A leitura de “Como (não) Ser Secular: Lendo Charles Taylor” (2021), de James K. A. Smith, filósofo de tradição reformada, oferece um ponto de partida crucial para revisitar e reinterpretar a noção de secularidade, tanto em contextos globais quanto no Brasil. A obra de Smith é uma introdução acessível à monumental análise de Charles Taylor, apresentada em "Uma Era Secular" (2010). Smith não apenas sintetiza os complexos conceitos desenvolvidos por Taylor, mas também explora suas implicações práticas, especialmente para o debate sobre o lugar da religião no mundo contemporâneo.
Charles Taylor delineia três diferentes sentidos de secularidade, cada um representando um deslizamento de significados que reformula a compreensão do fenômeno ao longo da modernidade. O primeiro sentido, a secularidade 1, refere-se ao aspecto institucional de pluralização, com a consequente separação entre Igreja e Estado. No segundo, a secularidade 2, há uma ênfase na diminuição da prática religiosa e na secularização da sociedade, com o advento daquele espaço pretensamente neutro a se constituir na modernidade, em oposição ao religioso.
É no terceiro sentido, a secularidade 3, que Taylor apresenta sua visão mais complexa, ao argumentar que a secularidade moderna se caracteriza pela contestabilidade universal das crenças. Neste contexto, tanto a crença religiosa quanto a descrença são opções igualmente viáveis, criando um campo plural onde a religião não desaparece, mas é reconfigurada. Essa pluralidade implica uma contínua negociação de significados e valores, na qual o transcendente não é mais um horizonte incontestável, mas apenas um entre muitos significados possíveis. Esse conceito pode ser interpretado, até certo ponto, como próximo de uma abordagem mais pós-estrutural, que vê os significados constantemente rearticulados a novos contextos.
No entanto, é importante destacar que, ao contrário dos pós-estruturalistas, que enfatizam uma fluidez radical de todos os significados e a ausência de estruturas fixas, Taylor não abandona completamente a ideia de que existem estruturas culturais (e de plausibilidade) que delimitam as condições em que as crenças religiosas e seculares operam. Para Taylor, a contestabilidade ocorre dentro de certos quadros culturais, e a fluidez dos significados religiosos está sempre em relação com essas estruturas. Embora a secularidade 3 reflita uma rearticulação contínua das crenças, o conceito não implica uma desconstrução radical em termos derridianos.
Com base nessa leitura de Taylor via Smith, e feita essa ressalva, revisito os conceitos que explorei em minha obra Gênero e Ideologia entre Evangélicos Brasileiros (2019), particularmente no primeiro capítulo, que trata da modernidade, protestantismo e desencantamento do mundo. Ao colocar essas duas perspectivas em diálogo, identifico pontos de convergência, divergência e lacunas teóricas que merecem ser exploradas.
1. Secularidade como Condição Moderna
A análise de Charles Taylor, interpretada por James K. A. Smith, proporciona um novo ângulo para repensar minha compreensão da secularidade enquanto fenômeno moderno. No primeiro capítulo de minha obra discuto como o protestantismo reformado, com sua ênfase na ética do trabalho e na racionalização da vida cotidiana, contribuiu para o que Max Weber chamou de desencantamento do mundo. Essa interpretação weberiana de secularização encontra eco na leitura de Taylor, que também identifica o protestantismo como um motor essencial da modernidade secular ao transformar a relação dos indivíduos com o sagrado.
No entanto, Taylor vai além ao sugerir que a secularidade moderna é mais complexa do que a simples retirada da religião da esfera pública. Ele sugere que o secular não significa o fim da religião, mas uma mudança nas condições de crença, em que o transcendente é uma escolha, e não mais um horizonte incontestável. Esse deslizamento de sentido é um dos pontos em que a leitura de Taylor se distingue da análise apresentada naquele capítulo. Na minha obra, falo da secularidade em termos institucionais e discursivos, enquanto em Taylor, via Smith, essa compreensão se desloca para a condição existencial da crença na modernidade.
Além disso, a noção de secularidade de Taylor, especialmente no que diz respeito à secularidade 3, reflete o que no pós-estruturalismo poderia ser descrito como um campo de significantes flutuantes. A secularidade não é uma categoria estável; ela desliza entre diferentes entendimentos – de uma separação estrita entre religião e esfera pública para uma contestação contínua de significados, em que o sagrado, mesmo marginalizado, ainda está presente como uma possibilidade.
2. Pluralidade e Contestabilidade
A ideia de pluralidade é central tanto para Taylor quanto para a minha análise do protestantismo no Brasil. Em Taylor, a secularidade 3 implica uma sociedade onde as opções de crença são múltiplas e onde todas as posições – seja de crença religiosa ou de descrença – são contestáveis. No contexto brasileiro, como discuto em meu livro, essa pluralidade se manifesta na proliferação de denominações evangélicas e pentecostais, que se adaptam às condições da modernidade e coexistem em um espaço onde a secularidade não eliminou a religião, mas a transformou.
A convergência entre minha análise e a de Taylor/Smith é clara aqui: ambos reconhecemos que a secularidade contemporânea é caracterizada por uma coexistência de crenças, onde a religião evangélica no Brasil não apenas persiste, mas se reconfigura. Contudo, minha abordagem diferencia-se na ênfase sobre as dinâmicas de poder envolvidas nessa pluralidade. Enquanto Taylor e Smith exploram a contestabilidade das crenças de forma mais concentrada nas implicações culturais e existenciais, eu estou mais interessado em como essas dinâmicas de pluralidade e secularização se desdobram em disputas de poder dentro das instituições religiosas e na sociedade brasileira.
Além das transformações institucionais e das dinâmicas de poder, o impacto da secularidade moderna também se manifesta de forma significativa na individualização das crenças e na crescente autonomia dos sujeitos religiosos. No contexto do protestantismo brasileiro, em particular, essa individualização leva os fiéis a reinterpretarem e adaptarem as doutrinas religiosas a partir de suas experiências e perspectivas pessoais, refletindo um processo de subjetivação marcado pela secularização. Esse fenômeno, que pode ser observado tanto em práticas religiosas personalizadas quanto em casos de desobediência pontual às normas institucionais, demonstra como a secularidade 3 de Taylor – com sua característica de contestabilidade universal – opera também no nível individual. A fé, antes rigidamente institucional, passa a ser negociada subjetivamente, onde o crente exerce maior autonomia em relação à imposição das normas religiosas, o que revela a coexistência de uma pluralidade de interpretações. Essa negociação pessoal da crença, por um lado, reforça a pluralidade inerente à secularidade moderna e, por outro, exemplifica o modo como o transcendente, ainda que uma escolha, é continuamente ressignificado dentro da vida cotidiana, sem que necessariamente se desvincule da tradição religiosa. Assim, a subjetivação e a autonomia tornam-se dimensões fundamentais da experiência religiosa em um mundo onde a crença e a descrença coexistem e se contestam mutuamente.
Essa divergência reflete uma leitura mais pós-estrutural da pluralidade: enquanto Taylor e Smith observam a secularidade em termos de uma pluralidade cultural, eu vejo essa pluralidade também como uma série de práticas discursivas que estão em constante negociação de significados, especialmente em relação às questões de gênero, poder e identidade dentro das igrejas evangélicas brasileiras.
3. O Mal-estar da Imanência
Um dos pontos de maior divergência entre minha abordagem e a de Taylor/Smith está na questão do mal-estar da imanência. Taylor sugere que, em um mundo onde a transcendência é uma escolha (e não mais um dado incontestável), há um sentimento de incompletude, um desejo por algo além da imanência pura. Esse mal-estar existencial, segundo Taylor, marca a secularidade moderna, mesmo para aqueles que não professam crenças religiosas.
3. O Mal-estar da Imanência
Um dos pontos de maior divergência entre minha abordagem e a de Taylor/Smith está na questão do mal-estar da imanência. Taylor sugere que, em um mundo onde a transcendência é uma escolha (e não mais um dado incontestável), há um sentimento de incompletude, um desejo por algo além da imanência pura. Esse mal-estar existencial, segundo Taylor, marca a secularidade moderna, mesmo para aqueles que não professam crenças religiosas.
Minha obra, por outro lado, não enfatiza tanto essa dimensão subjetiva da secularidade. Ao tratar da secularidade no contexto brasileiro, destaco mais as transformações institucionais e as relações de poder entre os agentes religiosos e a sociedade, com especial atenção às questões de gênero. No entanto, a noção de mal-estar da imanência oferece uma camada adicional que poderia ser incorporada à minha análise. O desconforto existencial que Taylor descreve poderia ser uma chave para entender as tensões internas nas comunidades evangélicas brasileiras, onde a fé religiosa coexiste com as pressões da modernidade secular.
Esse deslizamento de sentido de uma secularidade institucional para uma condição existencial e subjetiva é um ponto que Taylor e Smith trazem à tona e que poderia enriquecer minha abordagem ao considerar a subjetividade religiosa e os desafios existenciais que acompanham a vida secular moderna.
4. Secularidade e Poder
Um aspecto em que minha análise diverge significativamente da leitura de Taylor por Smith é no tratamento das relações de poder dentro da secularidade. Enquanto Taylor foca principalmente nas transformações culturais e existenciais que a secularidade implica, minha obra dá maior ênfase ao campo de poder que emerge da interação entre a religião e a modernidade no Brasil.
No contexto brasileiro, o protestantismo evangélico se insere nas disputas políticas e sociais, especialmente em relação às políticas de gênero e direitos humanos. A secularidade, neste contexto, vai além de uma questão de contestabilidade existencial; ela se configura como uma arena de disputas simbólicas e políticas, onde as instituições religiosas, ao mesmo tempo que se adaptam às condições seculares, resistem às pressões de modernização, particularmente em temas relacionados ao controle dos corpos femininos e à moralidade sexual.
Essa abordagem difere da leitura de Smith, que se concentra mais nos dilemas culturais e existenciais da secularidade, sem necessariamente abordar as implicações políticas e sociais desse processo de forma aprofundada. Ao trazer à tona as questões de poder, minha obra oferece uma contribuição crítica à teoria da secularidade, apontando para a necessidade de compreender como as transformações culturais afetam as dinâmicas de dominação e resistência dentro das comunidades religiosas.
5. Protestantismo e Secularidade
Por fim, tanto minha obra quanto a leitura de Taylor por Smith reconhecem o papel central do protestantismo no desenvolvimento da secularidade moderna. O protestantismo, com sua ênfase na racionalização e no desencantamento, desempenhou um papel essencial na promoção de uma ética que contribuiu para a separação entre o sagrado e o profano.
No entanto, em minha análise do protestantismo brasileiro, observo que o movimento evangélico, especialmente em suas formas pentecostais, também atua como uma força contestatória, resistindo a certos aspectos da modernidade secular. Ao mesmo tempo que promove uma ética modernizadora, o protestantismo brasileiro resiste às pressões seculares em áreas como moralidade sexual e equidade de gênero. Essa dualidade, presente tanto em minha obra quanto na leitura de Taylor, reflete a complexidade das interações entre religião e secularidade.
A leitura de Charles Taylor, mediada por James K. A. Smith, oferece uma rica perspectiva para reinterpretar a secularidade em contextos globais e locais, especialmente no Brasil. Embora haja convergências significativas, como a ênfase na pluralidade e contestabilidade das crenças, surgem também divergências importantes, especialmente em relação à dimensão existencial da secularidade e às relações de poder. Os deslizamentos de sentido presentes na obra de Taylor facilitam a compreensão da secularidade moderna como um campo de constante disputa de significados. Essa disputa não se dá apenas no nível institucional ou político, mas também no campo existencial, onde a crença e a descrença são continuamente negociadas. Minha análise das dinâmicas de poder no contexto do protestantismo brasileiro dialoga com essa noção de uma secularidade em fluxo, mas traz à tona dimensões que, na leitura de Taylor por Smith, poderiam ser mais exploradas, especialmente no que tange às implicações políticas e sociais.
Ao revisitar minhas análises à luz de Taylor, sou levado a ampliar minha visão sobre a secularidade como uma cadeia de significantes instável, onde o poder, a subjetividade e a crença são continuamente reconfigurados no contexto da modernidade. Essa perspectiva oferece novas formas de pensar tanto a religião quanto o secularismo no Brasil contemporâneo, permitindo uma leitura mais rica e complexa das transformações em curso no campo religioso e social.
Referências
SMITH, James K. A. Como (não) Ser Secular: Lendo Charles Taylor. São Paulo: Monergismo, 2021.
TAYLOR, Charles. Uma Era Secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.
SMITH, James K. A. Como (não) Ser Secular: Lendo Charles Taylor. São Paulo: Monergismo, 2021.
TAYLOR, Charles. Uma Era Secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.
SOUZA, Robson. Gênero e Ideologia entre Evangélicos Brasileiros. São Paulo: Intermeios, 2019.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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