“A inexistência do grande Outro indica que cada edifício moral e/ou ético tem de ser fundamentado em um ato abissal que é, no sentido mais radical que se possa imaginar, político. A política é o verdadeiro espaço em que, sem nenhuma garantia externa, as decisões éticas são tomadas e negociadas.” Slavoj Žižek
Em Menos que Nada, Slavoj Žižek, no capítulo “A Suspensão Política do Ético”, explora a intersecção entre ética, política e teologia, colocando em questão as fundações transcendentes que tradicionalmente sustentam a moralidade e a justiça. À primeira vista, a introdução de elementos teológicos em uma crítica voltada para a desmistificação da ética transcendental parece paradoxal. No entanto, é justamente essa dialética entre a teologia cristã e a desconstrução da transcendência ética que permite a Žižek propor uma crítica mais profunda ao modo como a ética opera dentro das dinâmicas políticas contemporâneas. O movimento dialético aqui é central: ao utilizar a teologia cristã – especificamente o evento da crucificação – Žižek revela o vazio inerente às concepções tradicionais de transcendência, demonstrando que a ética, em sua forma universal e normativa, é sempre já um campo de disputas políticas e sociais.
O argumento central de Žižek, como indica o título do capítulo, reside na noção de que o ético deve ser suspenso para que a verdadeira política possa emergir. Esse gesto de suspensão, entretanto, não implica a eliminação da ética, mas sim sua reconceitualização como algo inerentemente político. A ética, tal como conhecida no pensamento ocidental, tem sido tradicionalmente fundamentada em princípios transcendentes, sejam eles de natureza teológica, racional ou humanista. Esses princípios, ao oferecerem uma justificativa universal para as decisões morais e políticas, têm sido vistos como garantias da justeza e da correção. No entanto, para Žižek, a política não pode ser separada da ética de modo que esta última funcione como uma instância normativa acima das contingências políticas. Ao contrário, a ética é sempre já política, no sentido de que as decisões éticas emergem de lutas e antagonismos sociais, e não de um princípio transcendental que garanta sua justeza. A política, assim, não é um campo onde a ética se aplica; é o espaço onde as noções de certo e errado, justiça e injustiça, são continuamente negociadas e reconfiguradas.
A crítica à ética transcendental em Žižek não apenas desmantela a ideia de que a moralidade pode ser garantida por um “grande Outro” – seja Deus, a razão universal, ou os direitos humanos –, mas também sugere que a própria estrutura simbólica da ética tradicional é sustentada por uma falta constitutiva. Para sustentar esse ponto, Žižek recorre à psicanálise lacaniana, que desempenha um papel fundamental em sua crítica. Lacan afirma que o “grande Outro” – a instância simbólica que supostamente oferece uma garantia para a coesão do mundo moral e social – é uma ficção necessária. Ele sustenta nossas crenças e estruturas simbólicas, mas, como Žižek enfatiza, sua ausência estrutural revela a impossibilidade de qualquer fundamento último para a moralidade. Dessa forma, a transcendência ética é uma ilusão que mascara a contingência e a falta que permeiam o campo político.
É nesse ponto que a teologia cristã, e particularmente o evento da crucificação, se torna um componente essencial da argumentação de Žižek. Para ele, a crucificação de Cristo é o momento em que a transcendência divina se dissolve e revela sua ausência. Quando Cristo morre na cruz, o que se manifesta não é a reafirmação de uma ordem moral transcendental, mas sim o colapso dessa ordem. A morte de Deus, como Žižek interpreta, é a morte do grande Outro, a ordem simbólica que deveria garantir a moralidade e a justiça. Essa interpretação radical do cristianismo, profundamente influenciada por Hegel, expõe a lacuna constitutiva no coração da transcendência: ao invés de sustentar uma ética transcendental, o cristianismo revela a ausência de tal sustento.
Ao trazer essa perspectiva teológica para o centro de sua crítica, Žižek confronta diretamente as tentativas de fundamentar a política contemporânea em princípios universais, como os direitos humanos. Esses princípios, argumenta ele, funcionam como uma espécie de grande Outro no liberalismo contemporâneo, oferecendo a ilusão de uma garantia moral para as decisões políticas que, na verdade, estão enraizadas em antagonismos sociais e lutas de poder. Essa crítica ao liberalismo se alinha à denúncia de Žižek sobre a ideologia: a ideologia não apenas impõe crenças, mas mascara a ausência de um fundamento último ao sustentar a ilusão de uma ordem simbólica coerente. No liberalismo, essa ordem é representada pelos princípios transcendentes de direitos humanos e justiça universal, que pretendem legitimar o campo político ao obscurecer os verdadeiros antagonismos sociais.
Imagem: DALL-E
É aqui que entra a discussão sobre a biopolítica, um conceito que se articula profundamente com a crítica de Žižek à ética transcendental e à ideologia contemporânea. Inspirado em Giorgio Agamben, Žižek explora como a biopolítica contemporânea transforma a vida em objeto de controle, gerida por mecanismos que visam regular e administrar a “vida nua” dos indivíduos. A biopolítica reflete uma mudança fundamental no exercício do poder: ao invés de voltada para constituir sujeitos politicamente engajados, a biopolítica reduz os indivíduos a meros objetos de regulação, sujeitos a dispositivos de vigilância e controle. Esse processo de dessubjetivação, segundo Žižek, está diretamente relacionado ao colapso da transcendência ética: sem um grande Outro para garantir a coesão social e moral, o campo político se transforma em um espaço de gerenciamento da vida, e não de engajamento ético-político.
Essa administração da vida humana através da biopolítica reforça a crítica de Žižek ao liberalismo contemporâneo. Ele argumenta que os direitos humanos, ao serem elevados a um princípio universal e transcendente, operam como uma justificativa para o controle biopolítico. Em vez de oferecer uma verdadeira emancipação política, os direitos humanos servem como um instrumento ideológico que legitima a regulação da vida em nome da proteção e da segurança. Assim, a biopolítica é uma extensão lógica da crítica de Žižek à ética transcendental, pois revela como o campo político se transforma em um espaço de controle e regulação da vida, mascarado por uma ética universalista.
A crítica de Žižek ao colapso da transcendência ética não implica uma transição automática para a biopolítica como se esta fosse uma consequência direta e inevitável desse colapso. Ao contrário, o surgimento da biopolítica deve ser entendido como uma resposta contingente, um esforço de reorganização do campo político diante do vazio deixado pela ausência de um grande Outro, a instância simbólica que outrora oferecia garantias morais e políticas. Quando a transcendência ética – representada por princípios universais como Deus, a razão ou os direitos humanos – entra em colapso, o poder político se vê na necessidade de buscar novas formas de legitimação e controle. Nesse cenário, a biopolítica emerge como uma tentativa de preencher esse vazio, não por meio de uma nova ética, mas através de mecanismos técnicos e administrativos que reduzem a vida à sua dimensão biológica e despolitizada. Em vez de engajar-se com os conflitos éticos e políticos de forma radical, o poder biopolítico responde com uma forma de governança que se concentra na regulação e na gestão da vida.
Assim, a biopolítica não é uma consequência natural do colapso da transcendência ética, mas uma estratégia de poder que responde a esse colapso ao desviar o foco do engajamento político para o gerenciamento técnico da vida. Sem a autoridade do grande Outro para fornecer uma coesão simbólica, a política contemporânea abandona a esfera do ético-político e se reorganiza em torno da administração da “vida nua”. Essa forma de poder, como Žižek aponta, não oferece uma verdadeira solução ética, mas apenas uma falsa estabilidade, mascarando a ausência de fundamentos transcendentes através de dispositivos de controle e vigilância. A biopolítica, portanto, representa um desvio da política radical: ela não lida com a negatividade e a contingência que caracterizam o real, mas tenta encobrir essas dimensões com uma lógica de controle que opera sob o pretexto de segurança e bem-estar. Žižek, ao criticar essa forma de poder, revela a necessidade de superar a biopolítica não pela volta a uma transcendência ética, mas por um reconhecimento da negatividade como condição para uma política verdadeiramente emancipatória.
Em suma, ao incorporar a biopolítica na crítica à ética transcendental, Žižek expande sua análise sobre como a política contemporânea não apenas regula a vida, mas também despolitiza os sujeitos. A biopolítica não apenas administra a vida, mas a reduz a um objeto passivo de controle, dissolvendo a agência e a responsabilidade ético-política dos indivíduos. Nesse sentido, a verdadeira política, para Žižek, não pode ser baseada em princípios éticos transcendentes que apenas reforçam a lógica biopolítica. Ao contrário, ela deve confrontar a negatividade constitutiva do real – a ausência de garantias transcendentes – e abraçar a contingência e o antagonismo inerentes ao campo político.
A ontologia da negatividade, central no pensamento de Žižek, é aqui fundamental. Para Žižek, a realidade é marcada por uma ausência estrutural, uma negatividade que permeia todas as tentativas de simbolização. No campo da política e da ética, essa negatividade se manifesta na falta de um fundamento último que possa garantir a coesão simbólica. A biopolítica tenta encobrir essa falta ao impor uma ordem regulatória sobre a vida, mas essa tentativa é sempre já falha, pois a negatividade não pode ser neutralizada. A verdadeira política, para Žižek, é aquela que reconhece essa falta e age a partir dela, em vez de buscar encobri-la com princípios universais.
A suspensão política do ético, assim, é também a suspensão da lógica biopolítica que reduz os sujeitos a objetos de regulação. A verdadeira política emerge do confronto com a negatividade do real, com a ausência de garantias transcendentes que possam legitimar as decisões éticas e políticas. A ética, para Žižek, não pode ser algo imposto de fora da política; ela deve emergir das lutas concretas e dos antagonismos que constituem o campo político. É nesse espaço de indeterminação e conflito que a política pode ser radicalmente repensada.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. A suspensão política do ético. In: ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 597-646.
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