sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Calvinismo sem Calvino e a nova onda conservadora

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

Ao que tudo indica, a recente polêmica entre neocalvinistas e pentecostais arminianos, no plano do debate das ideias religiosas, não apenas resulta de um pseudoproblema teológico, posto que se baseia na ocultação das instituições mais criativas e dinâmicas da espiritualidade reformada, como também não deixa de ser expressão de um novo episódio de mistificação do discurso religioso protestante no contexto religioso brasileiro.

Enquanto proposta de liberdade e libertação, com evidente dimensão ecumênica, a Reforma do século XVI significou, inicialmente, o desenvolvimento de novas estruturas sociais, exigindo condições de ordem econômica, social, política e cultural que tornassem possível o pleno exercício da liberdade (cf. Will Durant). Nessa perspectiva, os dinamismos culturais presentes nos ideais dessa nova forma de espiritualidade levaram o teólogo Paul Tillich (1886-1965) a problematizar a tensão dialética existente entre um discurso religioso materializado em instituições sociais que aspiravam à estabilidade e um princípio radical que era, em si mesmo, uma força permanente de transformação social. Will Durant também reconhece que:

[...] Os esforços dos chefes calvinistas, no sentido de dar escolas para todos e incutir a disciplina no caráter, auxiliaram os resolutos burgueses da Holanda, a afugentar a alienígena ditadura da Espanha e sustentaram a revolta dos nobres e do clero, na Escócia, contra uma fascinante, porém impiedosa rainha. O estoicismo de um rígido credo formou as fortes almas dos escoceses, dos puritanos ingleses e holandeses e dos puritanos da Nova Inglaterra. Fortaleceu o coração de Cromwell, guiou a pena do cego Milton e destruiu o poder dos retrógrados Stuart. Encorajou bravos e implacáveis homens a conquistar um continente e espalhar a base da educação e da autonomia até que todos pudessem ser livres. Os homens que escolhiam seus próprios pastores logo clamaram pela escolha de seus governantes e a congregação autônoma veio a tornar-se a municipalidade também autônoma [...]. (DURANT, 2002, p. 409).

Por meio da tentativa revitalização integral da sociedade, “a força oculta dos protestantes” também implicava, em se tratando especialmente da reforma calvinista, “no estabelecimento de regras para a produção da riqueza, no atendimento dos pobres, na distribuição equitativa dos bens entre ricos e pobres” (CAMPOS, 2009), segundo a conhecida pesquisa do teólogo reformado André Biéler (1914-2006). Porém, no que diz respeito ao discurso que aqui se tornou hegemônico, o teólogo brasileiro Rubem Alves (1933-2014) sempre insistiu no argumento de que o PRD (Protestantismo da Reta Doutrina), um tipo ideal de corte weberiano, diga-se de passagem, teria permitido, ao deslocar a ênfase das estruturas para o indivíduo, o surgimento em nosso meio, ao longo século XX, de uma Era Protestante “às avessas”, marcada pelo dogmatismo, conservadorismo e gradativo bloqueio do diálogo ecumênico. Paradoxalmente, caminhou na contramão das tendências mundiais de “aggiornamento” ao possibilitar a manutenção do repertório teológico de um mundo que não mais existe.

Foto: Pixabay.com


Dito isso, gostaria de apontar, também, para o seguinte fato: nas versões mais institucionalizadas do protestantismo brasileiro, a produção de engajamento religioso operava em dois níveis distintos – a manutenção das configurações ideológicas do protestantismo missionário do século XIX, com seus padrões individualistas de “moral e costumes”, e um sentido religioso racional que se materializava em elementos de natureza ritual (protestantes “cantam” sua teologia...). Com o advento das lógicas secularizantes, na década de 1960, o primeiro nível tornou-se disfuncional. O que as igrejas brasileiras fizeram? Enquanto parcela significativa do protestantismo missionário apostou no reforço do discurso moralista (e vitoriano) de matriz (neo-)fundamentalista, algumas igrejas carismáticas e pentecostais, de um lado, e o movimento neopentecostal, de outro, instrumentalizaram o aspecto ritual ao nível da “teatralidade”, abandonando as lógicas “desenraizadoras” da ideologia protestante original. Ou seja, a dimensão ideológica foi totalmente subsumida nas/ pelas performances mágicas e “judaicizantes”.

Tensionada pelos extremos (CAVALCANTE, 2009, 2010), a tentativa de consolidação de uma “via média”, nos anos 1990, pelo chamado movimento “evangelical”, fracassou completamente nas denominações associadas ao chamado protestantismo brasileiro de origem missionária (presbiterianos, batistas, metodistas, etc.). Aqui, a secularização e as vias místicas de acesso ao sagrado passaram a se reforçar mutuamente, permitindo a produção de um fiel emocionalmente engajado, mas sem vínculos ideológicos com o discurso religioso que lhe serviu de base.

Na virada do milênio, parcela significativa do discurso religioso protestante deixou-se facilmente capturar pela perversa agenda econômica neoliberal, possibilitando o domínio livre da divisão neoconservadora de trabalho entre o conservadorismo de extrema-direita e o discurso mágico da Teologia da Prosperidade. Nesse vácuo, um ramo do pentecostalismo brasileiro, na tentativa de “envernizar” a baixa circulação de “capital teológico” em suas igrejas, resolveu “flertar” com o hipercalvinismo (calvinistas somente na soteriologia), considerando-se as “afinidades eletivas” (Não sem reações, como se vê recentemente...). Mas, no fundo, pentecostais arminianos e neocalvinistas, ao defenderem uma imagem fechada de mundo, distanciam-se completamente dos meios teóricos de produção teológica de suas respectivas igrejas-mães. São verso e anverso da mesma moeda.

Referências

ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. 3ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990.
CAMPOS, Leonildo Silveira. A Reforma 500 anos depois de Calvino. [Entrevista concedida a] Márcia Junges. IHU On-Line, São Leopoldo, n. 316, p. 12-18, 23 nov. 2009. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao316.pdf Acesso em 18 out. 2019.
CAVALCANTE, Ronaldo. A cidade e o gueto: Introdução a uma teologia pública protestante e o desafio do neofundamentalismo evangélico no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
______. “Teologia Protestante brasileira: as ‘luzes’ e as ‘sombras’ de um discurso paradoxal do sagrado”. In: LEONEL FERREIRA, João Cesário. Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. cap. 2, pp. 47-92.
DURANT, Will. A Reforma: história da civilização européia de Wyclif a Calvino: 1300-1564. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
SOUZA, Robson. “Religião, gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file . Acesso em: 30 nov. 2017.
TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Paulo/ S. Bernardo do Campo: Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Ciências da Religião, 1992.

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