Por outro lado, peço que observes os nossos adversários (refiro-me aos sacerdotes), pela aprovação e pelo apetite dos quais os outros se fazem nossos inimigos; e peço que tomes um pouco de tempo para verificar comigo a paixão que os move. Eles facilmente permitem a si mesmos e aos outros ignorar, negligenciar e menosprezar a religião verdadeira, que nos é ensinada pela Escritura e que deveria continuar vigente e válida entre todos. Porque, ainda que alguns deles vivam do bom e do melhor e com fartura, e outros passem a vida roendo pão seco, na verdade todos eles vivem da mesma panela, a qual, sem essa ajuda, não somente se esfriaria, mas ficaria totalmente congelada. (...) Daí, o melhor e mais zeloso defensor da fé é aquele que sacia mais fartamente o seu ventre. Em resumo, todos eles têm o mesmo propósito: ou manter seu poder, ou manter seu ventre cheio. Mas nenhum deles mostra sinal algum de zelo verdadeiro. Contudo, não param de caluniar a nossa doutrina, desacreditando-a e difamando-a por todos os meios possíveis, para torná-la odiosa ou suspeita.
João Calvino ao Rei da França
Slavoj Žižek, em sua obra Em Defesa das Causas Perdidas, oferece uma análise crítica contundente da “miséria intelectual” que marca a sociedade contemporânea. Para Žižek, essa miséria manifesta-se na incapacidade de identificar e enfrentar as estratégias ideológicas que sustentam a hegemonia capitalista. Um exemplo claro disso é a apropriação seletiva dos valores iluministas, como liberdade, igualdade e fraternidade, especialmente pela direita protofascista, que instrumentaliza esses ideais em prol da manutenção do status quo. Žižek argumenta que, ao redefinir o campo de batalha ideológico, a direita oculta a singularidade ideológica que estrutura o sistema, algo que a esquerda, em sua resposta meramente reativa, muitas vezes não consegue desvelar. Ao evocar a metáfora de G. K. Chesterton (1874-1936) — “esconder um corpo numa pilha de cadáveres” —, Žižek explica como a proliferação de discursos culturais oculta as verdadeiras motivações ideológicas.
Esse diagnóstico de Žižek destaca um problema central: a esquerda, ao se opor de maneira reativa à direita, acaba, involuntariamente, reforçando os mesmos símbolos que perpetuam a dominação capitalista. O conceito de interpelação ideológica, proposto por Louis Althusser (1918- 1990), é útil aqui para esclarecer como os indivíduos são levados a aceitar sua posição nas estruturas de poder como algo natural. A direita, ao se apropriar dos valores emancipatórios da modernidade (e reinscrevê-los em um discurso que reforça a ordem estabelecida), não apenas instrumentaliza esses ideais, mas também impossibilita que a esquerda formule uma resistência substancial. Assim, a "miséria intelectual" contemporânea reflete a falha em expor essa apropriação ideológica e em oferecer uma alternativa radical à desordem e fragmentação geradas pelo capitalismo global.
Um exemplo que Žižek utiliza para ilustrar essa falha é a análise do filme 300 (2006), de Zack Snyder. No filme, a resistência espartana contra o exército persa é apresentada como uma metáfora para as tensões ideológicas do mundo contemporâneo, particularmente em relação ao multiculturalismo liberal e à política identitária. Os espartanos, coesos e disciplinados, simbolizam a defesa de uma ordem racional e universal, enquanto o exército persa, diversificado cultural e etnicamente, representa a pluralidade desordenada e caótica. Žižek observa que essa dicotomia reflete as limitações do multiculturalismo liberal, que celebra a diversidade superficialmente, sem questionar as estruturas de poder que mantêm a ordem vigente. Assim como o exército persa é retratado como uma força caótica e exótica, o multiculturalismo, ao fetichizar a diferença, transforma a diversidade em um valor meramente estético, sem implicações revolucionárias.
A crítica de Žižek ao multiculturalismo liberal aponta que, ao fetichizar a diferença e celebrar a pluralidade sem enfrentar as contradições estruturais do capitalismo, a diversidade se torna despolitizada. Em vez de desafiar a ordem capitalista, essa celebração acrítica da pluralidade funciona como um mecanismo de controle ideológico, neutralizando o potencial revolucionário das lutas identitárias. Esse fenômeno pode ser descrito como a “cópia negativa” que Žižek menciona: a esquerda, ao resistir de maneira superficial, reforça o sistema ideológico que deveria combater. A pluralidade, assim, é mantida dentro das margens aceitáveis de uma ordem capitalista, sem ameaçar verdadeiramente suas bases.
No entanto, ao discutir a necessidade de disciplina e coesão, Žižek não defende um retorno ao autoritarismo, tampouco uma exaltação da ordem espartana retratada no filme. Ele propõe, em vez disso, que a disciplina pode ser criticamente reimaginada para servir como uma forma de resistência produtiva diante da fragmentação social promovida pelo capitalismo tardio. A coesão social, quando repensada criticamente, pode funcionar como uma resposta ao caos e à fluidez impostos pela lógica neoliberal. Žižek sugere que uma nova forma de disciplina, que evite tanto o autoritarismo rígido quanto a fragmentação identitária liberal, é necessária para resistir efetivamente à desintegração social e às forças do capitalismo global. A esquerda precisa, assim, encontrar um caminho entre a celebração fragmentada do multiculturalismo liberal e a rigidez autoritária.
Imagem: DALL-E
Neste ponto, a Carta ao Rei da França, de João Calvino (1509-1564), contribui significativamente para o debate sobre ordem e resistência. Na carta, Calvino defende os protestantes franceses, argumentando que sua resistência não se baseava na subversão ou desordem, mas em uma reforma religiosa que buscava restaurar a verdadeira ordem cristã. A crítica de Calvino às instituições religiosas corruptas da época — particularmente à autoridade eclesiástica — dialoga diretamente com a crítica de Žižek às estruturas ideológicas contemporâneas. Tanto Calvino quanto Žižek enxergam na resistência a necessidade de se pensar uma nova coesão social que vá além da superficialidade das instituições de seu tempo.
A Carta de Calvino ao Rei expressa uma visão de ordem que não se limita à defesa da autoridade estabelecida, mas propõe uma nova ordem, mais justa e fundamentada em princípios divinos. Essa perspectiva se alinha com a crítica de Žižek ao multiculturalismo liberal, que, ao promover uma pluralidade desordenada e acrítica, falha em enfrentar as contradições do capitalismo. Assim como Calvino defende uma reforma religiosa que restaurasse a pureza da fé cristã, Žižek propõe uma reforma política e ideológica que repense a estrutura social. Ambos rejeitam uma resistência puramente reativa e fragmentada, propondo, em vez disso, uma transformação profunda da ordem, tanto espiritual quanto social.
A disciplina calvinista, com sua ênfase no autocontrole e no rigor moral, oferece um paralelo interessante com a disciplina espartana criticamente reconfigurada por Žižek. Para Calvino, a verdadeira ordem cristã não era a simples aceitação da autoridade da Igreja, mas um retorno à pureza da fé. Da mesma forma, para Žižek, a verdadeira resistência política não é uma rejeição superficial da coesão social, mas uma nova forma de subjetividade coletiva, disciplinada e, simultaneamente, crítica. O conceito de disciplina, em ambos os casos, é resgatado de suas conotações autoritárias e transformado em uma ferramenta de resistência contra a desordem e a opressão.
Além disso, podemos ver a Reforma Protestante como um evento espectral nos termos de Žižek, onde o excesso utópico da promessa de liberdade espiritual transcende as condições imediatas e gera novas formas de sujeição. Paradoxalmente, a liberdade prometida pela Reforma Protestante foi acompanhada por novas exigências de autodisciplina, especialmente no calvinismo, que moldaram subjetividades compatíveis com o capitalismo nascente. Esse paralelo entre a Reforma Protestante e o capitalismo contemporâneo destaca como qualquer tentativa de resistência ao sistema dominante deve enfrentar as tensões entre emancipação e novas formas de controle.
Finalmente, a crítica de Žižek à Revolução Francesa — como portadora de um “excesso utópico” que transcende suas bases materiais — é aplicável à Reforma Protestante. Assim como a Revolução Francesa prometeu liberdade, igualdade e fraternidade, mas resultou na restauração de uma ordem burguesa, a Reforma prometeu emancipação religiosa, mas também gerou novas formas de disciplina e sujeição. Žižek argumenta que o "excesso utópico" dessas revoluções continua a assombrar a modernidade, indicando que o potencial emancipatório da Reforma e da Revolução ainda está por ser realizado.
Essa continuidade histórica entre a Reforma Protestante e o debate contemporâneo sobre ideologia e resistência fortalece nossa análise. Tanto Calvino quanto Žižek reconhecem o paradoxo da resistência: como desafiar uma ordem injusta sem cair na desordem ou no autoritarismo. Ambos entendem que a verdadeira emancipação requer uma reconfiguração crítica da ordem estabelecida, e não uma simples rejeição ou fragmentação superficial.
Portanto, ao integrar a Carta de Calvino ao Rei da França ao nosso argumento, ampliamos nossa análise sobre a resistência política e ideológica. Tanto Calvino quanto Žižek propõem formas de resistência que vão além das dicotomias simplistas entre autoritarismo e pluralidade desordenada, buscando uma nova ordem crítica, justa e disciplinada. Essa síntese histórica e contemporânea reforça a coerência lógica de nosso argumento, demonstrando a relevância dessas questões na luta contínua por uma verdadeira emancipação política e ideológica.
Referências
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009. 4 v.
ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.
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