sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Protestantismo e Política


Um breve comentário sobre a “matriz ideológica” do presbiterianismo brasileiro

Por Robson Souza (robs_costa@hotmail.com)

Ao que parece, dois episódios recentes reacenderam o interesse pelas relações entre o “conservadorismo protestante” e as configurações políticas do protestantismo brasileiro, de maneira geral, e do presbiterianismo nacional, especificamente. O primeiro deles se relaciona à nomeação do professor e engenheiro Benedito Guimarães Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), como novo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes), principalmente após a “grande mídia” ter noticiado o fato de o novo presidente ser defensor do “design inteligente”, uma teoria de natureza religiosa que se contrapõe ao evolucionismo (ver portal de notícias G1: CRITICADO, 2020). O segundo (cf. WETERMAN, 2020), ao uso de uma igreja, em Londrina, e suas dependências, para conseguir “apoio” à campanha para a criação de um partido político.

Nessas breves linhas, trabalho exclusivamente no sentido de questionar o argumento comum, presente tanto entre muitos evangélicos como no âmbito da militância de esquerda, de que o presbiterianismo nacional sempre se vinculou a um ideário conservador “de direita” (ver, como exemplo, FILORDI, 2020). De fato, é possível compreender o “conservadorismo protestante” sob uma percepção diacrônica mais longa, resgatando, inclusive, duas importantes obras sobre o assunto (ALVES, 1979; ARAÚJO, 1985; ver, também, CAMPOS, 2008) – “Inquisição sem fogueiras”, de João Dias de Araújo, e “Protestantismo e Repressão”, de Rubem Alves.

Porém, a ausência de problematizações acerca da matriz ideológica presente no protestantismo brasileiro por quase um século, seja por desconsiderar o alinhamento ideológico do presbiterianismo missionário, no século XIX, com a “filosofia política liberal”, num “front” que incluía diversas agendas e atores (o republicanismo, o positivismo, a maçonaria, o socialismo, entre outras opções ideológicas e religiosas), seja por ignorar as lutas e contradições internas às instituições, entre o final da primeira metade do século XX e o início da segunda (cf. SILVA, 1996), tende a gerar série de imprecisões históricas com relação à identidade política do presbiterianismo nacional (ver, principalmente, CAMPOS, 2014). 

Foto: Pixabay.com
  1. Primeiramente, equivoca-se quem defende a ideia de que o presbiterianismo brasileiro sempre foi conservador. A propósito, uma rápida visita ao Diário de Ashbel Green Simonton (1833-1867) e uma breve consulta ao jornal Imprensa Evangélica seriam suficientes para indicar o grave erro dessa leitura. Destacaram-se, entre os missionários protestantes que aqui chegaram, os mais “improváveis” aliados (não católicos, judeus, maçons e livre pensadores), numa polêmica que envolveu, inicialmente, um conjunto questões para além do debate religioso propriamente dito (a secularização de cemitérios; o reconhecimento dos casamentos não celebrados por sacerdotes católicos; a questão da abolição da escravidão negra; e a implantação no país de um governo republicano). Aos poucos, consolidou-se, entre os presbiterianos, uma agenda política que visava, principalmente, aos seguintes princípios: (a) separação entre a Igreja e o Estado; (b) liberdade de crença no país; (c) ensino leigo nas escolas públicas; e (d) abolicismo (cf. CAMPOS, 2014);
  2.  Com a organização da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), em 1934, houve, sim, o engajamento de presbiterianos no movimento ecumênico, com o consequente desenvolvimento de ações de cooperação nas mais distintas áreas (Cf. CALVANI, 2015). A atuação desse organismo entre os evangélicos brasileiros resultou, entre outras coisas, em eventos como a Conferência do Nordeste, em 1962, cujo lema foi “Cristo e o processo revolucionário brasileiro” (ver BURITY, 2011). Na década de 1950, o cenário teria favorecido o surgimento de uma juventude leiga comprometida com as questões sociais da nação (cf. MENDONÇA, 2004, 2005). Não se pode esquecer, além disso, a militância de Erasmo Braga (1877-1932), presbiteriano que trabalhou com afinco pelo ecumenismo brasileiro; 
  3. Por fim, vale lembrar que a consolidação de uma hegemonia conservadora, sob Boanerges Ribeiro, não ocorreu sem tensões (ver, principalmente, PAIXÃO JR., 2000, 2014). O que eventos traumáticos como a assim chamada “inquisição sem fogueiras” e as acusações de comunismo que levaram pastores e professores de seminário às autoridades apontam para os historiadores? A intervenção nas instituições teológicas, entre elas o Seminário de Campinas, na década de 1960, encerrando, assim, a influência do então missionário norte-americano Richard Shaull (cf. CAMPOS, 2014), bem como a desarticulação dos “movimentos de juventude”, que nos “anos de chumbo” assumiram feições estritamente religiosas, devem ser compreendidas contra o pano de fundo de um cenário no mínimo favorável, ao menos até o fim dos anos 1950, de um horizonte teológico propício à reflexão e ao questionamento.
E há dezenas de artigos e textos, inclusive na Internet, sobre as questões levantadas acima, entre os quais indico o conjunto de referências ao término destas linhas.

Finalizando, SOUZA (2009) defende o argumento de que o ressurgimento de protestantes conservadores politicamente ativos (e ativistas) na arena pública brasileira após os processos de redemocratização configurou-se, no início deste século, de forma ambígua, dando origem a uma clivagem entre uma antiga forma de representação político-teológica de matriz pietista, em que importava somente a conversão religiosa dos indivíduos, e a instalação, entre parcela das lideranças evangélicas, do “modus operandi” do fundamentalismo estadunidense. Como os “evangelicais” operavam nessa lacuna, a dimensão agonística das instituições religiosas apresentava-se, sempre de forma velada, na disputa pelos sentidos políticos dos símbolos teológicos (ou mesmo dos sentidos teológicos do engajamento político). Aqui, a noção de “equidistância” funcionou como um “significante-vazio”…

No entanto, a guinada teológica “à direita”, nos últimos 20 anos, concomitantemente ao esvaziamento dos embates teológicos, internamente aos grupos, trouxe, na verdade, ao campo religioso protestante algo novo (BURITY, 2016; 2018; SOUZA, 2017), não podendo ser classificada como um fenômeno meramente reativo. Deve-se analisá-la, sincrônica ou diacronicamente, por meio da compreensão de uma rede de articulações contingentes (e não necessárias) (cf. SOUZA, 2019), num contexto religioso marcado pela “demonização”, entre parcela significativa dos evangélicos, de um inimigo a ser combatido (não apenas o “protestantismo liberal e ecumênico”, mas também e, fundamentalmente, as fantasmáticas noções de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”).


Referências

ALVES, R. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979.
ARAÚJO, J. D. Inquisição sem fogueiras. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1985.
BURITY, J., A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: ALMEIDA, R.; TONIOL, R. (Orgs.). Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos – análises conjunturais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. p. 15-64.
__________. Ainda uma chance para o “princípio protestante”? Sobre fé, ideologia e muitas histórias pelo meio... e nas margens. In: REBLIN, I,; von SINNER, R. (Orgs.). Reforma: tradição e transformação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. p. 69-92.
__________. Fé na Revolução – Protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1961 – 1964). Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011.
CALVANI, C. E. B. Protestantismo liberal, ecumênico, revolucionário e pluralista no Brasil – um projeto que ainda não se extinguiu. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 40, p. 1896-1929, 25 dez. 2015. Disponível em; http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2015v13n40p1896/9041 >. Acesso em: 31 jan. 2020.
CAMPOS, L. S. O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre “protestantismo” e “repressão”: algumas observações 30 anos depois. Relig. soc., Rio de Janeiro , v. 28, n. 2, p. 102-137, 2008 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872008000200006&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 31 Jan. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872008000200006
_________________________. “Protestantismo de Missão no Brasil, cidadania e liberdade religiosa”, Educação e Linguagem, v. 17, n. 1, Jan-Jun, 2014, pp. 76-116. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/5493/4510 . Acesso em: 30 jan. 2020.
CRITICADO por apoiar criacionismo, novo presidente da Capes diz em nota que defende ‘liberdade de cátedra’. G1, 30 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/01/30/novo-presidente-da-capes-diz-que-vai-priorizar-solucoes-de-problemas-nacionais-em-sua-gestao.ghtml. Acesso em: 31. jan. 2020.
FILORDI, A. Tensões científicas na CAPES e a Igreja Presbiteriana do Brasil: a farsa ardente. Jornal GGN, São Paulo, 30 jan. 2020. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/tensoes-cientificas-na-capes-e-a-igreja-presbiteriana-do-brasil-a-farsa-ardente-por-alexandre-filordi/?fbclid=IwAR1UZXOGp4FdVNNQ1lsSPrKXucBZuHNYP_M8QoEsqnGVdjPkxB_1LEE3KcA Acesso em: 31. jan. 2020.
MENDONÇA, A. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista USP, n. 67, p. 48-67, 1 nov. 2005. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13455/15273 Acesso em: 30 jan. 2020.
________________. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica. In: SOUZA, B. M.; MARTINHO, L. M. (orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 59.
PAIXÃO JR., V. G. A Era do Trovão: Poder e Repressão na Igreja Presbiteriana do Brasil na Época da Ditadura Militar (1966-1978). Mestrado em Ciências da Religião. Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2000.
________________. Poder, memória e repressão: a Igreja Presbiteriana do Brasil no período da ditadura militar (1966-1978). RIDH - Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 2, n. 2, p. 20-40, jun. 2014. Disponível em: https://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/174/90 Acesso em: 30 jan. 2020.
SILVA, H. A era do furacão: história contemporânea da Igreja Presbiteriana do Brasil: 1959-1966. 183 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1996.
SOUZA, R. Discursos e práticas fundamentalistas na Igreja Presbiteriana do Brasil (2002-2008): uma análise da pretensa posição de equidistância dos extremos fundamentalistas e liberais. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/493/1/Robson_Costa_Souza.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019.
______________. Gênero e ideologia entre evangélicos brasileiros. São Paulo: Intermeios, 2019.
 ______________. “Religião, gênero e pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro”. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file . Acesso em: 31 jan. 2020.
WETERMAN, D. Pastor “desafia” fiel a assinarem apoio a partido de Bolsonaro, em meio ao culto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 jan. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pastor-desafia-fieis-a-assinarem-apoio-a-partido-de-bolsonaro-em-meio-a-culto,70003176096 . Acesso em: 31. jan. 2020.

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