quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Uma leitura pós-estruturalista de Lucas 18.9-14

Dois homens foram ao templo para orar. Um, cristão, foi ao templo do verdadeiro Deus, com as verdadeiras ideias sobre Deus em sua cabeça, mas orou sem a paixão da subjetividade. O outro, um pagão, foi ao templo de um ídolo e prostrou-se. Mas orou com toda a paixão do seu coração. Kierkegaard conclui: Na realidade o cristão orou a um ídolo e o pagão orou ao Deus verdadeiro. Daí a sua afirmação de que “a verdade é a subjetividade” (apud Rubem ALVES, 1984).

A cisão paraláctica (ou “paradoxo”) entre o Ético e o Religioso (kierkegaardianos) se expressa, às vezes, numa escolha do Estético! Não há garantia de que a decisão tomada seja um ato de fé, uma vez que a “'diferença mínima' que transubstancia (o que parece ser) um ato ético num ato religioso não pode ser especificada ou localizada numa propriedade determinada” - Sugerido por Slavoj Žižek

Lucas 18.9-14 está inserido em um conjunto de narrativas lucanas que provocam profundos questionamentos teológicos e hermenêuticos. Este texto evoca reflexões sobre a justiça e a humildade, articulando aspectos complexos da experiência religiosa no contexto do judaísmo do primeiro século. João Calvino, em seus comentários, faz uma análise desta parábola, destacando dois elementos principais: a autoconfiança injustificada e o desprezo pelo próximo. Segundo Calvino, o problema central do fariseu não está em sua observância da Lei, nem no reconhecimento de que suas boas obras são um dom de Deus, mas em sua confiança nas próprias ações para alcançar justificação (δικαίωσις). O fariseu acredita que suas obras são suficientes para obter a reconciliação com Deus, confiando no mérito dessas práticas. Isso, para Calvino, reflete uma postura de arrogância espiritual, que impede a verdadeira humildade necessária para a justificação.

Em contraste, o publicano, com humildade, não tenta justificar-se por meio de obras ou méritos, mas confessa sua culpa, reconhecendo exclusivamente que sua esperança está na misericórdia divina. Calvino enfatiza que a justificação ocorre aqui não por mérito adquirido pelo publicano, mas pela anulação de sua culpa e pelo perdão dos pecados. Para Calvino, a justificação (v. 14) não é uma transformação moral interna, mas um ato da graça de Deus, que perdoa e aceita aqueles que se humilham e confiam somente em sua misericórdia, sem depender de suas próprias obras. Nas palavras de um teólogo luterano, a justificação “se dá menos ainda em decorrência da expressão de desespero pela derrocada da vida, da contrição ou do arrependimento (...).” Nos termos da Reforma, a chegada da Palavra de Deus (isto é, a declaração “voltou para casa justificado”) jamais se transforma em “habitus”, mas permanece como força ativa de Deus (virtus), que opera sempre “extra nos” (fora de nós...).

Calvino também sublinha que esta parábola serve como uma advertência contra o orgulho espiritual, que leva à condenação. O fariseu, com sua observância exterior, é rejeitado, enquanto o publicano, ao confessar sua incapacidade, é justificado. Para o reformador franco-genebrino, essa dinâmica ilustra a doutrina reformada da justificação pela fé, onde o perdão e a aceitação por Deus não dependem dos méritos humanos, mas da graça soberana e do reconhecimento da própria insuficiência. O comentário de Calvino contribui para a leitura protestante de Lucas 18.14 ao reforçar a teologia da justificação pela fé e o perigo da autossuficiência espiritual, agregando uma importante reflexão teológica. Contudo, ao adotar uma leitura pós-estruturalista, além dos aspectos dogmáticos destacados, somos levados a questionar não apenas os significados normativos, mas também as dinâmicas discursivas que operam na construção das subjetividades religiosas, revelando a complexa relação entre poder, linguagem e identidade.

A Natureza da Parábola e a Dinâmica Discursiva
Ademais, a tradição exegética, como apresentada no Proclamar Libertação XXVIII, sugere que o texto deve ser interpretado à luz da segunda parte do versículo 14: “todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (BJ). A questão central que surge, então, é: estamos diante de uma parábola que visa apenas ensinar uma lição moral ou de uma narrativa mais complexa, que desestabiliza categorias e práticas sociais enraizadas? Assim, uma leitura pós-estruturalista nos convida a ir além dessas interpretações, desafiando a redução da parábola a uma comparação moralizadora ou mesmo a uma defesa exclusiva da doutrina da Justificação pela Fé, como sugere Calvino. Aqui, a parábola opera como uma ferramenta discursiva dentro de uma matriz de poder, isto é, um conjunto de relações que organiza e legitima a distribuição de poder e status social, constituindo subjetividades e reforçando hierarquias..

A narrativa de Lucas articula dois temas centrais: a necessidade de uma oração contínua e a humildade como virtude fundamental. Contudo, ao fazê-lo, a narrativa não se limita a uma injunção ética. A oração, descrita como prática essencial (“Dois homens subiram ao templo para orar”, BJ), também deve ser lida como uma forma de constituição subjetiva que se inscreve nas relações discursivas de poder. Em termos foucaultianos, a oração aqui não é apenas um exercício de devoção, mas um processo discursivo que molda o sujeito religioso, posicionando-o dentro de um regime de verdade, onde seu valor é medido não apenas por suas ações, mas pela conformidade a normas religiosas. Assim, a oração adquire uma dimensão política, sendo uma prática discursiva que legitima (e reitera uma certa ordem simbólica). Como argumenta Michel Foucault, o discurso não é apenas um reflexo da realidade, mas uma prática que constitui realidades e fabrica sujeitos. A oração, nesse caso, constitui o sujeito orante como alguém que, através da linguagem, ocupa uma posição de poder no campo religioso.

A Relação entre Fariseus e Publicanos: Discurso e Poder
A crítica à arrogância religiosa no versículo 9 – “alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros” – direciona nossa atenção para a relação entre fariseus e publicanos. Essa relação pode ser lida como uma forma de distinção discursiva que legitima hierarquias religiosas. O fariseu, orgulhoso de sua pureza religiosa, não apenas evita o pecado, mas constrói uma identidade positiva fundamentada em sua observância estrita da Lei: jejua duas vezes por semana e paga o dízimo de todos os rendimentos (18.12). Esse comportamento excede os requisitos da Lei e funciona como um mecanismo de distinção, demarcando sua posição superior, especialmente em relação ao publicano.

Aqui, o conceito de habitus, de P. Bourdieu, é relevante para entender como essas práticas religiosas não são meramente comportamentos individuais, mas estão enraizadas em estruturas sociais que organizam a percepção e a ação dos sujeitos. O habitus (farisaico) é uma estrutura incorporada que regula a ação e a percepção, reforçando a distinção entre aqueles que cumprem e aqueles que falham em seguir as normas religiosas. O fariseu é constituído como sujeito religioso em oposição ao publicano, cuja identidade, por sua vez, é construída como inferior nessa lógica discursiva. Por outro lado, o publicano, ao reconhecer sua condição de pecador e clamar por misericórdia, ocupa uma posição de subalternidade dentro desse campo de poder (“Ὁ Θεός, ἱλάσθητί μοι τῷ ἁμαρτωλῷ”):

“Ὁ Θεός” (Ho Theos) significa “Ó Deus”.
“ἱλάσθητί” (hilastheti) é uma forma de verbo que significa “tem piedade” ou “seja propício”.
“μοι” (moi) significa “a mim”.
“τῷ ἁμαρτωλῷ” (to hamartolo) significa “pecador”.

Tomado como colaborador do império romano e, portanto, traidor de seu povo, o publicano é uma figura de desprezo social e religioso. Essa marginalização pode ser lida em termos foucaultianos como uma exclusão discursiva, onde certos sujeitos são posicionados fora da normatividade religiosa e, consequentemente, fora da esfera de prestígio. No entanto, essa relação entre fariseu e publicano é dialética. Em uma leitura pós-estruturalista, o fariseu não existe sem o publicano e vice-versa. Ambos se constituem reciprocamente em uma relação discursiva na qual o poder se articula por meio da distinção e da exclusão. O fariseu, ao se exaltar, só pode fazê-lo em relação ao publicano, cuja humilhação reafirma sua superioridade. Da mesma forma, a humilhação do publicano só ganha significado em relação à exaltação do fariseu, mantendo a ordem social e religiosa.

Justificação, Humildade e a Subversão das Hierarquias
A narrativa, no entanto, não permanece no nível da mera reprodução dessa distinção. A exaltação do publicano e a humilhação do fariseu, expressa pelos pares antitéticos Ταπεινωθήσεται (tapeinōthēsetai) e ὑψωθήσεται (hypsōthēsetai), conforme descrito no versículo 14, subvertem as expectativas normativas. Essa inversão, no entanto, não deve ser vista apenas como uma troca de lugares, mas, em termos hegelianos, como uma “negação da negação, onde a superação da distinção original não leva à afirmação de um ou outro, mas à criação de uma nova realidade que transcende as polaridades. A humildade do publicano, ao ser exaltada, questiona a lógica pela qual o fariseu constrói sua identidade.

Neste ponto, a leitura kierkegaardiana entra em cena, oferecendo uma análise existencial da subjetividade religiosa. O publicano, ao reconhecer sua condição de pecador, pode ser visto como um “cavaleiro da resignação, que abdica da tentativa de controlar sua salvação por obras. No entanto, para Kierkegaard, essa resignação ainda não o torna um “cavaleiro da fé, pois a verdadeira fé envolve o credo quia absurdum  – a crença em algo que transcende a razão e a moralidade convencionais.

Imagem: DALL-E

O Paradoxo da Fé: R. Alves, S. Žižek e G. Agamben
O contraste estabelecido por Rubem Alves entre um cristão e um pagão em oração encontra suas raízes na leitura kierkegaardiana sobre a subjetividade da fé. Esse conceito é amplamente discutido em textos que abordam o pensamento existencialista cristão. A base dessa comparação reside na máxima kierkegaardiana de que “a verdade é subjetividade”. Para Kierkegaard, a verdadeira fé não é definida apenas pela aderência a doutrinas corretas ou a ideias teologicamente precisas, mas pela intensidade da paixão e pela entrega existencial do indivíduo. Nesse sentido, a autenticidade da fé está mais ligada à experiência subjetiva do crente do que ao objeto exato de sua crença.

Rubem Alves, em sua obra, apropria-se dessa concepção ao destacar que um cristão, embora possua uma compreensão teologicamente “correta” de Deus, mas sem a paixão necessária, pode, na verdade, estar adorando um ídolo. Em contrapartida, um pagão, apesar de adorar algo incorreto do ponto de vista teológico, pode estar mais próximo de Deus pela sinceridade e intensidade de sua devoção. Essa crítica ao formalismo religioso sublinha a importância da experiência subjetiva e da autenticidade interior em detrimento da mera conformidade a ritos e doutrinas estabelecidas.

Ainda que a expressão exata “creio porque é absurdo” não apareça literalmente na citação de nossa epígrafe, ela reflete a centralidade da fé apaixonada e autêntica que, para Kierkegaard, transcende as exigências da racionalidade objetiva. Esse conceito se conecta profundamente com o “salto de fé”, essencial na teologia existencialista kierkegaardiana, em que a fé se torna um ato de entrega que ultrapassa as barreiras da lógica e da segurança intelectual.

S. Žižek, em diálogo com Kierkegaard e Hegel, oferece uma chave para compreender a tensão entre resignação e fé. Para Žižek, há uma “cisão paraláctica” entre o ético e o religioso, uma diferença mínima que nunca pode ser totalmente resolvida. O publicano, ao se humilhar, mantém essa brecha aberta, pois a justificação não pode ser garantida por ações ou méritos, transcendendo a lógica da moralidade convencional. A fé, assim, se manifesta justamente nessa abertura, onde a experiência religiosa não se enquadra nas categorias éticas tradicionais, mas emerge em um espaço paradoxal de entrega total.

Essa ideia encontra eco na obra de G. Agamben, especialmente em sua leitura do messianismo paulino, onde todas as distinções sociais e religiosas são suspensas, criando um espaço de “como não”, onde o fariseu é como se não fosse fariseu e o publicano é como se não fosse publicano. Nesse sentido, a justificação do publicano rompe com as categorias fixas de identidade, subvertendo as estruturas de poder e distinção que definem o mundo social e religioso. Ao transcender essas categorias, o messianismo agambeniano revela um modo de existência que não mais opera sob as lógicas de exclusão e hierarquização, mas em um espaço de contínua suspensão e reconfiguração das identidades sociais.

Considerações Finais
Ao adotar uma leitura pós-estruturalista de Lucas 18.9-14, somos levados a questionar as dinâmicas de poder e subjetivação que operam na narrativa. A relação entre fariseus e publicanos, mais do que uma simples metáfora moral, revela-se como um campo discursivo onde identidades e hierarquias são constituídas e legitimadas. A exaltação do publicano e a humilhação do fariseu subvertem essa lógica, mas não a resolvem completamente, mantendo a tensão entre ética e fé como um paradoxo que desafia nossa compreensão das relações entre poder, justiça e subjetividade. Podemos nos perguntar: em cada fariseu exaltado, não haveria também um publicano em potencial, pronto a se humilhar? E, em cada publicano humilhado, não reside o potencial de um fariseu que, ao ser justificado, pode cair na arrogância? A narrativa lucana, portanto, nos convida a refletir sobre a complexidade dessas interações e a reconhecer que, assim como as práticas discursivas que nos constituem, as posições de poder e subordinação estão sempre em fluxo.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. Campinas, SP: Papirus, 1984.
 _____________. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979.
AESKE, Albérico. Dia da Reforma. In: MÜLLER, João Artur; HOEFELMANN, Verner. Proclamar Libertação: Auxílios para o anúncio do Evangelho. v. 28. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2002, p. 333-345.
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Temor e Tremor. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

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