O processo de acesso ao real - a que chamo, em meu jargão filosófico, de um procedimento de verdade - está sempre em via de destruir uma formalização parcial, porque faz advir a impossibilidade particular e pontual dessa formalização. Que conclusões tirar daí? Primeira: que só há conquista do real ali onde há uma formalização - pois, se o real é o impasse da formalização, é preciso que haja uma formalização. Logo, não há esperança de conquistar o real fora da existência de uma formalização, de um arranjo, de uma forma. O real supõe que tenha sido pensada e construída a forma aparente daquilo de que um determinado real é o real oculto. Segunda: a afirmação do real como impasse dessa formalização vai ser em parte a destruição dessa formalização. Ou, digamos, sua divisão. E tudo vai começar por uma afirmação inaceitável do ponto de vista da própria formalização, que prescreve o que é possível, a saber, a afirmação de que o impossível existe. Está aí o gesto fundamental de conquista do real: declarar que o impossível existe. Alain Badiou
Pensar as revoluções a partir das filosofias de Alain Badiou e Slavoj Žižek é um exercício que exige uma compreensão profunda das suas concepções de “real” e “verdade”, da natureza do “evento” e do papel do “discurso” na configuração da realidade. Ambos os pensadores, cada um à sua maneira, dialogam criticamente com o pós-estruturalismo, incorporando certas críticas e desconfianças em relação a estruturas fixas e essenciais, mas se distanciam dele ao propor que há dimensões da realidade que escapam ao discurso e ao campo simbólico. A revolução, para Badiou e Žižek, não é apenas uma mudança estrutural ou um rearranjo superficial das normas; trata-se de uma interrupção radical que desestabiliza as bases mesmas da realidade simbólica, confrontando o sujeito com um “real” que perturba e desafia a ordem vigente. Contudo, as abordagens de Badiou e Žižek divergem em pontos fundamentais, especialmente na maneira como compreendem o papel do evento, a importância da fidelidade a uma verdade emergente e o potencial transformador do discurso ideológico.
Para Alain Badiou, a revolução encontra sua expressão máxima no conceito de “evento”. Em sua visão, o evento é uma irrupção que transcende as coordenadas da situação em que se insere, permitindo o surgimento de uma verdade que desafia o campo simbólico e reconfigura as relações sociais. Em “Em busca do real perdido”, Badiou descreve o evento como um momento de ruptura que suspende a legalidade e a normatividade estabelecidas, permitindo que o impossível se manifeste como uma nova configuração do real. Esse real não é meramente uma construção discursiva; ele surge como algo que desafia a formalização e abre um horizonte de transformação. O evento, para Badiou, é uma espécie de “rasgo” na textura da realidade simbólica, um ponto onde a verdade emerge e exige uma fidelidade ética do sujeito. Assim, a revolução é concebida como uma fidelidade a essa verdade emergente, um compromisso contínuo que o sujeito deve sustentar mesmo diante das tentativas de neutralização e assimilação por parte do sistema.
A noção de fidelidade ao evento é central na teoria de Badiou, pois a revolução não se realiza em um único ato de ruptura, mas requer um esforço contínuo para preservar e desenvolver a verdade que surge do evento. Badiou argumenta que a revolução só é bem-sucedida se a verdade que ela inaugura permanecer ativa e resistir à coaptação pelas estruturas de semblante e simulacro, que ele associa à ordem do discurso e da ideologia dominante. Dessa forma, o evento revolucionário, ao se afirmar como uma nova ontologia, expande os limites do possível e desafia o que antes era considerado intransponível. Exemplo disso pode ser visto em suas análises de revoluções históricas, como a Revolução Francesa e a Revolução Russa, onde o surgimento de uma nova verdade — de igualdade, liberdade e justiça social — transforma radicalmente a estrutura de poder e as categorias de entendimento social. Em Badiou, o real emerge como aquilo que escapa à formalização discursiva e rompe o simulacro da realidade estabelecida, proporcionando um ponto de partida para uma reconfiguração ontológica.
Por outro lado, Slavoj Žižek aborda a revolução com uma perspectiva que, embora também se ocupe da ruptura com o status quo, enfatiza o papel da negatividade e das falhas internas do sistema simbólico. Diferente de Badiou, que concebe a revolução como uma fidelidade a uma nova verdade, Žižek propõe que a revolução é essencialmente uma revelação da inconsistência estrutural da realidade, um momento em que a negatividade do real se torna visível e expõe as limitações do discurso ideológico. Em “Menos que Nada”, Žižek argumenta que a revolução é o ponto em que o sistema simbólico se confronta com o seu próprio “nada”, revelando que as bases da realidade social são construídas sobre um vazio estrutural. Para Žižek, o discurso é um instrumento ideológico que organiza o simbólico e sustenta a aparência de coesão e consistência do mundo social. No entanto, esse discurso ideológico é constantemente ameaçado por aquilo que ele chama de “sintoma” — pontos de disfunção ou resistência que revelam as contradições internas do sistema. Na revolução, o sintoma se torna uma fissura irreparável, desestabilizando o campo discursivo e permitindo que o real — a negatividade fundamental — se torne visível.
Žižek entende a revolução menos como um compromisso com uma verdade positiva e mais como uma oportunidade de confrontar o vazio estrutural do simbólico. Ele enfatiza que o verdadeiro potencial revolucionário reside na capacidade de expor essa lacuna, o que ele descreve como a “tensão entre o real e o simbólico”. Essa tensão ocorre quando o sujeito se depara com o fato de que o discurso ideológico não é capaz de oferecer uma coesão completa e revela, ao contrário, sua dependência de uma falta estrutural. A revolução, então, é um momento em que a ideologia dominante perde seu poder de mascarar o real, expondo a realidade social como uma construção contingente e instável. Žižek utiliza exemplos históricos, como a Revolução Bolchevique e o Maio de 68, para ilustrar como os atos revolucionários desestabilizam a ordem simbólica, criando uma abertura para o questionamento radical das estruturas de poder. No entanto, ele adverte sobre os riscos de que a revolução seja capturada e “domesticada” pelo poder estabelecido, transformando-se apenas em mais uma engrenagem dentro do sistema que pretendia desestabilizar.
Para ambos os pensadores, a revolução implica uma transformação radical da subjetividade, mas eles concebem essa transformação de formas distintas. Em Badiou, o sujeito revolucionário é constituído pela fidelidade ao evento e pela adesão à verdade que emerge desse momento de ruptura. O compromisso com essa verdade é uma tarefa ética e política que redefine a identidade do sujeito, que se torna uma espécie de “guardião” da nova realidade. A revolução, nesse sentido, não é apenas uma mudança nas estruturas externas, mas uma reconfiguração interna do sujeito, que passa a se definir pela sua relação com a verdade do evento. Em Žižek, a constituição do sujeito revolucionário ocorre pela relação com o sintoma, que ele define como um ponto de disfunção dentro do sistema simbólico. Para Žižek, o sujeito revolucionário só pode surgir ao confrontar o “real” do sintoma, reconhecendo nele a verdade reprimida pela ideologia dominante. A revolução, assim, exige que o sujeito encare o real como uma negatividade estrutural e construa sua identidade a partir dessa nova consciência da falibilidade do campo simbólico.
A relação entre discurso e revolução é outro ponto de divergência fundamental entre Badiou e Žižek. Badiou vê o discurso como uma estrutura de semblante e simulacro, que estabiliza e formaliza a realidade social, mas que deve ser superada pelo evento. Ele se distancia do pós-estruturalismo, especialmente da ideia de que o discurso é a totalidade da realidade, ao defender que existem verdades universais que transcendem o campo discursivo e que podem ser afirmadas na forma de eventos. Para ele, o discurso opera como um sistema de formalização que organiza a experiência, mas que se revela insuficiente diante das exigências do real inaugurado pelo evento. A revolução, então, exige que o sujeito se comprometa com essa nova verdade e que ultrapasse as limitações impostas pelo discurso e pela ideologia.
Žižek, por sua vez, também incorpora uma crítica ao discurso, mas enfatiza seu papel como um instrumento ideológico que organiza o simbólico e reprime o real. Ele propõe que a revolução deve ser entendida como uma fissura no discurso ideológico, um momento em que o sintoma se torna visível e desafia a coesão do campo simbólico. Ao contrário do pós-estruturalismo, que muitas vezes privilegia a desconstrução contínua do discurso, Žižek argumenta que há uma verdade traumática no real que o discurso tenta encobrir, mas que sempre retorna como sintoma. Ele se distancia do pós-estruturalismo ao afirmar que a revolução não é meramente um processo de desconstrução discursiva, mas uma confrontação com o real como uma negatividade intransponível.
Badiou e Žižek, portanto, ocupam uma posição ambivalente em relação ao pós-estruturalismo. Enquanto compartilham com ele uma crítica à estabilidade e à universalidade tradicionais, ambos rejeitam a ideia de que o discurso é a totalidade da realidade. Para Badiou, o discurso é uma camada de semblante que deve ser rompida para que a verdade emergente do evento se afirme. Para Žižek, o discurso ideológico encobre a negatividade do real, que só se torna visível em momentos de ruptura revolucionária. Dessa forma, ambos ultrapassam o pós-estruturalismo ao defenderem uma dimensão do real que escapa ao discurso.
Imagem: DALL-E
Pode-se questionar neste ponto: De que modo as reflexões de ambos os pensadores dialogam com o projeto da modernidade ocidental? A tradição iluminista, com sua ênfase na razão universal, na progressão linear do conhecimento e na crença na capacidade humana de organizar o mundo em termos claros e racionais, promove uma visão de mundo que presume estabilidade e previsibilidade. No entanto, tanto Badiou quanto Žižek desafiam esse paradigma ao propor que o verdadeiro motor da transformação social não é a progressão incremental da razão, mas sim a irrupção radical e imprevisível do “evento” e da “negatividade”. Em Badiou, o evento é um acontecimento que escapa à lógica da continuidade e rompe com a estrutura racionalizada da situação, introduzindo uma verdade que exige um compromisso ético para além das certezas racionalistas. A revolução, assim, não é vista como um desdobramento natural de ideias progressistas, mas como uma interrupção brusca e inclassificável dentro da ordem simbólica. Badiou critica o ideal iluminista da verdade como uma entidade a ser descoberta e formalizada, propondo em vez disso que a verdade é algo que se cria — algo que surge de rupturas que desafiam o campo estabelecido de significação. A universalidade, sob esse prisma, não é uma meta racional a ser alcançada, mas um posicionamento subjetivo e político que se afirma na fidelidade a uma nova configuração da realidade.
Para Žižek, o ataque ao iluminismo é ainda mais profundo, pois ele argumenta que a própria crença na transparência da razão encobre uma dimensão traumática que a ideologia iluminista tenta reprimir. Inspirado por Hegel e Lacan, Žižek vê a razão não como uma ferramenta neutra de compreensão, mas como um discurso que inevitavelmente constrói um “real” que ele próprio não consegue acomodar. A ordem racionalista iluminista, em sua tentativa de mapear e estabilizar a realidade, gera uma série de sintomas — pontos de disfunção que indicam as falhas internas de sua própria lógica. Em vez de promover uma transparência e clareza universal, a razão iluminista acaba impondo um campo de significados que reprime sua própria negatividade e contingência. Para Žižek, a verdadeira quebra de paradigmas não acontece pela ampliação do domínio da razão, mas sim quando o sujeito é forçado a confrontar a lacuna estrutural dentro do próprio discurso racionalista, revelando que toda a realidade construída pela razão repousa sobre um vazio, uma falta irredutível que somente pode ser enfrentada por uma revolução que não busca completar a razão, mas expor a inconsistência essencial do projeto iluminista.
Portanto, a discussão sobre as revoluções a partir de Badiou e Žižek envolve uma crítica à centralidade do discurso como organizador da realidade e uma defesa de que há algo além dele — uma verdade ou uma negatividade que desafia o sistema simbólico. Para Badiou, a revolução é um evento que inaugura uma nova verdade e exige uma fidelidade ética, enquanto Žižek entende a revolução como uma ruptura que expõe a inconsistência estrutural do simbólico. Ambos reconhecem a importância do discurso, mas insistem que há um real que transcende e desafia a formalização simbólica, uma dimensão que apenas a revolução pode revelar e transformar.
Ao considerar as implicações das teorias de Alain Badiou e Slavoj Žižek sobre o real, o evento e a verdade revolucionária, uma questão provocativa emerge: de que modo esses projetos filosóficos nos oferecem ferramentas para confrontar e questionar o crescente conservadorismo que caracteriza nossa época? Se ambos os pensadores desafiam o status quo ao propor uma verdade que escapa às formalizações da ideologia e uma negatividade que expõe a inconsistência do sistema simbólico, eles nos convidam a enxergar o conservadorismo como uma tentativa de contenção dessa abertura ao real. O conservadorismo, com seu desejo de preservar uma coesão simbólica fixa, resiste a reconhecer a fragilidade e a contingência sobre as quais as estruturas de poder se erguem.
Assim, a pergunta permanece: se o evento e a negatividade constituem as verdadeiras forças de ruptura, capazes de revelar as falhas internas e os limites do discurso ideológico, como podemos, enquanto sujeitos, nos posicionar frente a essa verdade? Como podemos sustentar uma fidelidade ao potencial disruptivo e transformador do real em uma era que, em muitos aspectos, busca precisamente neutralizar esse potencial? A provocação, então, se torna um convite para pensar se somos capazes de ir além das ilusões da estabilidade e da ordem imposta, e de afirmar, como propõem Badiou e Žižek, um compromisso radical com a verdade, a negatividade e a revolução.
Finalmente, uma última questão se coloca: não foi exatamente esse o gesto da Reforma ao romper com o mundo medieval? A Reforma Protestante, em sua essência, pode ser vista como um evento que desestabilizou profundamente o campo simbólico medieval, desafiando o discurso estabelecido pela Igreja e o sistema de crenças hegemônico que fundamentava a ordem social da época. Como um evento revolucionário, a Reforma abriu espaço para um real que, até então, permanecia reprimido ou inacessível sob as formalizações do poder religioso. Rompeu com uma estrutura que parecia intransponível e possibilitou a emergência de novas verdades — sejam elas doutrinárias, culturais ou políticas —, alterando de maneira irrevogável as coordenadas da realidade medieval. Em termos badiouanos, a Reforma poderia ser vista como um evento de fidelidade a uma nova verdade religiosa e social; em termos zizekianos, como a revelação de uma negatividade estrutural que desnudou a inconsistência do sistema simbólico da Igreja. Esse paralelo levanta uma provocação: ao olharmos para a história, quantos desses eventos revolucionários, movidos por fidelidade ou pela exposição de uma negatividade reprimida, abriram caminho para a reconfiguração da ordem simbólica e trouxeram à tona um real até então irrepresentável?
Referências
BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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