Em artigo recente, propomos uma articulação entre o pensamento de João Calvino e as reflexões contemporâneas de Giorgio Agamben, com foco na convergência entre as noções de liberdade e uso, tal como desenvolvidas no contexto da teologia reformada e na filosofia política contemporânea. Ambos os pensadores, em contextos históricos e teóricos distintos, abordam a relação entre o indivíduo, o mundo e as coisas, destacando a centralidade de uma ética do uso livre que desafia a lógica produtivista e utilitarista que organiza a vida moderna. Ao explorarmos essa convergência, buscamos iluminar as contribuições de Calvino para a construção de uma ética da liberdade que se manifesta no uso das coisas indiferentes (adiaphora), ao passo que, em Agamben, encontramos uma radicalização dessa mesma lógica em sua teoria da inoperosidade.
1. O Uso das ἀδιάφορα em Calvino: Liberdade e Responsabilidade
João Calvino, reformador franco-genebrino do século XVI, legou à posteridade um modelo ético teológico no qual a noção de "liberdade cristã" assume papel central. Em sua obra magna, As Institutas da Religião Cristã (1536), Calvino afirma que o crente, libertado pela graça divina, não está mais sob o jugo da condenação que as ordenanças humanas ou a superstição religiosa impõem. Isso confere ao cristão uma liberdade profunda, que se desdobra em dois sentidos: primeiro, na libertação da alma para obedecer voluntariamente à lei de Deus, e segundo, na liberdade de usar (ou não usar) as coisas do mundo que, em si mesmas, são moralmente neutras — as chamadas adiaphora (ἀδιάφορα).
Calvino exemplifica essa noção com práticas cotidianas como alimentação, vestuário ou a observância de dias sagrados. Essas práticas são indiferentes no sentido de que não são essenciais à salvação (ou à moralidade cristã); o crente é livre para escolher como se relacionar com elas, desde que o uso dessas coisas seja orientado pela caridade e não cause ofensa ao próximo. Essa liberdade, portanto, não implica em uma indiferença moral ou um relativismo, mas está vinculada a uma ética da responsabilidade comunitária e da consciência perante Deus.
No entanto, essa liberdade de uso, conforme entendida por Calvino, possui também um caráter profundamente espiritual. Ao argumentar que as adiaphora são indiferentes, o reformador desloca o foco da prática religiosa de uma obsessão com as aparências exteriores para uma vivência mais interiorizada da fé, em que a liberdade cristã é, acima de tudo, uma liberdade de viver em plena comunhão com Deus, sem que a vida esteja sobrecarregada por rituais desnecessários ou tradições humanas vazias.
2. Agamben e a Inoperosidade: Suspensão da Função e do Trabalho
Por outro lado, no pensamento de Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, encontramos uma ressignificação radical dessa noção de uso. Agamben, em sua crítica ao biopoder e às formas contemporâneas de governo que subordinam a vida humana à lógica da produção, do controle e da eficiência, introduz a ideia de inoperosità (inoperosidade). Esse conceito se refere não à ociosidade ou à passividade, mas à suspensão de finalidades instrumentais e produtivas que dominam o fazer humano.
Em suas obras, Agamben explora a relação entre o poder e o trabalho, argumentando que as sociedades modernas estão organizadas em torno de dispositivos que tornam a vida humana operativa — isto é, reduzida a sua funcionalidade produtiva. A inoperosidade, nesse contexto, é uma prática de libertação que desativa essas exigências e abre espaço para um uso do mundo que não é regido pela utilidade ou pela produtividade. Agamben invoca, a esse respeito, o pensamento de São Paulo, especialmente sua teologia messiânica, segundo a qual as estruturas sociais e identitárias — como a dicotomia entre escravo e livre, judeu e grego — são desativadas sob o horizonte escatológico do cristianismo, operando “como se não” (ὡς μὴ: hōs mē) — 1Co 7.20-31). Isso significa que essas categorias ainda existem, mas sua força normativa é suspensa, permitindo uma forma de vida que está além das identidades fixas e das funções sociais predeterminadas.
A noção agambeniana de “uso livre e gratuito do tempo e do mundo” emerge como uma crítica à instrumentalização capitalista do trabalho e da vida humana. Para Agamben, o uso não deve ser compreendido em termos de posse ou apropriação, mas como uma relação livre e aberta com as coisas e com o tempo, uma relação que não se submete à exigência da produção incessante ou da funcionalidade. Nesse sentido, o conceito de inoperosidade propõe um modo de vida que suspende a lógica capitalista e abre espaço para novas formas de habitar o mundo, formas que são livres precisamente porque não estão subordinadas à necessidade ou ao dever de produzir.
Imagem: DALL-E
3. Convergências entre Calvino e Agamben: Liberdade e Ética do Uso
Apesar das diferenças históricas e teóricas entre Calvino e Agamben, podemos traçar um fio condutor entre seus pensamentos no que tange à relação entre liberdade e uso. Para Calvino, a liberdade cristã se expressa no uso das adiaphora de maneira descomprometida com as imposições exteriores, mas sempre vinculada ao amor ao próximo e à reverência ao Sagrado. Essa liberdade não nega o mundo, mas o utiliza de maneira livre e consciente, sem subjugação aos ritos ou tradições humanas. Calvino, portanto, oferece uma visão de liberdade que, embora enraizada na teologia reformada, desafia as normatividades religiosas de sua época ao enfatizar o papel da consciência individual e da caridade como critérios fundamentais para o uso das coisas mundanas.
Por sua vez, Agamben propõe uma radicalização dessa noção de uso, ao sugerir que o uso do mundo deve ser completamente desvinculado da lógica da posse e da produção. Em sua concepção, o tempo e o mundo são usados gratuitamente, sem a necessidade de justificar esse uso por meio de finalidades produtivas ou de apropriação. A inoperosità é, assim, um conceito que abre a possibilidade de um uso mais livre do mundo, uma forma de viver que está além das pressões do biopoder e do trabalho capitalista. Nesse ponto, Agamben aproxima-se de Calvino ao propor uma ética do uso que desafia as estruturas normativas da modernidade.
4. Uso Livre, Inoperosidade e Graça
Tanto em Calvino quanto em Agamben, a noção de uso está profundamente associada à ideia de graça. Para Calvino, a graça divina é gratuita e livre, dada aos seres humanos sem mérito ou esforço. Essa graça se manifesta na vida cotidiana por meio do uso das adiaphora, que são presentes de Deus aos homens, oferecidos para seu usufruto, mas sem a obrigação de possuí-los ou dominá-los. Em Agamben, essa mesma gratuidade emerge na forma de uma relação com o mundo que não exige propriedade, posse ou produção, mas se baseia no uso livre e aberto das coisas, uma forma de vida que se realiza na suspensão das obrigações e dos deveres produtivos.
A articulação entre esses dois pensadores oferece, portanto, uma rica contribuição para o pensamento contemporâneo sobre a liberdade e o uso. Ao pensar o uso livre das coisas do mundo como uma prática ética, tanto Calvino quanto Agamben nos convidam a repensar a relação entre o ser humano e o mundo de forma não instrumental, mas orientada por uma ética da gratuidade e da liberdade. Em tempos marcados pela aceleração do trabalho e pela mercantilização de todos os aspectos da vida, a noção de um uso gratuito do tempo e do mundo surge como uma poderosa crítica às estruturas contemporâneas de poder e como uma proposta de libertação radical.
Para saber mais:
SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281
Nenhum comentário:
Postar um comentário