sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Protestantismo e Política

Dois episódios recentes reacenderam o debate sobre as relações entre o conservadorismo protestante e as configurações políticas do protestantismo brasileiro, com foco específico no presbiterianismo. O primeiro evento foi a nomeação de Benedito Guimarães Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, para a presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A nomeação gerou controvérsia quando a mídia destacou o fato de Aguiar ser um defensor do “design inteligente”, uma teoria religiosa que se opõe ao evolucionismo, reacendendo debates sobre a separação entre ciência e religião no Brasil (cf. CRITICADO, 2020). O segundo caso envolveu o uso de uma igreja em Londrina para coleta de assinaturas em apoio à criação de um partido político, o que levanta questões sobre a instrumentalização de espaços religiosos para fins políticos (cf. WETERMAN, 2020).

Esses eventos ilustram uma crescente interseção entre religião e política no Brasil, particularmente dentro do protestantismo, mas também revelam as dinâmicas mais amplas e complexas que marcam o cenário evangélico brasileiro. Embora seja comum tanto entre evangélicos quanto entre a militância de esquerda associar o presbiterianismo nacional a um conservadorismo de direita (cf. FILORDI, 2020), essa leitura é muitas vezes limitada e desconsidera a história diacrônica do presbiterianismo no Brasil. O conservadorismo protestante precisa ser entendido no contexto das transformações sociopolíticas e religiosas mais amplas, especialmente as ocorridas no século XX.

Historicamente, o presbiterianismo missionário no Brasil, durante o século XIX, esteve alinhado com a filosofia política liberal, incorporando uma série de alianças com diversas correntes ideológicas, como o republicanismo, o positivismo, a maçonaria e até mesmo o socialismo. Isso contribuiu para uma agenda política progressista que incluía a separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa, o ensino leigo e o abolicionismo (cf. CAMPOS, 2014). Esta herança progressista, contudo, foi progressivamente sendo ofuscada pela consolidação de uma vertente conservadora no presbiterianismo ao longo do século XX, especialmente durante os anos de ditadura militar, quando a religião foi usada como uma ferramenta de controle político.


Imagem gerada por IA (DALL-E). Aqui, Calvino (perplexo?) a observar o debate teológico contemporâneo...

O presbiterianismo brasileiro, que inicialmente esteve envolvido em importantes debates sociais, como a secularização dos cemitérios e o reconhecimento dos casamentos civis, mais tarde se viu dividido entre um engajamento político progressista, representado por figuras como Erasmo Braga (1877-1932), e uma vertente conservadora. A década de 1930 foi marcada pela criação da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), uma instituição que fomentou a cooperação ecumênica e o engajamento social, culminando na Conferência do Nordeste de 1962, cujo lema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” sinalizava o compromisso com as transformações sociais (cf. BURITY, 2011).

No entanto, na década de 1960, com a intervenção em instituições teológicas como o Seminário de Campinas e o aumento das tensões durante a ditadura militar, o presbiterianismo nacional passou por uma guinada à direita. Sob a liderança de Boanerges Ribeiro, o presbiterianismo tornou-se sinônimo de conservadorismo, e a teologia progressista foi silenciada. O episódio conhecido como “Inquisição sem Fogueiras” exemplifica o uso do presbiterianismo como ferramenta de repressão política, com pastores e teólogos acusados de comunismo sendo perseguidos (cf. PAIXÃO JR., 2014). Essa polarização interna resultou na fragmentação do protestantismo brasileiro, que hoje se divide entre as tendências ecumênicas e progressistas e um conservadorismo crescente.

Nos últimos 20 anos, o campo religioso protestante brasileiro experimentou uma reconfiguração que não pode ser explicada apenas como uma reação às forças políticas e sociais. A ascensão do neopentecostalismo e o crescimento de igrejas evangélicas carismáticas trouxeram novas formas de engajamento religioso, que frequentemente se associam ao neoliberalismo econômico e à política conservadora. Esse fenômeno deve ser compreendido como parte de um movimento global de “neoliberalização” da religião, em que as igrejas, ao adotarem lógicas de mercado, se alinham com as agendas políticas de direita, sem, no entanto, abandonar completamente seu discurso de proteção social e mobilização comunitária (cf. BURITY, 2018).

O fenômeno do evangelicalismo político, particularmente visível no Brasil pós-redemocratização, ilustra a tensão entre duas formas de representação teológica e política: de um lado, uma tradição pietista que prioriza a conversão individual e a ética moral, e, de outro, uma vertente fundamentalista, inspirada pelo evangelicalismo norte-americano, que se posiciona ativamente na arena política. Essa guinada à direita se expressa na ascensão de lideranças políticas evangélicas e na adesão de setores religiosos às plataformas de extrema-direita, como evidenciado pela influência crescente de evangélicos nas eleições e no parlamento brasileiro. Ao mesmo tempo, a polarização ideológica no campo religioso cria uma “demonização” dos inimigos políticos e culturais, com categorias como “marxismo cultural” e “ideologia de gênero” sendo apresentadas como ameaças à nação e à fé (cf. SOUZA, 2019).

Nesse cenário, o discurso religioso conservador é mobilizado tanto para legitimar agendas neoliberais quanto para estruturar uma nova ética religiosa que vincula a prosperidade espiritual à prosperidade material. A “Teologia da Prosperidade”, por exemplo, tem desempenhado um papel central na legitimação de práticas políticas neoliberais, ao promover a ideia de que o sucesso financeiro e o empreendedorismo são expressões da benção divina. O crescimento dessas igrejas que associam prosperidade material à fé oferece uma base para o aprofundamento das relações entre religião e política no Brasil, legitimando o conservadorismo econômico e social.

Assim, o atual cenário religioso protestante no Brasil é resultado de uma complexa rede de articulações contingentes, nas quais as tradições religiosas locais interagem com influências globais, como o evangelicalismo norte-americano e as lógicas do neoliberalismo. Para entender plenamente essa dinâmica, é necessário considerar tanto as continuidades históricas quanto as transformações mais recentes nas relações entre o protestantismo e a política no Brasil.


Referências

ALVES, R. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979.
ARAÚJO, J. D. Inquisição sem fogueiras. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1985.
BURITY, J., A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: ALMEIDA, R.; TONIOL, R. (Orgs.). Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos – análises conjunturais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. p. 15-64.
__________. Ainda uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia e muitas histórias pelo meio... e nas margens. In: REBLIN, I,; von SINNER, R. (Orgs.). Reforma: tradição e transformação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. p. 69-92.
__________. Fé na Revolução – Protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1961 – 1964). Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011.
CALVANI, C. E. B. Protestantismo liberal, ecumênico, revolucionário e pluralista no Brasil – um projeto que ainda não se extinguiu. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 40, p. 1896-1929, 25 dez. 2015. Disponível em; http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2015v13n40p1896/9041 >. Acesso em: 31 jan. 2020.
CAMPOS, L. S. O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre “protestantismo” e “repressão”: algumas observações 30 anos depois. Relig. soc., Rio de Janeiro , v. 28, n. 2, p. 102-137, 2008 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872008000200006&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 31 Jan. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872008000200006
_________________________. “Protestantismo de Missão no Brasil, cidadania e liberdade religiosa”, Educação e Linguagem, v. 17, n. 1, Jan-Jun, 2014, pp. 76-116. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/5493/4510 . Acesso em: 30 jan. 2020.
CRITICADO por apoiar criacionismo, novo presidente da Capes diz em nota que defende ‘liberdade de cátedra’. G1, 30 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/01/30/novo-presidente-da-capes-diz-que-vai-priorizar-solucoes-de-problemas-nacionais-em-sua-gestao.ghtml. Acesso em: 31. jan. 2020.
FILORDI, A. Tensões científicas na CAPES e a Igreja Presbiteriana do Brasil: a farsa ardente. Jornal GGN, São Paulo, 30 jan. 2020. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/tensoes-cientificas-na-capes-e-a-igreja-presbiteriana-do-brasil-a-farsa-ardente-por-alexandre-filordi/?fbclid=IwAR1UZXOGp4FdVNNQ1lsSPrKXucBZuHNYP_M8QoEsqnGVdjPkxB_1LEE3KcA Acesso em: 31. jan. 2020.
MENDONÇA, A. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista USP, n. 67, p. 48-67, 1 nov. 2005. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13455/15273 Acesso em: 30 jan. 2020.
________________. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica. In: SOUZA, B. M.; MARTINHO, L. M. (orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 59.
PAIXÃO JR., V. G. A Era do Trovão: Poder e Repressão na Igreja Presbiteriana do Brasil na Época da Ditadura Militar (1966-1978). Mestrado em Ciências da Religião. Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2000.
________________. Poder, memória e repressão: a Igreja Presbiteriana do Brasil no período da ditadura militar (1966-1978). RIDH - Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 2, n. 2, p. 20-40, jun. 2014. Disponível em: https://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/174/90 Acesso em: 30 jan. 2020.
SILVA, H. A era do furacão: história contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil: 1959-1966. 183 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1996.
SOUZA, R. Discursos e práticas fundamentalistas na Igreja Presbiteriana do Brasil (2002-2008): uma análise da pretensa posição de equidistância dos extremos fundamentalistas e liberais. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/493/1/Robson_Costa_Souza.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019.
______________. Gênero e ideologia entre evangélicos brasileiros. São Paulo: Intermeios, 2019.
______________. “Religião, gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file . Acesso em: 31 jan. 2020.
WETERMAN, D. Pastor “desafia” fiel a assinarem apoio a partido de Bolsonaro, em meio ao culto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 jan. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pastor-desafia-fieis-a-assinarem-apoio-a-partido-de-bolsonaro-em-meio-a-culto,70003176096 . Acesso em: 31. jan. 2020.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Cosmovisão cristã e ideologia política conservadora

“ (…) Pelo amor de Deus, só nenhum delírio protestante, só nenhuma “batalha contra Roma”! Nossa força reside em carregar [‘todo’ o peso daquela inquietude preparada por Deus aos seres humanos], no qual nós mesmo nem aparecemos, só estamos ‘ali’ como os que pensam e refletem. A melhor porção do paulinismo é justamente aquilo que ‘não’ é manejável nem utilizável, e a ‘melhor’ porção do protestantismo é justamente o que é ‘estranho’ ao mundo, o que ‘não’ é prático nem popular. No momento em que eles querem representar uma grandeza, um fator ou desempenhar um papel, se abrem mão deles mesmos. É só pelo fato de eles, no limite extremo da cultura, da sociedade, das cosmovisões e religiões não ousarem ser os pontos de interrogação e exclamação discretos (em verdade, os decisivos!), só pelo fato de eles pretenderem ‘ser’ algo e ‘concorrer’ com os romanos, é que são provocadas as suas crises.”
BARTH, K. A Carta aos Romanos: (segunda versão) 1922. São Leopoldo: Sinodal/ EST, 2016, p. 505.


Ao concluir a leitura de um artigo de Cornelis van der Kooi, fiquei a refletir se Abraham Kuyper (1837-1920) e Herman Bavinck (1854-1921) são, de fato, os únicos mentores de uma “Teologia Pública” de matriz reformada. O kuyperianismo, ao que parece, desenvolveu-se em um contexto profundamente distinto do nosso, articulando, ao mesmo tempo, valores conservadores e antirrevolucionários, de um lado, e antiaristocráticos e republicanos, de outro. Kuyper rejeitava os princípios fundamentais da Revolução Francesa, como a soberania popular, o anticlericalismo e a negação da autoridade divina. Entretanto, essa crítica ao ideário revolucionário não faz de Kuyper um "restauracionista" no sentido político estrito. Enquanto estrategista político, ele atribuía ao Calvinismo os avanços das conquistas sociais modernas — republicanismo, teoria dos contratos sociais, separação entre Igreja e Estado, organização política e popular, entre outros — e aceitava os riscos inerentes ao regime democrático.

Por outro lado, Kuyper sustentava a visão conservadora de que a Revolução Francesa, ao instituir formas políticas totalitárias, fomentou conflitos sociais ao dividir a sociedade em classes, culminando na supressão das liberdades individuais durante o período do Terror. Para ele, a tirania estava disfarçada sob as promessas utópicas de liberdade, igualdade e fraternidade. Como ressalta J. Bratt, Kuyper argumentava, de maneira sutil, que os valores revolucionários — como o racionalismo, o individualismo e um ateísmo sem precedentes — eram, na verdade, subprodutos das lógicas liberais predominantes no mundo anglo-saxão, como a economia de mercado e o utilitarismo..

Para conservadores econômicos (ou neoliberais) e evangélicos americanos que tendem a assumir uma afinidade automática entre suas posições, as ideias de Kuyper seriam, na melhor das hipóteses, desconcertantes, e na pior, revoltantes. Em retórica muitas vezes acalorada, Kuyper, em Christianity and the Social Question, denunciou o capitalismo laissez-faire como prejudicial ao bem-estar humano, material ou espiritual, e contrário às Escrituras e à vontade de Deus. Segundo ele, o capitalismo era fruto da Revolução — referindo-se à Revolução Francesa, mas igualmente à Revolução Industrial —, pois os princípios por trás de ambas constituíam a verdadeira revolução de consciência que o pensamento antirrevolucionário sempre condenou. Em que consistia essa revolução no campo econômico? Para Kuyper, ela residia na substituição do espírito de "compaixão cristã" pelo "egoísmo de uma luta apaixonada por posses", na abolição das reivindicações comunitárias em favor do indivíduo soberano, na mercantilização do trabalho, que negava a imagem de Deus no trabalhador, e na idolatria do supostamente livre mercado, que privava os fracos de suas proteções e autorizava os fortes a manipular o sistema, proclamando que as consequências eram meramente os resultados inevitáveis das leis naturais. A Revolução Francesa, juntamente com o utilitarismo, o laissez-faire e as escolas de Manchester, eram, para Kuyper, os apologistas filosóficos do capitalismo industrial (Bratt, 2014, p. 7).

A partir da segunda metade do século XIX, os aspectos públicos e políticos dessa teologia neocalvinista se materializaram, especialmente na Holanda, tanto na tentativa de “recristianizar” a sociedade, reinventando um ideal nacional fundado em valores calvinistas e em oposição ao ideário liberal que buscava banir a religião do espaço público, quanto na apropriação política de noções teológicas como responsabilidade pessoal, sacerdócio universal e a lógica da “soberania das esferas” para resistir ao Estado. Esse “mito fundante”, em todos os sentidos, apresentava a teologia reformada não apenas como fonte de constitucionalismo e das liberdades individuais, mas como a verdadeira via revolucionária: “O resultado foi um argumento pela estabilidade e ordem, a partir de uma narrativa de resistência, rebelião e revolução — uma boa, cristã revolução” (Ibidem, p. 10).


Imagem gerada por IA (Dall-E)

Desde João Calvino até Théodore Béza, passando pelos huguenotes, a resistência constitucional aos tiranos encontrou no Calvinismo uma fonte moral de legitimação política. Como forma de Teologia Pública, essa “reapropriação” política da teologia de Calvino destacava princípios contraditórios e antagônicos, como a igualdade política para todas as convicções religiosas (pluralismo), a distinção entre os diversos domínios da vida, a noção de um Estado desvinculado da influência direta da Igreja (e vice-versa), sem que isso se configurasse em laicismo, o associativismo, e uma visão de sociedade inspirada por valores cristãos (e reformados), em paralelo ao envolvimento pleno dos crentes na cultura moderna. Dessa interação entre igualdade e diferença, a igreja se desenvolveria como uma comunidade pluriforme, onde todos, homens e mulheres, são iguais perante Deus.

Ao apostar no Calvinismo como uma fonte de mobilização e responsabilidade pessoal — ou seja, no engajamento ativo dos cristãos em questões de interesse comum, como saúde, educação e o cuidado dos pobres —, essa teologia ajudou a disseminar uma forma de espiritualidade conectada a uma visão abrangente do mundo: uma “graça comum” que se estende a todos os reinos da cultura. Nessa perspectiva, o neocalvinismo enxergava na segmentação ideológica da sociedade uma forma de resistência religiosa ao avanço da secularização, desconsiderando o poder das forças materiais em relação às ideias.

Sem demagogia, volto a me perguntar, após essas breves considerações, sobre a relevância dessa teologia para a compreensão do fenômeno religioso no Brasil. O neocalvinismo kuyperiano seria, em nosso contexto, uma apropriação política de temáticas religiosas ou uma religiosização politicamente conservadora do debate público? Até que ponto ele contribui para reforçar (ou até mesmo "desconstruir") as formas de representação vinculadas ao imaginário do assim chamado “mundo evangélico” contemporâneo?

De qualquer modo, o “kuyperianismo” é uma construção teológico política do século XIX, distanciando-se, inclusive, dos próprios ensinamentos de Calvino. Se, por um lado, a ideia de “cosmovisão cristã” se constitui como um subproduto ideológico dessa “formação discursiva”, ganhando hegemonia entre muitas lideranças evangélicas brasileiras no final do século XX e início deste século, por razões que ainda carecem de investigação, por outro, as formas confessionais (e ortodoxas) do Calvinismo não se confundem, necessariamente, com esses vetores político ideológicos, pois lhes são anteriores. Nessa perspectiva, o Calvinismo e o Iluminismo só se apresentam como “forças sociais contraditórias” quando analisados sob essa matriz ideológica conservadora. Como demonstrei em uma análise anterior, existem formas ilustradas de Calvinismo, inclusive na Holanda.

Referências
BRATT, J. “Abraham Kuyper and the French Revolution”. In: Harinck, G; Eglinton, James. “Neo-Calvinism and the French Revolution”. London, New York: Bloomsbury T&T Clark, 2014. cap. 1, p. 1-12.
VAN DER KOOI, C. “Calvin, Modern Calvinism, and Civil Society: The Appropriation of a Heritage, with Particular Reference to the Low Countries”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip. “Calvin and His Influence, 1509-2009”. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 13, pp. 267-281.

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