durant, ao abordar o impacto do calvinismo, ressalta que o impacto do calvinismo na formação política e social da modernidade foi significativo, especialmente no desenvolvimento de uma ética disciplinada e voltada para a educação e autonomia. O impulso dos líderes calvinistas em promover escolas acessíveis e incutir um caráter rigoroso nos indivíduos foi fundamental para fortalecer as classes burguesas da Holanda, permitindo que resistissem à dominação estrangeira. Além disso, essa mesma ética calvinista sustentou revoltas de nobres e clérigos em outros contextos, como na Escócia, e na Inglaterra, onde o puritanismo moldou líderes influentes como Cromwell e escritores como John Milton (DURANT, 2002, p. 409).
A partir desse rígido credo, formou-se uma cultura de resistência que não apenas destruiu dinastias conservadoras, como os Stuart, mas também incentivou a conquista e colonização de novos territórios, especialmente no continente norte-americano. Nesse processo, a educação e a autonomia passaram a ser valores centrais, com as congregações autônomas calvinistas servindo de modelo para a formação de municípios igualmente autônomos, marcando o início de um movimento que associava a escolha dos pastores à escolha dos governantes, promovendo, assim, um ethos democrático e republicano nas sociedades emergentes. A contribuição calvinista, portanto, foi determinante para a difusão da ideia de que a autodeterminação e a participação ativa nas estruturas de poder político eram extensões naturais da autonomia religiosa.
A tentativa de revitalizar integralmente a sociedade se manifestou, especialmente no calvinismo, pela implementação de normas para a produção de riqueza, a assistência aos pobres e a distribuição equitativa de bens (CAMPOS, 2009), como demonstrou o teólogo André Biéler (1914-2006). No entanto, no Brasil, o discurso protestante predominante seguiu uma trajetória diferente. Rubem Alves (1933-2014) argumentou que o Protestantismo da Reta Doutrina (PRD), uma tipologia inspirada na sociologia de Max Weber, contribuiu para deslocar o foco das estruturas coletivas para o indivíduo. Esse movimento, ao longo do século XX, culminou em uma Era Protestante “invertida”, marcada por dogmatismo, conservadorismo e o enfraquecimento do diálogo ecumênico, contrariando as tendências globais de abertura e atualização teológica (aggiornamento).
Imagem: DALL-E
Nas formas mais institucionalizadas do protestantismo brasileiro, o engajamento religioso manifestava-se em dois níveis: por um lado, na preservação das ideias moralistas herdadas do protestantismo missionário do século XIX; por outro, em uma expressão religiosa menos racionalizada, materializada em elementos rituais, como o canto congregacional. No entanto, com o avanço da secularização nas décadas de 1960, esse primeiro nível tornou-se progressivamente disfuncional. Em resposta, enquanto uma parte do protestantismo intensificou o discurso moralista, de matriz fundamentalista, as igrejas pentecostais e carismáticas, assim como o movimento neopentecostal, passaram a adotar uma teatralidade religiosa que se desvinculava da ideologia protestante original. Nessa nova configuração, a dimensão ideológica foi subordinada às performances religiosas, muitas vezes revestidas de elementos mágicos e enriquecidas pela apropriação de símbolos do Primeiro Testamento.
Nos anos 1990, o movimento “evangelical” tentou consolidar uma “via média” entre os extremos religiosos. Contudo, essa tentativa fracassou nas denominações missionárias tradicionais, como os presbiterianos, batistas e metodistas. A secularização, por um lado, e as práticas místicas de acesso ao sagrado, por outro, acabaram reforçando a criação de um fiel emocionalmente engajado, mas desvinculado ideologicamente do discurso religioso que lhe serviu de base.
Na virada do milênio, o discurso protestante brasileiro foi facilmente absorvido pela agenda neoliberal, permitindo que a divisão neoconservadora do trabalho, entre o conservadorismo de extrema-direita e a Teologia da Prosperidade, dominasse o cenário. Nesse contexto, um ramo do pentecostalismo brasileiro, tentando lidar com a baixa circulação de “capital teológico”, começou a flertar com o hipercalvinismo (limitado à soteriologia), buscando justificar essas “afinidades eletivas” com base em teologias históricas. No entanto, tanto pentecostais arminianos quanto neocalvinistas, ao sustentarem uma visão fechada de mundo, acabaram se distanciando completamente das tradições teológicas de suas igrejas-mães. São, portanto, duas faces da mesma moeda.
Referências
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. 3ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990.
CAMPOS, Leonildo Silveira. A Reforma 500 anos depois de Calvino. [Entrevista concedida a] Márcia Junges. IHU On-Line, São Leopoldo, n. 316, p. 12-18, 23 nov. 2009. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao316.pdf Acesso em 18 out. 2019.
CAVALCANTE, Ronaldo. A cidade e o gueto: Introdução a uma teologia pública protestante e o desafio do neofundamentalismo evangélico no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
______. “Teologia Protestante brasileira: as ‘luzes’ e as ‘sombras’ de um discurso paradoxal do sagrado”. In: LEONEL FERREIRA, João Cesário. Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. cap. 2, pp. 47-92.
DURANT, Will. A Reforma: história da civilização européia de Wyclif a Calvino: 1300-1564. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
SOUZA, Robson. “Religião, gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/43348555/Religi%C3%A3o_g%C3%AAnero_e_pluralismo_uma_an%C3%A1lise_acerca_da_condi%C3%A7%C3%A3o_feminina_no_protestantismo_brasileiro . Acesso em: 30 nov. 2017.
TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Paulo/ S. Bernardo do Campo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992.
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