“Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher;
porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (São Paulo - SBB-RA)
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' no qual vivemos é a regra.
Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso.”
Walter Benjamin
A “frágil força messiânica” de uma teologia materialista
Por Robson da Costa de Souza* (robs_costa@hotmail.com)
Recentemente, a polêmica envolvendo um “santo jejum” apregoado por uma autoridade secular me fez refletir não tanto sobre
o referencial de “publicização” adotado
por
muitos
protestantes brasileiros. Nessa
breve contribuição teológica, nutro fielmente a compreensão de
que, aos envolvidos, não bastaria trazer à tona os
limites da “laicidade brasileira”, seja pela demostração de
que essa relação de proximidade com o Estado, no Brasil,
fere profundamente a consciência daqueles calvinistas que, como
eu, postulam,
criticamente,
a
separação entre as esferas laica e religiosa como um ganho da
modernidade, seja
pela
defesa do argumento de que uma “comunidade messiânica”,
compreendida nos termos de “consciência do Estado”, não pode
prescindir de um distanciamento mínimo com relação às esferas
profanas de poder e soberania.
Aqui
trilharei o árduo caminho da teologia política. A se acreditar na tradição sinótica, a autoridade
(ἐξουσία)
conferida
ao
Cristo ressurreto (e, por extensão, ao povo
eleito), no contexto da Nova
Aliança, constitui-se,
fundamentalmente, sob o “brilho da cruz” (cf. Bornkamm, 2003,
p. 69),
só podendo ser discernida a partir de um horizonte messiânico de
esperança/ mensagem/ proclamação/ discipulado (Mateus 28.18-20).
A
propósito, a
“fé pascal” parte das formulações “querigmáticas” das
primeiras comunidades cristãs ao
interpretar
“Jesus de Nazaré” como o “Cristo de Deus”, quer nos termos
de uma compreensão teológica
acerca
de uma relação
de
continuidade (direta ou indireta) entre a “realidade terrena” de
Jesus e a experiência que os primeiros discípulos fizeram do
Ressuscitado, quer se considere, como em
muitos círculos hermenêuticos, o
“Cristo da fé” completamente distinto do assim
chamado
“Jesus histórico” (ver, principalmente,
Bultmann,
2001).
Se,
um lado,
as festividades do Domingo de Ramos dimensionam
a
natureza do Reino (βασιλεία) inaugurado pelo único e
verdadeiro Messias (João
18.36: “Meu
reino não é deste mundo”; Bíblia de Jerusalém),
de outro, os relatos acerca das
aparições do Senhor apontam
para o fato de que esse Evento tinha um caráter fundamentalmente
“escatológico” (i.e., “um cumprimento real, em Jesus, da
expectativa despertada por sua mensagem”)
na
medida em que foram
tomadas pelas primeiras testemunhas como “prova” de que Deus
tinha ressuscitado Jesus dos mortos.
Ao
estabelecer um profícuo diálogo com a filosofia política
contemporânea, o
mérito da teologia política
reside na tentativa
de interpretar as antinomias
paulinas “em chave messiânica”, demonstrando, com farta
discussão teológica, o modo pelo qual o “apóstolo dos gentios”
se distancia radicalmente da “agenda moral” de seu tempo (cf. Martyn, 2010), que se
caracterizava por uma ética
organizada fundamentalmente por “pares de oposições” moralmente
ortodoxos (e escolhas religiosas e morais bastante rígidas e
definidas).
Neste
ponto, vale ressaltar que, atualmente, o
interesse
acadêmico pela religião, entre
as principais referências intelectuais da esquerda contemporânea
(A. Badiou, G. Agamben e
S. Žižek, entre outros), expressa-se num
tipo de “apropriação” filosófica que
não apenas
toma a
natureza do
messianismo político
de Paulo como
um importante
objeto de
investigação, mas também como
parte de um
conjunto mais amplo de
exemplos religiosos a
serem utilizados no nível da
argumentação sociopolítica.
Ao
apresentar Paulo como um “teólogo apocalíptico”, J.
Louis Martyn, no
artigo “The Gospel Invades Philosophy”, procura articular a
radicalidade de uma nova compreensão do tempo à esfera propriamente
discursiva da experiência religiosa cristã (em Paulo: a “fé”
suscitada pela Palavra graciosa do Evangelho). Enquanto
um cristão
terrivelmente realista, Paulo
toma
a morte do “Jesus dos milagres”, numa cruz romana, como um fato
consumado. Ponto final.
Em
2 Coríntios 5.16, Paulo mesmo diz que o Cristo anunciado por ele não se
confunde com o “Cristo segundo a carne”. Sob essa ótica,
a crucificação de Cristo envolve, também,
em
termos figurativos e parabólicos, a crucificação do cosmos
(o
mundo em que o próprio Paulo vivia anteriormente) e
do próprio apóstolo. Privado
de marcadores familiares, torna-se
testemunha, aqui e agora, de “um mundo em transição” (cf. 1
Coríntios 7.31:
παράγει
γὰρ τὸ σχῆμα τοῦ κόσμου τούτου).
Em
termos bastante subversivos, essa “subjetividade messiânica”,
inscrita numa nova “comunidade moral”, subtrai-se às lógicas
políticas
do
“tempo presente”, isto
é, ao pautar-se
pela “gramática do amor”, em
nada se compara às tentativas religiosas de “legitimação da
ordem” no contexto do conservadorismo protestante de nossos dias.
Em que pese o caráter parabólico e figurativo do messianismo
político de Paulo, o conjunto de “insights” teológicos
presentes nessa leitura “trans-imanente” da realidade histórica
desarticula, assim,
nossas concepções laicas e profanas de poder e soberania
(explicitadas, geralmente, pelo rígido formalismo da lei), abrindo
espaço para a constituição de um tipo de subjetividade (agência)
que, novamente,
“sob
o brilho da cruz”, resiste à “totalidade significativa de um
mundo histórico”, para usar uma expressão do teórico esloveno
S. Žižek (2015).
Testemunhando
contra uma fácil integração à ordem, a
morte solitária de Cristo (Mateus 27.46: τί με ἐγκατέλιπες),
no
conjunto das narrativas da Paixão, vincula-se ao necessário
reconhecimento de
uma
“universal particularidade” – desde que nascemos, o confronto
com o Real potencializa nossas angústias até o limite do desespero.
Considerando a complexa configuração de identidades sociais na
cultura imperial romana do primeiro século, a noção teológica de
“ressurreição” funciona, aqui, como um “gesto formal”
destinado a desarticular um sistema de significações baseado na
noção ontológica de totalidade (cf. Elliott, 2010).
Qual o sentido político da ressurreição? Foto: Pixabay.com |
Nessa
direção, N. Elliott, em “Ideological closure in the
Christ-Event: a Marxist Response to Alain Badiou's Paul”, argumenta
que a proclamação de um “messias crucificado” foi
irredutivelmente política em suas implicações: suspendeu a
eficácia simbólica do “kiriarcado”. Nos termos de T. Kroeker (2010), trata-se, do ponto de vista da “tradição dos oprimidos”,
de uma reação teológico-política ao “antimessianismo da
causalidade imanente” – a explosão de uma redenção messiânica
que, sob o apelo misterioso do passado, tende a se concretizar no
interior mesmo da história). Segundo W. Benjamin,
O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm irmãs que jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos procedeu, uma fraca força messiânica, à qual o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser descartada sem custo. O materialista histórico sabe disso (Tese II).
Aqui,
o materialista histórico, como
diria Benjamin (apud: Löwy, 2005, p. 70), escova a história a “contrapelo” do
lado das vítimas oprimidas: os fracos, os tolos, os humildes e
desprezados (Tese VII). À
luz dos eventos ocorridos na “Semana Santa”, chegamos, enfim, ao
entendimento de que a verdade traumática da história humana é um
“corpo mutilado” (cf. Žižek, 2006, 2008). Segundo T. Eagleton,
“somente aceitando essa como a derradeira palavra, vendo tudo o
mais como lixo sentimental, ilusão ideológica, utopia de
mentirinha, consolo falso, idealismo ridiculamente otimista, é que
talvez se comprove que essa, afinal, não é a última palavra”
(2011, p. 34-35).
À
luz dessa compreensão benjaminiana, a soberania inaugurada aqui, no
contexto de uma negação messiânica e redentora do mundo – aberta
não somente ao futuro como também aos “momentos explosivos do
passado” (cf. Michael Löwy) – subtrai-se, politicamente, às
“regras do jogo” de um “estado de exceção” permanente,
sendo de natureza diversa (o real “estado de exceção” da Tese
VIII). Essa
compreensão teológica, ao apontar para formas políticas de
“desprendimento e despossessão”, atesta, também, contra os
poderosos (deste e) daquele tempo histórico (1
Coríntios 2.6: οὐδὲ
τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος),
os
quais estão destinados ao desaparecimento
(καταργέω).
No
que concerne aos aspectos ideológicos vigentes na ordem imperial de
então (cf. Elliott, 2010), a proclamação de Paulo, ao estabelecer visões coletivas de
um futuro alternativo (“utopia”), significava nada menos do que
“um gesto ideológico desafiador”, um momento da luta política
contra-hegemônica: o “futuro de Deus”, enquanto
μυστήριον
(Romanos
11.25), constitui-se,
aqui, numa ruptura radical com a ordem vigente, não se reduzindo aos
desenvolvimentos “imanentes” das circunstâncias históricas.
A
“fé pascal” exige, nesse aspecto, uma atitude de engajamento
existencial. Em Paulo, somente aqueles que, no contexto de uma nova
comunidade messiânica (na linguagem da Teologia da Libertação, a
Igreja é um “creatio ex nihilo” político dos pobres), deixam-se
interpelar pelo logos
moldado por esse evento divino messiânico (nos termos de 1 Coríntios
1.18-19, um logos
antifilosófico), conseguem perceber a radicalidade dessa nova
compreensão política da história da humanidade.
(...) ainda que a mensagem particular de são Paulo já não seja operativa para nós, os próprios termos nos quais ele formula o modo operativo da religião cristã têm um alcance universal para todo Acontecimento-Verdade: todo Acontecimento-Verdade leva a uma espécie de “resssurreição” – pela fidelidade a ele e por um trabalho de Amor em seu nome, entra-se em outra dimensão, irredutível ao mero ‘service des biens’, ao bom funcionamento dos negócios no domínio do Ser, o domínio da Imortalidade, da vida desimpedida da morte… (ŽIŽEK, 2013, p. 164).
Curiosamente,
os mesmos que, outrora, acusavam Paulo de “tribalismo” (não
necessariamente a “troika”
Agamben-Badiou-Žižek), precisam lidar hoje com as implicações
políticas da teologia apocalíptica de Paulo, verificando se esse
“messianismo político” tem algo significativo a dizer ao nosso
tempo. Entre a lógica de um “excepcionalismo” identitário
(explicitado, muitas vezes, pela conhecida distinção bíblica:
judeu/ grego), e o cosmopolitismo do Império Romano, com fortes
tendências nacionalistas, intervém a compreensão paulina de um
universalismo baseado no “evento” messiânico (Badiou, 2009). Em
termos hegelianos, o “universal ‘ultrapassado’ (aufgehoben) no singular”
(Žižek, 2006, p. 24) transforma-se em “fundamento”, isto é, o solo
onde um
“igualitarismo radical” pode, finalmente, florescer: o Cristo
ressurreto aparece, de forma metafórica,
corporificado na “comunidade dos iguais” – “onde estiverem
dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”
(Mateus 18.20, SBB-RA).
Segundo o filósofo A. Badiou (1937- ), o apóstolo Paulo teria lançado as bases do “universalismo”... Foto: Pixabay.com |
Aqui,
vale lembrar que ao
longo de toda uma tradição filosófica que vai de M. Foucault a G.
Agamben, a “biopolítica” se constitui não apenas pela produção
de “formas de vida” moldadas pelo poder, como também por uma
rígida demarcação da “esfera política” (e o que dela está
excluído pela lógica da excepcionalidade). Nessa perspectiva, a
formação de um “corpo político” para o qual as próprias
condições de vida (e sobrevivência) tornaram-se, na
contemporaneidade, objeto de “disputa” e de criação de
fronteiras rígidas (materiais e simbólicas) traduz-se, atualmente,
na “negação paradoxal da política” (no lugar de uma mera
“despolitização”), e na “comunitarização da esfera pública” (cf. Elliott, 2010, p. 140),
isto é, na produção política de um indivíduo parcial ou
completamente “fechado ao diálogo”, como muitas vezes se vê no
Brasil (pré ou pós-COVID-19).
A
propósito, o que está em jogo nessa crítica filosófica é a cara
visão unificadora de um “bem comum” que, em nosso universo
político liberal, expressa-se, ideologicamente, no “formalismo”
de um aparato jurídico-político pretensamente imparcial. Se, de um
lado, o próprio “universo da lei”, ao estabelecer as distinções
as mais diversas, no contexto de um “estado de exceção”
permanente (G. Agamben), testemunha contra essa
“pseudo-universalidade” dos mercados (A. Badiou), de outro,
permanece irremediavelmente vinculado à maquinaria política do
Estado – um “biopoder” capaz de regular as “particularidades”
nos mínimos detalhes, conforme a tradição em foco (cf. M.
Foucault).
Segundo
Agamben (2016), a
“universalidade messiânica”, nesse sentido, desenvolve-se numa posição política única entre (para além) o discurso religioso fundamentalistae noções contemporâneas de laicidade. Nesse
cenário, o
“aqui e agora” no qual se realiza a salvação/ libertação dos
seres humanos tem,
na
ressurreição de Cristo, um horizonte que ultrapassa tudo o que se
pode esperar. Confrontada pelas
exigências
de
nossa
sociedade, a prática eclesial se depara com uma alternativa radical:
Ou assume de vez a sua “vocação messiânica” ou corre o risco
de se tornar o “refúgio obscurantista dos eleitos” (cf. Gordon
Zerbe):
In particular, as these interpreters suggest, when the church forgets or refuses to admit that it is ‘a purely contingent historical figure,’ a merely ‘strategic identification’ in the drama of the reconstitution of a new people of God in which all humanity becomes ‘all Israel,’ it is in danger of losing its true vocation and instrumentality (pure use) toward the fulfillment of the cosmic drama, God’s love story with all creation. It loses its character of necessary ‘auto-suppression’ relative to the vision of the reign of God. It forgets that it ultimately has identity only in the universal, eschatological economy of salvation when God will be all in all. When the church seeks to maintain an absolute church-world distinction, despite the telos of the universal-eschatological-messianic drama, it is in danger of becoming a mere obscurantist haven for the (self)righteous (ZERBE, 2010, p. 281)
Nos
termos teológicos de D. Bonhoeffer (2016), a vida em comunidade
“testemunha, por sua própria maneira de ser e de agir, que a
‘aparência deste mundo passa’ (1Co 7.31), que ‘o tempo se
abrevia’ (1Co 7.29), que ‘perto está o Senhor’ (Fp 4.5)”.
Conquanto a ideia de ressurreição só faça sentido no contexto de
uma compreensão mítica de mundo, a ênfase desses filósofos recai,
portanto, nas consequências políticas (intencionais ou
não-intencionais) desse “gesto formal” a fundamentar esse
“universalismo coletivo”: um tipo de discurso que, ao colocar-se
numa relação antagônica com aspectos essenciais da “biopolítica
imperial”, resiste ao poder soberano do Estado.
Em
suma, o discurso político messiânico ensaiado por filósofos como
Badiou age contra a “domesticação de Paulo” no cenário cristão
(cf. Fowl, 2010), colocando a reflexão teológica, no contexto de
uma ressignificação teológico-política das particularidades, a
serviço da afirmação de “um procedimento universal de verdade”.
Por meio de uma “dupla crítica” (tanto das políticas
identitárias quanto das abstrações “desenraizadoras” do
Capital), graça e materialismo se combinam num tipo de discurso que,
à luz de um princípio universal e mais abrangente de verdade, não
apenas relativiza todas as diferenças étnico culturais,
transcendendo-as (isto é, tomando-as como “adiáforas”), como
também institui um tipo de “subjetividade” resistente aos
processos contemporâneos de tradicionalização e
“re-tradicionalização”. Num sentido político teológico
bastante específico, a “fidelidade messiânica” ultrapassa,
aqui, o discurso político liberal da tolerância, podendo ser
encontrada entre os atores sociais e políticos mais improváveis.
* Robson Souza é Teólogo (STPRJ), Licenciado em Ciências Sociais (UMESP), Mestre em Ciências da Religião (UMESP) e Doutor em Serviço Social (UFRJ).
Referências
Referências
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BULTMANN,
Rudolf. Crer e Compreender: ensaios selecionados, edição revista
e ampliada. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
EAGLETON,
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ŽIŽEK,
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Relógio D’Água Editores, 2008.
___________. em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2015.
___________. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
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