quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cristianismo da Libertação: Um Fenômeno Político e Teológico na América Latina

Na dialética da liberdade, “a esperança não toma as coisas como se fossem inertes, mas sim como progredindo, movendo-se com possibilidades de mudanças... (...) A esperança, consequentemente, expressa aquilo que é possível para a história e, assim, o que pode ser tornado histórico através da atividade da liberdade, somente na medida em que esta se derive e seja uma extrapolação do movimento objetivo da política de libertação humana, tal como experimentada na história (...). Nesse sentido, a linguagem da libertação humana tem suas raízes no presente. Ela fala a partir das dores de um presente que quer se tornar liberto, mas ao qual não é permitida a transformação de seu projeto em história; a história, assim, move-se em direção ao futuro através do sofrimento do oprimido. (...) Mas a realidade tem de ser negada e resistida. (...) É preciso ser-se livre da história para se ser livre para ela. Por outro lado esta liberdade face à história só pode produzir libertação se for liberdade para a história”.  (...) Portanto, o desejo de libertação se expressa como “poder contra aqueles que tornam a libertação impossível”. Rubem Alves 

Na obra Cristianismo da Libertação: Religião e Política na América Latina, Michael Löwy oferece uma análise crítica sobre as interseções entre religião e política no contexto latino-americano, com ênfase particular no impacto da Teologia da Libertação. Como um destacado intelectual marxista, Löwy examina a religião não apenas como uma força que legitima as estruturas de poder, mas também como um fenômeno contraditório, capaz de questionar e subverter essas mesmas estruturas. A Teologia da Libertação, movimento teológico que emergiu nos anos 1960 e ganhou forma com a obra de Gustavo Gutiérrez, figura central para Löwy, é apresentada como uma articulação entre fé cristã e transformação política, resultando em uma práxis que visa à emancipação dos pobres e marginalizados.

Religião e Política: A Dialética da Subversão e Legitimação
O ponto de partida da análise de Löwy é a compreensão dialética da religião. Para ele, seguindo a tradição marxista, a religião não pode ser vista exclusivamente como uma ferramenta de dominação, como sugerido na famosa máxima de Marx sobre a religião ser o ópio do povo. Löwy, ao revisitar essa crítica, sugere que a religião é um fenômeno social e histórico dotado de ambiguidades, funcionando tanto como uma força de legitimação das condições de opressão quanto como um espaço de resistência e subversão. A Teologia da Libertação, segundo Löwy, representa a expressão mais radical desse potencial subversivo, ao articular a fé cristã com a luta contra as estruturas de opressão capitalista. Neste sentido, a religião não é apenas um reflexo das condições materiais, mas também um lugar de produção ideológica e de resistência política.

Essa compreensão dialética da religião é exemplificada na análise de Löwy acerca do conceito de guerra dos deuses, retirado de Max Weber. Para Weber, essa expressão designa os conflitos entre diferentes sistemas de valores que colidem na modernidade, e Löwy adapta essa noção para descrever o embate entre os cristãos progressistas e conservadores, bem como entre o cristianismo de libertação e os ídolos do capitalismo. O cristianismo, na forma apresentada pela Teologia da Libertação, oferece uma alternativa radical aos valores do mercado e da mercadoria, concebendo Deus não como um sustentador da ordem estabelecida, mas como um libertador dos oprimidos. Esse conflito assume, na América Latina, uma dimensão particular, uma vez que, para Löwy, o cristianismo de libertação representa uma resposta à crise do capitalismo periférico, que intensificou as desigualdades sociais na região.

A Opção Preferencial pelos Pobres e a Superação da Pobreza
Um dos conceitos centrais da Teologia da Libertação, conforme analisado por Löwy, é a opção preferencial pelos pobres. Esse princípio, formulado por Gustavo Gutiérrez, desafia a concepção tradicional da caridade cristã ao afirmar que os pobres não são meros receptores passivos de auxílio, mas sujeitos ativos em sua própria libertação. Löwy considera essa reformulação teológica fundamental para entender a transformação do papel da Igreja na América Latina, que, sob a influência da Teologia da Libertação, deixou de ser uma instituição conservadora e passou a ser um ator político ativo na luta por justiça social.

Segundo a Teologia da Libertação, a pobreza é um fenômeno histórico e político, não uma condição imutável ou uma prova divina. A TdL propõe uma visão integradora, em que a salvação não se limita ao plano espiritual, mas se manifesta na transformação das condições materiais de opressão. Assim, a fé cristã se torna inseparável da práxis política, e a luta contra a pobreza é entendida como uma luta contra o sistema capitalista que perpetua essa condição. Para Löwy, essa dimensão política da Teologia da Libertação é o que a torna uma teologia revolucionária, profundamente antagônica ao capitalismo.

A opção preferencial pelos pobres também se desdobra em um questionamento das estruturas de poder que mantêm as desigualdades sociais. Para Gutiérrez, a pobreza não é apenas uma condição econômica, mas um produto de relações sociais e políticas que podem ser transformadas pela ação coletiva. Löwy observa que essa abordagem transforma a própria teologia em uma ferramenta de resistência, ao propor que a libertação cristã só pode ser concretizada na luta contra o imperialismo e o capitalismo. Nesse sentido, a Teologia da Libertação vai além de uma simples crítica moral do capitalismo; ela propõe uma transformação estrutural das condições que o sustentam.

Imagem: DALL-E

A Aliança entre Cristianismo e Marxismo
Um dos aspectos mais inovadores da Teologia da Libertação, conforme Löwy, é sua capacidade de integrar o marxismo como uma ferramenta crítica na análise das dinâmicas de opressão e exploração na América Latina. Gutiérrez não adota o marxismo de forma dogmática, mas o utiliza como um aparato analítico para compreender as estruturas sociais que perpetuam a miséria e a exploração. Löwy argumenta que essa aliança entre cristianismo e marxismo é uma das características mais marcantes da Teologia da Libertação, uma vez que oferece uma nova leitura da libertação cristã, que se concretiza nas lutas políticas e sociais contra o imperialismo e o capitalismo.

Essa articulação entre marxismo e cristianismo não é vista por Löwy como uma simples justaposição de ideias, mas como uma afinidade eletiva, um termo que ele herda de Weber para descrever a compatibilidade entre o cristianismo libertador e a ética marxista. O marxismo, para Gutiérrez, não é apenas um método de análise econômica, mas uma fonte de valores éticos e utópicos que ressoam com a mensagem cristã de justiça e libertação. Löwy, ao analisar essa convergência, sugere que o cristianismo de libertação e o marxismo compartilham um horizonte comum: ambos buscam a emancipação dos oprimidos e uma sociedade livre das amarras da exploração capitalista.

A Crítica ao Capitalismo e ao Fetichismo da Mercadoria
A crítica ao capitalismo é um dos pilares centrais da Teologia da Libertação, e Löwy dedica uma parte significativa de sua obra à análise dessa crítica. Para Gutiérrez, a mercadoria no sistema capitalista assume um caráter quase divino, desumanizando e alienando os indivíduos. Löwy, em diálogo com teólogos como Hugo Assmann e Franz Hinkelammert, destaca que o capitalismo não apenas oprime materialmente, mas também impõe uma forma de idolatria, onde o mercado e o capital são elevados a posições de poder quase religioso. A Teologia da Libertação, ao criticar essa idolatria do mercado, propõe uma teologia de intervenção política, que visa não apenas a salvação espiritual, mas também a emancipação social.

Löwy sugere que a Teologia da Libertação, ao combater o fetichismo da mercadoria, desenvolve uma crítica radical ao capitalismo que vai além da economia. Para Gutiérrez e seus contemporâneos, a luta contra a idolatria da mercadoria é uma luta pela restauração da humanidade alienada pelo sistema capitalista. Essa crítica se baseia na análise marxista do fetichismo, mas também é enriquecida pela dimensão teológica, que vê no capitalismo uma forma de idolatria que desvia os seres humanos de seu verdadeiro propósito de vida comunitária e solidariedade.

A idolatria do mercado, conforme Löwy, não é apenas uma questão econômica, mas também espiritual. Ao propor uma crítica teológica ao capitalismo, a Teologia da Libertação oferece uma visão holística da libertação, onde a fé e a política estão intrinsecamente conectadas. Essa crítica é central para a proposta de Gutiérrez, que vê na libertação uma tarefa tanto espiritual quanto material, que só pode ser alcançada por meio da transformação das estruturas sociais e econômicas.

O Protestantismo e Suas Relações com a Teologia da Libertação
Outro aspecto importante da análise de Löwy é a relação entre o protestantismo e a Teologia da Libertação. Embora o movimento tenha emergido principalmente no seio da Igreja Católica, Löwy destaca que o protestantismo latino-americano também foi influenciado por ideias libertadoras. Ele aponta para a existência de um “protestantismo de libertação”, que se desenvolveu em diálogo com as mesmas correntes teológicas e sociais que moldaram o cristianismo católico de libertação.

Löwy observa que, especialmente a partir da década de 1950, o protestantismo na América Latina começou a questionar seu papel tradicional como aliado do status quo político e econômico. Um exemplo significativo é o movimento ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), que, inspirado por princípios semelhantes aos da Teologia da Libertação, passou a se engajar ativamente nas lutas sociais. Para Löwy, essa convergência entre o catolicismo e o protestantismo de libertação representa uma ruptura com o conservadorismo religioso e a emergência de um novo tipo de engajamento político e teológico, em que a fé é colocada a serviço da justiça social.

O Papel de Rubem Alves na Teologia da Libertação
Dentro do contexto do protestantismo de libertação, destaca-se o papel de Rubem Alves (1933-2014), teólogo brasileiro que desempenhou um papel pioneiro na formulação das bases teológicas que influenciaram o movimento. Rubem Alves é frequentemente lembrado como um dos precursores da Teologia da Libertação dentro do protestantismo. Sua obra, Teologia da Esperança Humana (1969), é considerada uma das primeiras tentativas de articular uma crítica social e política a partir de uma perspectiva teológica no Brasil. Diferentemente de outros teólogos da libertação que se concentraram nas questões materiais da pobreza, Alves destacou a importância da imaginação, da utopia e da esperança como ferramentas de resistência e transformação.

Rubem Alves criticava as formas tradicionais de teologia que, para ele, alienavam as pessoas ao centralizarem-se exclusivamente no transcendental e no futuro, sem uma preocupação real com as condições presentes de vida. Assim, sua teologia se concentra na humanização das práticas religiosas, colocando o ser humano como sujeito de sua própria história. A influência de Alves na Teologia da Libertação foi fundamental, pois ajudou a consolidar uma visão mais ampla e plural da relação entre religião e política, abrindo espaço para a diversidade de experiências religiosas na América Latina, incluindo o protestantismo. Sua crítica à idolatria da razão instrumental e à teologia alienante reforça o espírito libertador presente nas obras de teólogos como Gutiérrez, Assmann e Hinkelammert.

Desafios Contemporâneos e Resistências à Teologia da Libertação
Apesar de suas inovações teológicas e políticas, a Teologia da Libertação enfrentou e ainda enfrenta grandes resistências. Löwy discute a contraofensiva conservadora dentro da Igreja Católica e em setores do protestantismo, que veem o cristianismo de libertação como uma ameaça à ordem estabelecida. A aliança entre setores religiosos conservadores e elites econômicas, especialmente na América Latina, dificultou a propagação da Teologia da Libertação em várias regiões. No entanto, como Löwy argumenta, o movimento demonstrou uma resiliência notável, sustentado por sua profunda conexão com as lutas populares e seu compromisso com a transformação social.

Löwy conclui que o legado de Gustavo Gutiérrez e da Teologia da Libertação vai além da teologia; ele também propôs uma nova forma de ação política, orientada pela fé, que continua a ser relevante no contexto das lutas sociais contemporâneas. O desafio que permanece é como adaptar essa tradição teológica e política aos novos contextos de opressão e resistência, em um cenário global marcado por crises econômicas, políticas e ambientais.

Considerações Finais
A análise de Michael Löwy sobre a Teologia da Libertação oferece uma compreensão profunda e dialética da relação entre religião e política na América Latina. Através de seu diálogo com o marxismo e sua crítica ao capitalismo, a Teologia da Libertação, conforme interpretada por Löwy, continua a ser uma ferramenta poderosa para aqueles que buscam unir a fé cristã com a luta pela emancipação dos oprimidos. A contribuição de teólogos como Rubem Alves amplia ainda mais essa perspectiva, destacando a importância de utopias e da imaginação na construção de uma teologia de resistência e transformação.

Referências
LÖWY, Michael. Cristianismo da Libertação: Religião e Política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Teologia de Mesa de Bar: Cristianismo e Desconstrução

No último dia 20 de novembro, às 20h, ocorreu mais uma edição do Teologia de Mesa de Bar , evento que combina reflexão teológica crítica e d...