Dois episódios recentes reacenderam o debate sobre as relações entre o conservadorismo protestante e as configurações políticas do protestantismo brasileiro, com foco específico no presbiterianismo. O primeiro evento foi a nomeação de Benedito Guimarães Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, para a presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A nomeação gerou controvérsia quando a mídia destacou o fato de Aguiar ser um defensor do “design inteligente”, uma teoria religiosa que se opõe ao evolucionismo, reacendendo debates sobre a separação entre ciência e religião no Brasil (cf. CRITICADO, 2020). O segundo caso envolveu o uso de uma igreja em Londrina para coleta de assinaturas em apoio à criação de um partido político, o que levanta questões sobre a instrumentalização de espaços religiosos para fins políticos (cf. WETERMAN, 2020).
Esses eventos ilustram uma crescente interseção entre religião e política no Brasil, particularmente dentro do protestantismo, mas também revelam as dinâmicas mais amplas e complexas que marcam o cenário evangélico brasileiro. Embora seja comum tanto entre evangélicos quanto entre a militância de esquerda associar o presbiterianismo nacional a um conservadorismo de direita (cf. FILORDI, 2020), essa leitura é muitas vezes limitada e desconsidera a história diacrônica do presbiterianismo no Brasil. O conservadorismo protestante precisa ser entendido no contexto das transformações sociopolíticas e religiosas mais amplas, especialmente as ocorridas no século XX.
Historicamente, o presbiterianismo missionário no Brasil, durante o século XIX, esteve alinhado com a filosofia política liberal, incorporando uma série de alianças com diversas correntes ideológicas, como o republicanismo, o positivismo, a maçonaria e até mesmo o socialismo. Isso contribuiu para uma agenda política progressista que incluía a separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa, o ensino leigo e o abolicionismo (cf. CAMPOS, 2014). Esta herança progressista, contudo, foi progressivamente sendo ofuscada pela consolidação de uma vertente conservadora no presbiterianismo ao longo do século XX, especialmente durante os anos de ditadura militar, quando a religião foi usada como uma ferramenta de controle político.
Imagem gerada por IA (DALL-E). Aqui, Calvino (perplexo?) a observar o debate teológico contemporâneo...
O presbiterianismo brasileiro, que inicialmente esteve envolvido em importantes debates sociais, como a secularização dos cemitérios e o reconhecimento dos casamentos civis, mais tarde se viu dividido entre um engajamento político progressista, representado por figuras como Erasmo Braga (1877-1932), e uma vertente conservadora. A década de 1930 foi marcada pela criação da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), uma instituição que fomentou a cooperação ecumênica e o engajamento social, culminando na Conferência do Nordeste de 1962, cujo lema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” sinalizava o compromisso com as transformações sociais (cf. BURITY, 2011).
No entanto, na década de 1960, com a intervenção em instituições teológicas como o Seminário de Campinas e o aumento das tensões durante a ditadura militar, o presbiterianismo nacional passou por uma guinada à direita. Sob a liderança de Boanerges Ribeiro, o presbiterianismo tornou-se sinônimo de conservadorismo, e a teologia progressista foi silenciada. O episódio conhecido como “Inquisição sem Fogueiras” exemplifica o uso do presbiterianismo como ferramenta de repressão política, com pastores e teólogos acusados de comunismo sendo perseguidos (cf. PAIXÃO JR., 2014). Essa polarização interna resultou na fragmentação do protestantismo brasileiro, que hoje se divide entre as tendências ecumênicas e progressistas e um conservadorismo crescente.
Nos últimos 20 anos, o campo religioso protestante brasileiro experimentou uma reconfiguração que não pode ser explicada apenas como uma reação às forças políticas e sociais. A ascensão do neopentecostalismo e o crescimento de igrejas evangélicas carismáticas trouxeram novas formas de engajamento religioso, que frequentemente se associam ao neoliberalismo econômico e à política conservadora. Esse fenômeno deve ser compreendido como parte de um movimento global de “neoliberalização” da religião, em que as igrejas, ao adotarem lógicas de mercado, se alinham com as agendas políticas de direita, sem, no entanto, abandonar completamente seu discurso de proteção social e mobilização comunitária (cf. BURITY, 2018).
O fenômeno do evangelicalismo político, particularmente visível no Brasil pós-redemocratização, ilustra a tensão entre duas formas de representação teológica e política: de um lado, uma tradição pietista que prioriza a conversão individual e a ética moral, e, de outro, uma vertente fundamentalista, inspirada pelo evangelicalismo norte-americano, que se posiciona ativamente na arena política. Essa guinada à direita se expressa na ascensão de lideranças políticas evangélicas e na adesão de setores religiosos às plataformas de extrema-direita, como evidenciado pela influência crescente de evangélicos nas eleições e no parlamento brasileiro. Ao mesmo tempo, a polarização ideológica no campo religioso cria uma “demonização” dos inimigos políticos e culturais, com categorias como “marxismo cultural” e “ideologia de gênero” sendo apresentadas como ameaças à nação e à fé (cf. SOUZA, 2019).
Nesse cenário, o discurso religioso conservador é mobilizado tanto para legitimar agendas neoliberais quanto para estruturar uma nova ética religiosa que vincula a prosperidade espiritual à prosperidade material. A “Teologia da Prosperidade”, por exemplo, tem desempenhado um papel central na legitimação de práticas políticas neoliberais, ao promover a ideia de que o sucesso financeiro e o empreendedorismo são expressões da benção divina. O crescimento dessas igrejas que associam prosperidade material à fé oferece uma base para o aprofundamento das relações entre religião e política no Brasil, legitimando o conservadorismo econômico e social.
Assim, o atual cenário religioso protestante no Brasil é resultado de uma complexa rede de articulações contingentes, nas quais as tradições religiosas locais interagem com influências globais, como o evangelicalismo norte-americano e as lógicas do neoliberalismo. Para entender plenamente essa dinâmica, é necessário considerar tanto as continuidades históricas quanto as transformações mais recentes nas relações entre o protestantismo e a política no Brasil.
Referências
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