O debate sobre a intersecção entre religião, esfera pública e política no Brasil contemporâneo revela uma complexidade rica, passível de ser abordada a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, especialmente por meio da teoria do discurso e da análise dos discursos que configuram as relações entre religião, sociedade e poder. Em três intervenções teóricas recentes, são traçados percursos que oferecem uma leitura crítica das dinâmicas entre religião e política no Brasil, com especial ênfase no papel do calvinismo (e suas ressignificações no contexto contemporâneo).
A primeira contribuição, intitulada "A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada", problematiza as tensões internas da formação discursiva calvinista no Brasil, utilizando conceitos chave do pós-estruturalismo, em especial a teoria do discurso e o conceito de articulação hegemônica, proposto por Ernesto Laclau. O núcleo da análise concentra-se na forma como o calvinismo, em sua vertente mais conservadora, constrói uma lógica autorreferencial que resiste a movimentos ecumênicos e progressistas. Nesse ponto, destaca-se o desafio de conciliar essa tradição religiosa com as demandas contemporâneas por direitos humanos (e por uma abertura teológica que transcenda sua fixidez dogmática).
O conceito de articulação hegemônica permite explorar como a formação discursiva calvinista é moldada por lógicas de poder que estruturam a hegemonia religiosa, criando antagonismos que separam o "nós" dos "outros". Dentro desse contexto, a tradição reformada tem sido apropriada por grupos que a utilizam como um mecanismo de resistência à secularização e às demandas por justiça social e equidade de gênero, erigindo barreiras que dificultam a adaptação do calvinismo às questões contemporâneas de reconhecimento. A cristalização do calvinismo em uma forma rígida e autorreferencial no Brasil levanta questionamentos sobre a possibilidade de sua rearticulação a partir de uma perspectiva mais inclusiva e pluralista.
Essa primeira intervenção, ao questionar a tradição autorreferencial do calvinismo, advoga por uma crítica imanente que resgate os elementos dinâmicos e criativos que caracterizaram a Reforma Protestante. Inclusive, essa crítica sugere uma articulação mais pluralista e menos dogmática dessa tradição no contexto religioso brasileiro, o que implicaria uma abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, superando a lógica hegemônica que atualmente predomina nos discursos conservadores no Brasil.
Na segunda intervenção, "Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista", os autores expandem o escopo da análise para examinar a relação entre o fundamentalismo protestante e o conservadorismo no Brasil contemporâneo. A perspectiva pós-estruturalista é utilizada aqui para problematizar a estabilidade conceitual de termos como "fundamentalismo" e "conservadorismo", sugerindo que tais conceitos são contingentes e dependentes das formações discursivas que os produzem. Nesse sentido, o fundamentalismo protestante, sobretudo em sua vertente neocalvinista, é compreendido como uma construção discursiva que responde a antagonismos políticos e sociais.
Um ponto crucial dessa análise é a compreensão de que a democracia brasileira, longe de constituir um espaço de consenso, configura-se como um campo de disputas hegemônicas constantes, no qual atores religiosos conservadores buscam moldar a política nacional conforme seus valores teológicos. Assim, tanto o fundamentalismo protestante quanto o conservadorismo emergem como construções discursivas contingentes que se rearticulam em diferentes contextos históricos, desafiando interpretações fixas ou universalizantes sobre o papel da religião na esfera pública.
A terceira intervenção, "Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea", aprofunda a análise ao explorar a genealogia da ética calvinista e sua influência sobre o neocalvinismo contemporâneo no Brasil. A partir de uma perspectiva pós-estruturalista, a ética calvinista é compreendida como uma formação discursiva que, ao se desenvolver no Brasil, foi ressignificada por setores dessa tradição para legitimar práticas políticas excludentes e autoritárias. O conceito de "cosmovisão calvinista" surge como um dispositivo discursivo em termos foucaultianos, articulando uma identidade conservadora, delimitando fronteiras entre os "eleitos" e os "excluídos", e promovendo uma visão de mundo que nega a pluralidade e a diferença.
Ao recorrer à teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, os autores demonstram como o neocalvinismo brasileiro opera, em contextos estratégicos, como uma formação discursiva que articula antagonismos políticos e religiosos. Esse movimento é marcado por uma lógica hegemônica que busca consolidar sua influência no espaço público, legitimando, por vezes, práticas de exclusão cultural e moral. A genealogia do neocalvinismo no Brasil revela sua combinação entre pietismo individualista e conservadorismo político, moldando uma ética alinhada aos interesses neoliberais, por um lado, e promovendo uma visão rígida da moralidade pública, por outro.
A inclusão da teologia política de João Calvino no debate traz uma ambivalência interessante: enquanto Calvino equilibrava a submissão à autoridade secular com a possibilidade de resistência em contextos de opressão, o neocalvinismo contemporâneo no Brasil, sobretudo no contexto de suas vertentes menos dialogais, tem reconfigurado essas ideias para justificar práticas conservadoras que frequentemente se distanciam das preocupações progressistas da teologia calvinista, como justiça social e equidade de gênero. Ademais, o diálogo com a teoria de Giorgio Agamben permite uma crítica à rigidez do neocalvinismo brasileiro, ao destacar como a ética calvinista contemporânea promovida por esses grupos ignora a abertura ao imprevisível e à contingência, elementos centrais da vocação messiânica (e presentes em alguns aspectos da própria teologia de Calvino).
Em síntese, essas três intervenções sobre a religião pública no Brasil oferecem uma análise detalhada e crítica das formas pelas quais setores do calvinismo (e do neocalvinismo) se articulam no campo político-religioso brasileiro, promovendo uma visão conservadora que molda o espaço público de maneira excludente. Ao adotar uma abordagem pós-estruturalista, os autores revelam as dinâmicas de poder subjacentes a essas articulações discursivas, demonstrando como a religião pode ser mobilizada como um instrumento de controle político e cultural no Brasil contemporâneo.
Essas reflexões apontam para a necessidade de rearticular o calvinismo e outras tradições religiosas de modo a promover uma cultura de inclusão, pluralismo e justiça social, desafiando as lógicas conservadoras que têm dominado a política religiosa no Brasil.
Para saber mais:
SOUZA, Robson da Costa de. (2020), “A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada”. Reflexão, v. 45, e204792. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4792 .
SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2022), “Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista”. Religião e Sociedade, v. 42, n. 1, p. 37-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872021v42n1cap02 .
SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281
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