terça-feira, 22 de outubro de 2024

As linhas de fuga do discurso teológico

O projeto Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, insere-se em uma tradição filosófica que busca romper com os modelos arborescentes e hierárquicos da epistemologia ocidental. Esta obra, ao lado de O Anti-Édipo, compõe a monumental crítica ao capitalismo, explorando como as formas de controle social contemporâneo, particularmente em relação ao desejo e à subjetividade, se estabelecem através de redes de poder e agenciamentos coletivos. Em Mil Platôs, a metáfora rizomática substitui a lógica linear da árvore do conhecimento, propondo uma forma plural e descentralizada de pensar, onde a multiplicidade é o princípio organizador, em oposição às hierarquias estruturais. O rizoma se apresenta como um conceito que oferece uma alternativa ao pensamento tradicional, capaz de abrigar e incorporar fluxos de poder, desejo e conhecimento em constante movimento, sem um ponto fixo de origem ou um destino predeterminado.

A ideia de rizoma, ao desconstruir os modelos de pensamento fixos, também nos apresenta uma nova concepção de linguagem, a qual Deleuze e Guattari interpretam não como um sistema de signos destinados à comunicação ou à representação da realidade, mas como um dispositivo normativo que organiza as relações sociais e molda as subjetividades. A linguagem, no pensamento deleuziano, se configura como uma força performativa que atua diretamente sobre o real, produzindo efeitos materiais. Esse aspecto é particularmente evidente no conceito de “palavra de ordem”, um dos elementos centrais de sua análise. Diferentemente da visão estruturalista da linguagem como um conjunto de regras estáveis para a produção de significados, Deleuze e Guattari sustentam que a linguagem é um agente normativo, cuja principal função é regular os comportamentos, organizando as práticas discursivas e os agenciamentos de poder. A palavra de ordem representa, assim, um comando social que não apenas descreve, mas que produz subjetividades, ao mesmo tempo em que se torna um mecanismo de captura do desejo e de imposição de normas.

Entretanto, ao mesmo tempo em que a linguagem se apresenta como dispositivo de controle, ela também contém uma potencialidade criativa que abre caminho para novas subjetividades. Essa ambiguidade da linguagem, enquanto força de normatização e criação, está no cerne do projeto rizomático de Deleuze e Guattari. As linhas de fuga, conceito-chave que atravessa Mil Platôs, remetem à possibilidade de subversão e de reinvenção dentro dos próprios agenciamentos de poder. As linhas de fuga são as forças que rompem com a estrutura estabelecida, criando novos espaços para a emergência de subjetividades alternativas. No entanto, a relação entre captura e emancipação é sempre provisória, pois as mesmas linhas de fuga que rompem com os sistemas de controle podem ser reterritorializadas, sendo novamente incorporadas às estruturas de poder que tentavam subverter.

Aqui se encontra um dos pontos críticos que Slavoj Žižek levanta em sua leitura do projeto deleuzo-guattariano. Na obra “Em Defesa das Causas Perdidas”, Žižek questiona se as linhas de fuga e a fluidez desejante celebradas por Deleuze e Guattari podem realmente escapar das garras do capitalismo, um sistema que já opera, segundo Žižek, com a lógica da desterritorialização. O capitalismo contemporâneo, longe de ser uma máquina rígida e fixa, é capaz de absorver e mercantilizar as diferenças, integrando as tentativas de fuga e subversão em sua própria dinâmica. Žižek observa que a capacidade do capitalismo de se apropriar da fluidez rizomática revela a ambivalência do projeto de Deleuze e Guattari. Enquanto os autores veem nas linhas de fuga uma promessa de emancipação, Žižek sugere que essas mesmas forças podem ser cooptadas pelo próprio sistema que pretendem criticar, uma vez que o capitalismo já incorporou a desterritorialização como parte de sua lógica operacional.

A crítica de Žižek toca em um ponto crucial ao destacar a ausência, na filosofia de Deleuze e Guattari, de uma confrontação direta com o antagonismo central do capitalismo: a luta de classes. Ao priorizarem a multiplicidade e a fluidez, Deleuze e Guattari diluem o foco na contradição material entre capital e trabalho, que é, para Žižek, o núcleo fundamental do sistema capitalista. Dessa forma, a crítica deles, ao enfatizar a desterritorialização e os fluxos de desejo, perde de vista a necessidade de uma abordagem mais dialética e materialista. Para Žižek, a emancipação exige não apenas a fuga ou a subversão das estruturas normativas, mas um enfrentamento direto com as contradições internas do sistema, particularmente a exploração de classe que o sustenta.

Essa tensão entre a multiplicidade rizomática e a contradição material é um dos pontos mais frutíferos para testar a robustez do projeto deleuzo-guattariano. Se o capitalismo já opera com a lógica da fluidez, será que a teoria do rizoma pode fornecer uma crítica efetiva ao sistema? Žižek argumenta que não, pois o próprio sistema capitalista, ao ser capaz de integrar e mercantilizar as diferenças, se mostra mais adaptável do que a teoria rizomática admite. Ao tratar a luta de classes como apenas mais uma entre muitas contradições, Deleuze e Guattari enfraquecem o potencial político de sua crítica, desarmando a possibilidade de uma confrontação real com as dinâmicas de exploração que caracterizam o capitalismo.

Além disso, Žižek observa que as ideias rizomáticas foram instrumentalizadas por estruturas de poder, como o próprio complexo militar, que incorporou a noção de “espaço liso” em suas táticas de guerra. Esse uso militar da filosofia de Deleuze e Guattari ilustra como as linhas de fuga podem ser facilmente reterritorializadas, mesmo por aquelas instituições que, em princípio, deveriam ser alvo de crítica. A filosofia rizomática, ao valorizar a multiplicidade e a fluidez, corre o risco de ser apropriada por sistemas de controle que a utilizam para reforçar seu próprio poder.

Imagem: DALL-E

No entanto, a relação entre controle e criação em Mil Platôs também oferece um espaço para reconsiderarmos o papel da linguagem e do discurso, especialmente no que se refere ao campo teológico. Deleuze e Guattari veem o discurso teológico como um exemplo claro de como a linguagem pode ser utilizada para capturar e organizar subjetividades de maneira normativa. No regime teológico, o livro sagrado não é apenas um texto interpretado, mas um instrumento de controle social que regula o comportamento dos indivíduos e estabelece territórios de subjetivação. O discurso religioso, particularmente nas religiões monoteístas, internaliza todas as possíveis interpretações, fixando as normas e limites da subjetividade dentro de uma genealogia autorreferencial. A relação entre o sujeito e o texto sagrado é de subordinação, onde o sujeito é chamado a recitar e obedecer ao comando divino, enquanto o livro sagrado exerce um papel disciplinar que organiza o campo social e espiritual.

No entanto, mesmo dentro deste regime teológico de captura, há espaço para linhas de fuga. As experiências místicas e as práticas reformistas dentro das tradições religiosas frequentemente rompem com a normatividade dogmática, abrindo novas possibilidades de interpretação e subjetivação. A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, por exemplo, podem ser vistas como movimentos que, ao reapropriarem o discurso teológico, introduzem novas linhas de fuga que desafiam as estruturas de poder dentro das instituições religiosas. No entanto, como Deleuze e Guattari apontam, essas linhas de fuga também correm o risco de reterritorialização, sendo eventualmente absorvidas pelas mesmas instituições que inicialmente tentavam subverter.

Essa dialética entre fuga e captura, criação e controle, revela a complexidade do projeto de Mil Platôs. Embora Deleuze e Guattari ofereçam uma crítica radical às estruturas de poder e ao capitalismo, a crítica de Žižek levanta questões importantes sobre os limites dessa abordagem. O capitalismo, com sua capacidade de absorver a diferença e mercantilizar a multiplicidade, representa um desafio fundamental para qualquer projeto que busque a emancipação através da fluidez e da desterritorialização. Žižek insiste que, para que haja uma verdadeira emancipação, é necessário confrontar diretamente as contradições centrais do sistema, especialmente a luta de classes, que permanece como o antagonismo fundamental do capitalismo.

Através dessa crítica, torna-se evidente que a robustez do projeto deleuzo-guattariano depende de sua capacidade de lidar com a reterritorialização e a captura das linhas de fuga, bem como da forma como articula sua crítica ao capitalismo em termos de antagonismos materiais. Embora a filosofia rizomática ofereça uma visão inovadora sobre a multiplicidade e a criação de subjetividades, a crítica de Žižek desafia essa visão a partir de uma perspectiva materialista mais dialética, questionando se a fluidez desejante pode realmente escapar das dinâmicas de controle do capitalismo contemporâneo.


Referências
Deleuze, G.; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
Žižek, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.

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