Na análise final sobre a “arqueologia da ontologia” em O uso dos corpos, o filósofo Giorgio Agamben realiza um trabalho detalhado de desconstrução das estruturas ontológicas que sustentaram a filosofia ocidental. Sua investigação ilumina as bases das relações entre linguagem, ser e poder, condicionando as possibilidades de ação humana e as formas de vida. Agamben busca desvendar como a existência foi instituída como uma forma específica de ser, mediada por instâncias ontológicas consolidadas em dispositivos de controle. Nesse contexto, o conceito de hipóstase, que tem suas origens na filosofia neoplatônica e foi amplamente reformulado na teologia cristã trinitária, revela-se central. A teologia trinitária, que introduz a ideia de uma unidade substancial entre Pai, Filho e Espírito Santo, concebe, contudo, cada uma dessas entidades como uma instância ontológica distinta. Este modelo consolidou o termo “hipóstase” no vocabulário filosófico e teológico, fornecendo uma base ontológica que estrutura uma multiplicidade hierarquizada de modos de ser, permitindo que unidade e multiplicidade coexistam de maneira controlada e instrumentalizada.
Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã, aborda essa estrutura trinitária sob uma ótica que privilegia a unidade essencial de Deus, ao mesmo tempo em que preserva as distinções entre as três pessoas divinas — Pai, Filho e Espírito Santo. Para ele, a doutrina da Trindade é uma das fundações centrais de sua teologia reformada, onde cada uma das três pessoas compartilha da mesma substância divina, exercendo funções e relações distintas sem comprometer a unicidade essencial de Deus. A doutrina da Trindade, na visão de Calvino, não é apenas um assentimento teológico, mas o fundamento de toda a sua concepção da obra divina no mundo. Diferente de uma estrutura de controle, essa unidade trinitária resiste a qualquer tentativa de divisão funcionalista das hipóstases. Em sua análise, Calvino explica que o Pai, sendo o “princípio” e “origem” da divindade, em nada compromete a igualdade ontológica entre as pessoas, pois o Filho é eternamente gerado pelo Pai, e o Espírito Santo procede tanto do Pai quanto do Filho. Cada pessoa da Trindade possui uma propriedade que a caracteriza distintamente: o Pai é o princípio, o Filho é consubstancial ao Pai como o gerado, e o Espírito Santo é aquele que procede de ambos. Essa distinção, contudo, não implica qualquer desigualdade na substância divina, mas revela uma comunhão essencial e indivisível (Institutas, I.13.2; I.13.17).
Na economia trinitária, Calvino trata a relação entre Pai e Filho com atenção cuidadosa, especialmente à subordinação hipostática. Esta é compreendida como uma relação estritamente relacional e ontológica, sem que o Filho seja inferior ao Pai em divindade. Assim, embora o Filho seja gerado pelo Pai, Ele compartilha da mesma substância e eternidade do Pai, sendo “Deus de Deus verdadeiro”, e não uma criação subordinada. Calvino insiste que essa ordem relacional não reflete desigualdade, mas uma relação eterna que marca a procedência de uma pessoa em relação à outra. Essa abordagem reflete uma crítica implícita ao arianismo, que consideraria o Filho uma criação divina, mas, ao mesmo tempo, evita uma concepção hierárquica da Trindade, já que todas as pessoas divinas coexistem em plena comunhão (Institutas, I.13.7-9).
Para Calvino, o papel do Espírito Santo dentro dessa estrutura trinitária é essencial, pois Ele é visto como o vínculo de união entre o crente e Cristo e como o aplicador da graça nos corações eleitos. O Espírito Santo, consubstancial ao Pai e ao Filho, desempenha uma função única na regeneração e na vida de fé dos cristãos, sendo Ele quem torna a obra de Cristo real e eficaz no coração dos crentes. Assim, o Espírito sela a união com Cristo, aplicando a obra redentora de forma pessoal e vivificante (Institutas, I.13.14-15; III.1.1-3).
Agamben, por outro lado, ao retomar o conceito de hipóstase, busca revelar como as articulações ontológicas foram historicamente instrumentalizadas em estruturas de controle e subordinação. Ele revisita a ontologia neoplatônica de Plotino, onde as hipóstases emanam de uma unidade transcendente, mas foram capturadas, ao longo da tradição cristã, por uma lógica funcionalista que subordina o ser à realização de funções específicas, uma “economia trinitária” que se insere em uma estrutura de poder. Ao contrário da visão de Calvino, que preserva a comunhão plena e indivisível da Trindade, Agamben observa que a tradição ocidental transformou as hipóstases em realizações operativas, que reduzem o ser a uma função a serviço de uma hierarquia. Para Agamben, a multiplicidade ontológica assim estruturada reflete uma lógica de poder que organiza o ser em instâncias controladas e instrumentalizáveis, capturando a existência dentro de um regime de funcionalidade que serve a uma finalidade superior.
Essa divergência torna-se evidente quando consideramos o modelo de controle que Agamben vê na “economia trinitária” e a sua crítica a uma ontologia essencialista que subordina o ser a um regime de normatização. Calvino, em contraste, vê a Trindade como uma unidade de comunhão que resiste a qualquer divisão subordinada em funções utilitárias. As três pessoas divinas participam da divindade sem serem capturadas por uma lógica de finalidade. Em oposição, Agamben critica essa estrutura ontológica como uma ferramenta de controle e captura da vida, onde a existência é transformada em uma ferramenta de uma ordem superior e dominada por uma lógica de produtividade (Institutas, I.13.16-18; IV.1.2).
Além disso, Agamben sugere uma alternativa: uma ontologia modal onde o ser se caracteriza por potencialidade e não por uma função concreta. Seu conceito de chresis ou “uso” desprovido de finalidade introduz uma maneira de ser que evita a captura pela funcionalidade. Nessa perspectiva, o uso ético rompe com a instrumentalização da vida e propõe uma existência autônoma. Chresis como uma prática ontológica resgata a vida da dominação, promovendo uma relação com o ser que é vivida sem subordinação a uma estrutura de controle. Curiosamente, essa noção de chresis encontra uma ressonância dialética na estrutura trinitária calvinista, que sugere uma comunhão relacional sem dominação. Assim, Calvino e Agamben, embora por vias distintas, acabam por convergir em uma visão de existência que resiste à funcionalização do ser.
Por fim, essa convergência dialética entre Calvino e Agamben quanto à liberdade ontológica do ser e à resistência contra a funcionalização abre uma nova interpretação da existência como prática. A ontologia trinitária de Calvino, que mantém a unidade essencial sem dominação, e o conceito de chresis de Agamben, com seu uso inoperante, estabelecem modelos de resistência contra estruturas de controle que instrumentalizam a vida. Ambos, em suas distinções, acabam por propor visões que permitem um ser vivido em liberdade e autenticidade, longe de uma lógica de posse e utilidade, promovendo uma ontologia que valoriza a vida em sua plenitude e potencialidade, fora de um regime de controle e submissão.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O uso dos Corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 1: Livros I e II. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 2: Livros III e IV. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
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