Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)
Ao que tudo indica, a recente polêmica entre neocalvinistas e pentecostais arminianos, no plano do debate das ideias religiosas, não apenas resulta de um pseudoproblema teológico, posto que se baseia na ocultação das instituições mais criativas e dinâmicas da espiritualidade reformada, como também não deixa de ser expressão de um novo episódio de mistificação do discurso religioso protestante no contexto religioso brasileiro.
Enquanto proposta de liberdade e
libertação, com evidente dimensão ecumênica, a Reforma do século
XVI significou, inicialmente, o desenvolvimento de novas estruturas
sociais, exigindo condições de ordem econômica, social, política
e cultural que tornassem possível o pleno exercício da liberdade
(cf. Will Durant). Nessa perspectiva, os dinamismos culturais
presentes nos ideais dessa nova forma de espiritualidade levaram o
teólogo Paul Tillich (1886-1965) a problematizar a tensão dialética
existente entre um discurso religioso materializado em instituições
sociais que aspiravam à estabilidade e um princípio radical que
era, em si mesmo, uma força permanente de transformação social.
Will Durant também reconhece que:
[...] Os esforços dos chefes calvinistas, no sentido de dar escolas para todos e incutir a disciplina no caráter, auxiliaram os resolutos burgueses da Holanda, a afugentar a alienígena ditadura da Espanha e sustentaram a revolta dos nobres e do clero, na Escócia, contra uma fascinante, porém impiedosa rainha. O estoicismo de um rígido credo formou as fortes almas dos escoceses, dos puritanos ingleses e holandeses e dos puritanos da Nova Inglaterra. Fortaleceu o coração de Cromwell, guiou a pena do cego Milton e destruiu o poder dos retrógrados Stuart. Encorajou bravos e implacáveis homens a conquistar um continente e espalhar a base da educação e da autonomia até que todos pudessem ser livres. Os homens que escolhiam seus próprios pastores logo clamaram pela escolha de seus governantes e a congregação autônoma veio a tornar-se a municipalidade também autônoma [...]. (DURANT, 2002, p. 409).
Por meio da tentativa
revitalização integral da sociedade, “a força oculta dos
protestantes” também implicava, em se tratando especialmente da
reforma calvinista, “no estabelecimento de regras para a produção
da riqueza, no atendimento dos pobres, na distribuição equitativa
dos bens entre ricos e pobres” (CAMPOS, 2009), segundo a conhecida
pesquisa do teólogo reformado André Biéler (1914-2006). Porém, no
que diz respeito ao discurso que aqui se tornou hegemônico, o
teólogo brasileiro Rubem Alves (1933-2014) sempre insistiu no
argumento de que o PRD (Protestantismo da Reta Doutrina), um tipo
ideal de corte weberiano, diga-se de passagem, teria permitido, ao
deslocar a ênfase das estruturas para o indivíduo, o surgimento em
nosso meio, ao longo século XX, de uma Era Protestante “às
avessas”, marcada pelo dogmatismo, conservadorismo e gradativo
bloqueio do diálogo ecumênico. Paradoxalmente, caminhou na
contramão das tendências mundiais de “aggiornamento” ao
possibilitar a manutenção do repertório teológico de um mundo que
não mais existe.
Foto: Pixabay.com |
Dito isso, gostaria de apontar,
também, para o seguinte fato: nas versões mais institucionalizadas
do protestantismo brasileiro, a produção de engajamento religioso
operava em dois níveis distintos – a manutenção das
configurações ideológicas do protestantismo missionário do século
XIX, com seus padrões individualistas de “moral e costumes”, e
um sentido religioso racional que se materializava em elementos de
natureza ritual (protestantes “cantam” sua teologia...). Com o
advento das lógicas secularizantes, na década de 1960, o primeiro
nível tornou-se disfuncional. O que as igrejas brasileiras fizeram?
Enquanto parcela significativa do protestantismo missionário apostou
no reforço do discurso moralista (e vitoriano) de matriz
(neo-)fundamentalista, algumas igrejas carismáticas e pentecostais,
de um lado, e o movimento neopentecostal, de outro,
instrumentalizaram o aspecto ritual ao nível da “teatralidade”,
abandonando as lógicas “desenraizadoras” da ideologia
protestante original. Ou seja, a dimensão ideológica foi totalmente
subsumida nas/ pelas performances mágicas e “judaicizantes”.
Tensionada pelos extremos (CAVALCANTE, 2009, 2010), a
tentativa de consolidação de uma “via média”, nos anos
1990, pelo chamado movimento “evangelical”, fracassou
completamente nas denominações associadas ao chamado protestantismo
brasileiro de origem missionária (presbiterianos, batistas,
metodistas, etc.). Aqui, a secularização e as vias místicas de
acesso ao sagrado passaram a se reforçar mutuamente, permitindo a
produção de um fiel emocionalmente engajado, mas sem vínculos
ideológicos com o discurso religioso que lhe serviu de base.
Na virada do milênio, parcela
significativa do discurso religioso protestante deixou-se facilmente
capturar pela perversa agenda econômica neoliberal, possibilitando o
domínio livre da divisão neoconservadora de trabalho entre o conservadorismo de extrema-direita e o discurso mágico
da Teologia da Prosperidade. Nesse vácuo, um ramo do pentecostalismo
brasileiro, na tentativa de “envernizar” a baixa circulação de
“capital teológico” em suas igrejas, resolveu “flertar” com
o hipercalvinismo (calvinistas somente na soteriologia),
considerando-se as “afinidades eletivas” (Não
sem reações, como se vê recentemente...). Mas, no fundo,
pentecostais arminianos e neocalvinistas, ao defenderem uma imagem
fechada de mundo, distanciam-se completamente dos meios teóricos de
produção teológica de suas respectivas igrejas-mães. São verso e
anverso da mesma moeda.
Referências
ALVES,
Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Edições
Paulinas, 1982.
BIÉLER,
André. O pensamento econômico e social de Calvino. 3ª ed.
São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990.
CAMPOS,
Leonildo Silveira. A Reforma 500 anos depois de Calvino.
[Entrevista concedida a] Márcia Junges. IHU
On-Line, São
Leopoldo, n. 316,
p. 12-18,
23
nov.
2009.
Disponível em:
http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao316.pdf
Acesso em 18 out. 2019.
CAVALCANTE, Ronaldo. A cidade
e o gueto: Introdução a uma teologia pública protestante e o
desafio do neofundamentalismo evangélico no Brasil. São Paulo:
Fonte Editorial, 2010.
______.
“Teologia Protestante brasileira: as ‘luzes’ e as ‘sombras’
de um discurso paradoxal do sagrado”. In: LEONEL FERREIRA, João
Cesário. Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro.
São Paulo: Fonte Editorial, 2009. cap. 2, pp. 47-92.
DURANT,
Will. A Reforma: história da civilização européia de Wyclif a
Calvino: 1300-1564. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
SOUZA, Robson. “Religião,
gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no
protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017,
Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível
em:
http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file
. Acesso em: 30 nov. 2017.
TILLICH,
Paul. A Era Protestante. São Paulo/ S. Bernardo do Campo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião,
1992.
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