sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Trabalho, Alienação e Subjetividade

O debate sobre o trabalho e a produção no capitalismo contemporâneo encontra-se no cerne das discussões teóricas entre Slavoj Žižek e Moishe Postone, que se distinguem por suas abordagens críticas em relação ao papel do trabalho no processo de dominação capitalista. Postone, em sua leitura inovadora de Marx, oferece uma reformulação substancial da crítica ao trabalho, sugerindo que o cerne da crítica marxiana deve ser a própria estrutura do trabalho abstrato no capitalismo, e não apenas a exploração de classe (ou a propriedade privada dos meios de produção). Žižek, por sua vez, amplia essa crítica ao conectar o trabalho às estruturas ideológicas que sustentam o capitalismo tardio, propondo uma abordagem psicanalítica que explora as fantasias objetivas e os mecanismos simbólicos que operam no nível da subjetividade. Ao incorporar também a análise da ética protestante do trabalho, especialmente a partir das contribuições de Max Weber e André Biéler, conseguimos traçar um panorama histórico e ideológico mais robusto, que revela a maneira como o trabalho foi transformado de uma vocação teológica em uma ferramenta de dominação capitalista, articulada de maneira profunda com a subjetividade dos indivíduos. A relação entre trabalho, ideologia e subjetividade é, assim, um ponto de convergência que permite expandir a análise crítica em várias direções.

Moishe Postone, em sua obra Tempo, Trabalho e Dominação Social, critica o que chama de “marxismo tradicional”, que tende a ver o trabalho como uma atividade transhistórica que define a essência humana e como a base de qualquer possível emancipação social. Para Postone, essa leitura é inadequada para compreender a especificidade histórica do capitalismo, pois ao tratar o trabalho como ontologicamente central, o marxismo tradicional acaba reforçando as próprias categorias capitalistas que ele pretende criticar. Em vez de tratar o trabalho como a base da emancipação, Postone argumenta que o trabalho, no capitalismo, é uma forma de mediação social abstrata, que constitui a estrutura da dominação social. O trabalho abstrato, ao contrário do trabalho concreto que produz valores de uso, é a categoria que estrutura a produção de valor no capitalismo e que, portanto, gera alienação ao transformar a atividade humana em uma força impessoal que escapa ao controle dos próprios trabalhadores.

A crítica de Postone é profundamente dialética, pois, ao identificar o trabalho abstrato como a fonte da dominação social, ele sugere que a superação do capitalismo não pode ser alcançada simplesmente pela expropriação dos meios de produção ou pelo controle do Estado, mas pela abolição do próprio trabalho abstrato como forma social. Postone vê o capitalismo como um sistema em que o valor e o tempo abstrato regulam as relações sociais, impondo imperativos impessoais sobre os indivíduos. Dessa forma, o trabalho, que no marxismo tradicional é tratado como o meio para a emancipação dos trabalhadores, é reinterpretado como o próprio objeto da crítica, uma vez que é o trabalho abstrato que sustenta a reprodução do capital. O trabalho deixa de ser uma atividade emancipadora para ser uma fonte de alienação e dominação, o que demanda uma crítica mais profunda das formas sociais específicas que estruturam o capitalismo.

Slavoj Žižek, ao adotar uma perspectiva dialética e psicanalítica, concorda com Postone que o trabalho, no capitalismo, é uma forma de alienação, mas vai além ao incluir o papel das fantasias ideológicas que sustentam essa alienação. Para Žižek, o capitalismo não se sustenta apenas através da exploração econômica (ou da alienação objetiva do trabalho), mas também através de um conjunto de fantasias e estruturas simbólicas que moldam a subjetividade dos indivíduos. Ele argumenta que a dominação capitalista opera em um nível simbólico, onde o trabalho se torna uma atividade que, ao mesmo tempo, aliena os trabalhadores e os faz acreditar que estão realizando algo significativo. A ideologia capitalista transforma o trabalho em uma forma de realização subjetiva, capturando o desejo dos indivíduos e os fazendo identificar-se com as estruturas de dominação que os oprimem. Žižek chama esse mecanismo de fantasia objetiva, pois é uma ilusão que sustenta a realidade do capitalismo e que mantém os indivíduos presos em uma lógica de exploração e alienação.

Essa abordagem psicanalítica do trabalho permite a Žižek criticar não apenas as formas tradicionais de exploração capitalista, mas também as novas formas de trabalho imaterial que surgem no capitalismo contemporâneo, especialmente no que diz respeito às teorias de Antonio Negri e Michael Hardt sobre o trabalho cognitivo e a multidão. Para Negri e Hardt, o trabalho imaterial, caracterizado pela produção de conhecimento, afetos e comunicação em rede, representa uma nova forma de trabalho que ultrapassa as limitações do trabalho industrial e oferece novas possibilidades de emancipação. A multidão, para eles, seria o novo sujeito revolucionário capaz de transformar o capitalismo a partir de dentro, utilizando as novas tecnologias e formas de cooperação social para desafiar o poder do capital.

No entanto, Žižek critica essa visão otimista do trabalho imaterial e da multidão, argumentando que, longe de representar uma ruptura com as formas tradicionais de exploração, o trabalho imaterial é uma nova forma de captura capitalista, que integra o desejo e a subjetividade na lógica do valor. O trabalho cognitivo, afetivo e colaborativo, em vez de transcender o capitalismo, é simplesmente uma nova forma de subsunção do trabalho ao capital, onde a exploração e a alienação continuam presentes, mas de maneira mais sutil. Para Žižek, a ênfase de Negri e Hardt na multidão como agente revolucionário ignora a profundidade das estruturas ideológicas que sustentam o capitalismo e subestima a complexidade das formas de dominação que operam no nível da subjetividade.

Além dessa crítica ao trabalho imaterial, Žižek também se volta contra a análise de Gilles Deleuze e Félix Guattari, particularmente em O Anti-Édipo, onde o trabalho é tratado como parte de uma máquina desejante que captura e reorganiza os fluxos de desejo no capitalismo. Deleuze e Guattari propõem que o capitalismo é uma máquina social que desterritorializa os fluxos do desejo e os reterritorializa de acordo com suas necessidades de reprodução. O trabalho, nessa perspectiva, é apenas uma das formas pelas quais o capitalismo captura o desejo e o transforma em uma força produtiva. No entanto, Žižek argumenta que essa ênfase na desterritorialização do desejo pode obscurecer a estrutura de dominação que continua a operar no capitalismo, mesmo quando este parece se adaptar e transformar os fluxos desejantes em formas de produção.

É nesse contexto que a ética protestante do trabalho, especialmente em sua forma calvinista, torna-se relevante para a compreensão das transformações históricas e ideológicas do trabalho no capitalismo. A partir das análises de Max Weber e André Biéler, podemos ver como o protestantismo, particularmente o calvinismo, ajudou a moldar o espírito do capitalismo moderno ao conferir ao trabalho um sentido teológico de vocação. No calvinismo, o trabalho é visto como uma obrigação moral e espiritual, uma forma de responder à vocação divina, e a ociosidade é considerada um vício. Como Biéler argumenta em A Força Oculta dos Protestantes, o trabalho era originalmente concebido como uma forma de serviço a Deus e à comunidade, e o lucro derivado do trabalho deveria ser utilizado de maneira justa e solidária.

Imagem: DALL-E

No entanto, com o desenvolvimento do capitalismo moderno, essa ética protestante do trabalho foi progressivamente secularizada e transformada em um ethos que legitimou a acumulação de capital. O trabalho, que no calvinismo tinha um sentido espiritual e comunitário, foi capturado pela lógica capitalista e transformado em uma forma de exploração e alienação. A crítica de Weber, e também de Biéler, revela como o protestantismo, ao promover a ética do trabalho e da disciplina, acabou por contribuir para a formação do espírito do capitalismo, que justifica a exploração dos trabalhadores em nome de um suposto dever moral de acumulação e produtividade.

Essa captura do trabalho pela lógica capitalista ressoa diretamente com as críticas de Žižek e Postone, que veem no trabalho contemporâneo uma forma de dominação ideológica e alienação. O que Weber e Biéler identificam como a secularização da vocação protestante, Žižek interpreta como uma forma de captura ideológica, onde o trabalho, que deveria ser uma atividade de realização espiritual, torna-se uma ferramenta de exploração e controle. Postone, por sua vez, ao criticar o trabalho abstrato, identifica o momento em que o trabalho deixou de ser uma atividade socialmente significativa para se tornar uma força impessoal que sustenta a lógica do capital.

Ao incorporar essa análise protestante ao argumento, percebemos que o trabalho, longe de ser uma atividade ontologicamente redentora, é historicamente contingente e ideologicamente moldado para servir às necessidades do capital. A ética protestante, que inicialmente visava garantir a justiça e a solidariedade social, foi instrumentalizada pelo capitalismo para legitimar a exploração e a alienação dos trabalhadores. A análise de Postone e Žižek revela como o trabalho, ao longo do tempo, foi esvaziado de seu potencial emancipatório e transformado em uma forma de dominação social. No entanto, ao mesmo tempo em que o trabalho se tornou o núcleo da alienação capitalista, ele também contém as contradições internas que podem levar à sua superação.

Em última análise, o debate entre Žižek, Postone, Negri, Deleuze e a tradição protestante do trabalho revela a complexidade das funções do trabalho no capitalismo contemporâneo. A crítica ao trabalho imaterial, à ética protestante e às formas de subjetivação no capitalismo mostra que o trabalho, longe de ser uma simples atividade produtiva, é o espaço onde se articulam as tensões ideológicas, subjetivas e econômicas que sustentam o sistema. O trabalho, portanto, não é apenas uma forma de dominação, mas também o local onde as contradições internas do capitalismo se tornam visíveis, abrindo a possibilidade de uma transformação radical da sociedade.

Referências
BIELER, André. A Força Oculta dos Protestantes: Estudo sobre o Calvinismo. Tradução de José Carlos Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Pola Civelli. São Paulo: Editora 34, 2011.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Record, 2001.
POSTONE, Moishe. Tempo, Trabalho e Dominação Social: Uma Reinterpretação da Teoria Crítica de Marx. Tradução de Alfredo J. Buéres. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético. Tradução de Maurício Cardozo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

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