sexta-feira, 28 de março de 2025

Nem igualitarismo, nem complementarismo: por uma ruptura epistemológica no campo teológico

O debate contemporâneo acerca das relações de gênero no campo teológico deve ser compreendido não como fenômeno emergente ou extemporâneo, mas como parte de um longo processo de confrontação às estruturas simbólicas e institucionais que historicamente normatizaram a experiência religiosa a partir de um paradigma masculino, eurocêntrico e cisheteronormativo. Conforme delineado por Furlin (2011), em sua análise sobre a teologia feminista latino-americana, esse campo teórico-prático desenvolveu-se em três fases distintas, cada qual marcada por reconfigurações metodológicas e rupturas epistemológicas progressivas com o discurso teológico hegemônico. Trata-se, portanto, de uma genealogia crítica que reivindica não apenas a inclusão de novos sujeitos no interior da tradição cristã, mas a reestruturação das próprias condições de produção do saber teológico.

Na primeira fase, situada na segunda metade da década de 1970, observa-se o esforço inaugural de visibilização da mulher como sujeito teológico legítimo. A partir de uma reinterpretação crítica das Escrituras, mulheres teólogas passaram a destacar personagens femininas historicamente silenciadas ou subordinadas nas leituras tradicionais. Tal empreitada, ainda que marcada por uma concepção unitária do sujeito mulher, operou uma inflexão significativa ao deslocar a teologia de um locus exclusivamente masculino para um espaço tensionado pela experiência concreta da exclusão e da resistência. O reconhecimento da opressão vivida por mulheres no interior das estruturas religiosas funcionou, nesse momento, como ponto de partida para a construção de uma hermenêutica contra-hegemônica.

A segunda fase, consolidada ao longo da década de 1980, ampliou as bases críticas do movimento ao incorporar a categoria de gênero como instrumento epistemológico e analítico. Nesse estágio, a crítica teológica passou a problematizar não apenas a ausência das mulheres no discurso teológico, mas a própria constituição androcêntrica das categorias fundantes da tradição cristã. A interlocução com os estudos feministas, em especial com as formulações de Joan Scott, possibilitou compreender o gênero como construção social e relacional, atravessada por múltiplos eixos de poder. Com isso, a teologia feminista deixou de reivindicar exclusivamente o reconhecimento das mulheres e passou a questionar os dispositivos normativos que estruturam o saber teológico e organizam a produção da verdade no interior das instituições religiosas.

A terceira fase, articulada nos anos 1990 e início dos anos 2000, marca a entrada decisiva da teologia feminista no campo das teorias pós-estruturalistas. Influenciada por autoras como Teresa de Lauretis, essa fase passa a operar com categorias como “tecnologias de gênero” e “space off”, deslocando o foco da crítica para a análise dos regimes discursivos que instituem e regulam as subjetividades. A teologia é, então, concebida como um campo de produção simbólica dotado de capacidade normativa, em que a configuração dos sujeitos e das posições de enunciação está condicionada por estruturas históricas de poder e exclusão. Nesse contexto, o sujeito mulher é compreendido não como uma identidade fixa, mas como uma posição discursiva historicamente situada, cuja emergência desafia as fronteiras do sistema teológico tradicional.

Apesar das contribuições teóricas acumuladas por essas três fases, observa-se, no cenário evangélico contemporâneo, o ressurgimento e a consolidação de categorias como “complementarismo” e “igualitarismo”, as quais, embora revestidas de verniz moderno, operam com fundamentos teológicos marcadamente conservadores. O complementarismo, ao propor uma igualdade ontológica entre homens e mulheres acompanhada de funções distintivas e hierarquicamente organizadas, retoma uma antropologia teológica essencialista e excludente. O igualitarismo, ainda que advogue pela equiparação de funções eclesiásticas, frequentemente se abstém de questionar os fundamentos simbólicos que sustentam a masculinização do sagrado. Em ambos os casos, verifica-se uma adesão acrítica a modelos normativos pré-críticos, incompatíveis com os avanços promovidos pelas teorias contemporâneas do discurso, da corporeidade e das dissidências sexuais.

Tais abordagens, ao recusarem o enfrentamento das contradições inerentes às estruturas teológicas herdadas, evidenciam não apenas uma limitação hermenêutica, mas uma recusa sistemática à ruptura epistemológica. O esforço de preservação de categorias tradicionais, mesmo quando permeado por discursos conciliatórios, configura uma forma de capitulação diante das pressões institucionais que moldam o campo religioso. Em muitos casos, observa-se uma tentativa de acomodação estratégica aos dispositivos de validação eclesiástica, ainda que isso implique o silenciamento de sujeitos cujas existências tensionam as fronteiras da ortodoxia. A resistência à desestabilização das normatividades teológicas é, assim, menos uma defesa da tradição do que uma adesão tácita aos regimes de poder que governam a inteligibilidade da fé no espaço público religioso.

É nesse contexto que o deslocamento da análise das estruturas de memória para o campo do discurso adquire centralidade. A memória, frequentemente mobilizada como instrumento de reconhecimento histórico, não é suficiente para elucidar os mecanismos pelos quais se operam a exclusão, a marginalização e o apagamento de corpos dissidentes. O discurso, conforme delineado pelas teorias de M. Foucault, deve ser compreendido como uma tecnologia de poder que institui “regimes de verdade”, autoriza formas de subjetivação e regula as condições de enunciação. Nesse sentido, quando a teologia reafirma categorias como “papéis naturais” ou “ordens divinas de gênero”, ela não apenas reproduz conteúdos doutrinários, mas reinscreve dispositivos normativos que interditam determinadas formas de existência e agência, em especial aquelas associadas às dissidências sexuais e de gênero.

Imagem gerada por IA

A teologia feminista, ao incorporar essa crítica discursiva, não se limita à revisão das doutrinas ou à inclusão de novos sujeitos na narrativa teológica. Sua proposta é mais radical: trata-se de instaurar novos regimes de sentido e novas condições de possibilidade para o pensamento teológico. Isso implica, necessariamente, a reconfiguração do campo do dizível religioso, de modo que as subjetividades historicamente silenciadas — mulheres, pessoas LGBTQIA+, corpos racializados, dissidentes de gênero e sexualidade — possam emergir como agentes legítimos de interpretação, criação simbólica e autoridade espiritual. Essa tarefa não se realiza mediante concessões tímidas à inclusão, mas por meio de uma reestruturação epistemológica do próprio edifício teológico.

A crítica à antropologia teológica de corte conservador, portanto, não deve ser reduzida a uma divergência ideológica pontual. Ela constitui uma exigência teórica rigorosa de superação dos dispositivos simbólicos que sustentam a normatividade cisheteropatriarcal no interior das tradições religiosas. A persistência dessas normatividades não apenas compromete a integridade do discurso teológico, como inviabiliza a construção de um horizonte plural, equitativo e ético para a reelaboração contemporânea da fé cristã. Somente por meio da desnaturalização das categorias tradicionais e da abertura ao múltiplo será possível conceber uma teologia verdadeiramente comprometida com a justiça simbólica e com a dignidade incondicional de todas as existências.

Referências 

FURLIN, Neiva. Teologia feminista: uma voz que emerge nas margens do discurso teológico hegemônico. Rever: Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 139–160, jan./jun. 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/6034. Acesso em: 28 mar. 2025


quinta-feira, 27 de março de 2025

A quem pertence a memória? Gênero, teologia e a produção do esquecimento

O debate sobre gênero e cristianismo nas origens, embora já consolidado como campo de pesquisa, permanece em disputa. A historiografia tradicional e a teologia dominante seguem operando, com frequência, sob pressupostos patriarcais e epistemologias que naturalizam a ausência das mulheres como dado histórico ou doutrinário. A simples constatação de que mulheres atuaram nas primeiras comunidades cristãs não responde mais aos desafios colocados pela crítica contemporânea. O que está em jogo, em última instância, é a própria produção da memória e a estrutura das narrativas que legitimam exclusões ao longo da história e da teologia cristã.

Três abordagens, com diferentes níveis de complexidade teórica e alcance institucional, podem ser identificadas no atual cenário de produção do saber nesse campo. A primeira opera com uma perspectiva histórico-antropológica aplicada, centrada na reconstituição do contexto sociocultural do mundo bíblico, buscando iluminar o protagonismo feminino no cristianismo primitivo por meio de evidências arqueológicas, registros literários e práticas doméstico-comunitárias. Essa abordagem, com forte vocação pedagógica, visa sobretudo tornar acessível a públicos eclesiais e não especializados uma leitura ampliada da Bíblia, destacando figuras femininas como agentes históricos reais. Sua força reside na capacidade de tradução cultural e na penetração pastoral em contextos religiosos avessos à crítica teórica. No entanto, sua limitação manifesta-se na dificuldade de confrontar abertamente os sistemas de poder teológico que sustentam o apagamento das mulheres, permanecendo, em geral, dentro dos marcos canônicos tradicionais.

Uma segunda abordagem — mais antiga, diga-se de passagem, em termos cronológicos e de consolidação acadêmica — propõe uma reconfiguração radical da hermenêutica bíblica a partir de uma epistemologia crítica feminista, que recusa a neutralidade do método histórico-crítico e afirma o caráter político da interpretação teológica. Aqui, o interesse não está apenas em recuperar mulheres esquecidas, mas em desconstruir os regimes de verdade que permitiram seu esquecimento. Essa proposta exige uma inversão do ponto de partida: a leitura não deve ser feita “do centro para as margens”, mas desde as margens, como lugar de reinterpretação da totalidade. Isso implica não só tensionar os textos, mas também a própria estrutura do cânone, as categorias teológicas dominantes (como igreja, autoridade e discipulado), e os processos históricos de institucionalização da fé cristã. Trata-se de uma abordagem que opera com categorias analíticas originais e complexas — como sistemas de dominação interseccional, críticas à patriarcalização da linguagem teológica e modelos alternativos de eclesiologia — e que se inscreve explicitamente em projetos de libertação.

Por fim, uma terceira abordagem atua no campo da exegese neotestamentária com rigor técnico, aplicando métodos oriundos da linguística, da retórica antiga, da pragmática textual e da análise de discurso, voltados à reinterpretação dos textos do corpus paulino. Aqui, a crítica se desloca das grandes estruturas epistemológicas para o nível microanalítico da linguagem e do contexto comunicativo, mostrando como leituras tradicionais foram marcadas por inferências anacrônicas, erros de tradução e falhas metodológicas. O foco está em demonstrar que a teologia paulina, quando lida em sua complexidade interna e em sua coerência com o conjunto da tradição apostólica, não justifica a exclusão feminina, mas propõe modelos relacionais de autoridade, mutualidade no corpo e superação das hierarquias greco-romanas. Essa abordagem é especialmente potente porque desafia as leituras conservadoras em seu próprio campo argumentativo, revelando que o problema não está apenas na hermenêutica, mas na fragilidade interpretativa dos próprios exegetas que sustentaram tais posições.

O confronto entre essas três vias é inevitável — e necessário. A abordagem pastoral-histórica cumpre importante função formativa, sobretudo em comunidades religiosas refratárias ao vocabulário feminista. No entanto, ao permanecer dentro dos limites interpretativos impostos por uma tradição exegética pouco autocrítica, corre o risco de reforçar, ainda que involuntariamente, os marcos simbólicos que sustentam a desigualdade. Já a abordagem epistêmica crítica desloca o debate para o nível das estruturas de saber e poder, mas enfrenta resistência por parte das instituições eclesiais e do próprio campo teológico, que frequentemente a classifica como ideológica ou militante. A via exegética técnico-científica, por sua vez, alcança interlocução com setores evangélicos e confessionais conservadores, mas ainda luta para ser reconhecida como proposta teológica transformadora — e não apenas como alternativa interpretativa.

É nesse entrechoque que se joga o futuro dos estudos sobre gênero e cristianismo. A memória das mulheres precisa ser mais do que restaurada: ela deve ser reivindicada como lugar epistemológico e teológico. A questão não é apenas quem foi lembrado, mas quem teve o poder de lembrar — e sob quais critérios. A tarefa, portanto, não é repetir nomes ou retomar vozes, mas disputar a gramática da tradição.

Imagem: DALL-E

A teologia que se quer crítica e comprometida com a justiça de gênero não pode se dar por satisfeita com pedagogias adaptativas. É preciso tensionar os fundamentos do campo: os cânones, os métodos, as categorias, as premissas etc. Os estudos bíblicos e teológicos contemporâneos que desejam ser relevantes devem ir além da mediação pastoral e assumir o risco da ruptura conceitual, ainda que isso implique perdas institucionais, desconfortos devocionais ou o isolamento acadêmico. O tempo das sínteses fáceis parece ter passado. O que se impõe é reabrir os conflitos — entre memória e exclusão, entre tradição e transgressão, entre o que se disse e o que ainda precisa ser dito.

Concluindo, é possível — e, mais do que isso, necessário — tomar partido teórico diante das abordagens em questão. Entre elas, aquela que mais radicalmente tensiona os fundamentos epistemológicos da tradição cristã e dos estudos bíblicos é, sem dúvida, a que se inscreve explicitamente no horizonte do pós-estruturalismo. Trata-se de uma perspectiva que desconstrói as pretensões de neutralidade da exegese histórico-crítica, deslegitima a lógica binária dos sistemas de dominação e desestabiliza o próprio cânone como artefato de poder. Elisabeth Schüssler Fiorenza, por exemplo, não apenas denuncia a exclusão das mulheres da narrativa cristã; ela interroga os próprios regimes de verdade que sustentam essa exclusão, desafiando os dispositivos simbólicos que produzem e naturalizam a marginalização. Nesse sentido, sua proposta não se limita a uma hermenêutica alternativa: configura-se como uma ruptura teórica deliberada com os alicerces modernos da teologia ocidental. Assumir tal filiação é reconhecer que o debate sobre gênero e cristianismo não deve ser conduzido apenas como demanda por inclusão, mas como intervenção crítica na própria produção do saber teológico — onde a disputa não é apenas pelo lugar das mulheres, mas pela gramática da fé e pelas condições de possibilidade do discurso teológico em si.

Referências
RUETHER, Rosemary Radford. Sexism and God-Talk: Toward a Feminist Theology. Boston: Beacon Press, 1983.
SCHÜSSLER FIORENZA, Elisabeth. In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins. New York: PublishDrive, 1994.
TRIBLE, Phyllis. Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives. Philadelphia: Fortress Press, 1984.
WESTFALL, Cynthia Long. Paul and Gender: Reclaiming the Apostle's Vision for Men and Women in Christ. Grand Rapids: Baker Academic, 2016.

quarta-feira, 26 de março de 2025

A Vontade Divina e o Silêncio da Linguagem

A Vontade Divina e o Silêncio da Linguagem

A obra “Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation”, de Richard A. Muller, representa um dos esforços mais significativos da historiografia teológica contemporânea para repensar a tradição reformada a partir de uma análise rigorosa de fontes primárias e das complexas trajetórias do pensamento teológico entre os séculos XVI e XVII. Em oposição às interpretações que veem a teologia reformada como rígida e monolítica, Muller defende a existência de um desenvolvimento plural, polifônico e profundamente contextualizado dessa tradição, recusando tanto o mito de um “Calvino fundador” quanto as caricaturas dicotômicas que opõem “Calvino aos calvinistas”. Sua leitura propõe uma reavaliação da doutrina da vontade divina à luz das tensões que emergem nas discussões sobre expiação, eleição e graça, com especial atenção para as formulações de teólogos como Moïse Amyraut (1596–1664), John Davenant (c. 1572–1641) e Pierre Du Moulin (1568–1658). O debate sobre o chamado “universalismo hipotético”, examinado nos capítulos 4 e 5 da obra, oferece um campo fértil para compreender os limites da unidade volitiva de Deus tal como expressa na tradição reformada.

A tradição reformada clássica sempre se empenhou em preservar a simplicidade de Deus, isto é, a ideia de que em Deus não há partes, contradições ou qualquer tipo de mudança interna. Essa concepção sustenta a unidade absoluta da vontade divina e orienta a forma como os teólogos reformados interpretam os textos bíblicos que parecem sugerir tensões ou ambivalências na ação ou no desejo de Deus. Nesse contexto, tornou-se comum a distinção entre a chamada “voluntas decretiva”, vontade eficaz e secreta de Deus, e a “voluntas preceptiva”, vontade revelada por meio da lei e da pregação. Tal distinção, embora mantenha a ideia de uma única vontade, reconhece expressões distintas dessa vontade no plano da revelação histórica e da experiência humana.

No entanto, durante os debates teológicos dos séculos XVI e XVII, essa distinção foi tensionada de maneira significativa. A figura de Moïse Amyraut destaca-se como representante de uma tentativa de afirmar, com base em textos como Ezequiel 18:23 e 1 Timóteo 2:4, que Deus possui um desejo sincero de salvar a todos, ainda que apenas os eleitos sejam efetivamente salvos. Amyraut propõe que a vontade de Deus deve ser compreendida como dual: uma vontade antecedente, de caráter hipotético e universal, pela qual Deus deseja a salvação de todos os seres humanos, e uma vontade consequente, eficaz e particular, pela qual Ele salva somente os eleitos. Tal formulação insere na teologia reformada uma tensão entre intenção e realização que desafia diretamente o princípio da vontade divina una e simples.

Richard Muller, ao analisar essa proposta, recusa qualquer leitura que atribua duplicidade real à vontade divina, argumentando que Amyraut incorre em um equívoco ao sugerir que Deus deseja salvífica e sinceramente aquilo que, segundo seu próprio decreto, não realizará. Para Muller, João Calvino (1509–1564), embora reconheça a suficiência universal da obra de Cristo e a universalidade da pregação do evangelho, nunca endossou uma estrutura teológica que atribuísse vontades conflitantes ou hierarquizadas a Deus. A exegese de Ezequiel 18:23, por exemplo, é por ele interpretada como expressão do caráter misericordioso de Deus e não como indicativo de um desejo frustrado pela incredulidade humana.

Ainda assim, mesmo dentro do contexto da teologia reformada ortodoxa, a necessidade constante de explicar, distinguir e qualificar os diversos modos de manifestação da vontade divina acaba por indicar, ainda que de forma implícita, a presença de uma fratura conceitual que insiste em se fazer notar. A tentativa de negar qualquer cisão interna na vontade de Deus não elimina, mas frequentemente reforça, por contraste, a percepção de que há na linguagem teológica um jogo irresoluto entre o uno e o múltiplo, o eficaz e o frustrado, o particular e o universal.

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Sob a ótica de uma leitura pós-estrutural, essa insistência na unidade volitiva pode ser compreendida não como reflexo da ontologia divina, mas como operação discursiva que busca recompor aquilo que a linguagem fragmenta. A teologia, enquanto prática de nomeação e significação do divino, está inevitavelmente submetida aos limites da linguagem e à lógica do significante. O discurso teológico sobre a vontade de Deus não escapa, em termos derridianos, ao movimento de diferenciação e defasagem que caracteriza toda construção discursiva. Assim, a vontade divina, ao ser dita, é desde sempre dividida: marcada por uma tensão entre o que é ordenado e o que é decretado, entre o que é proclamado ao homem e o que é reservado ao conselho divino. A cisão não está apenas no objeto da fala — Deus — mas emerge como efeito da própria estrutura da linguagem religiosa, que opera por duplicações, substituições e silêncios constitutivos.

Nesse sentido, a teologia reformada, ainda que fiel ao seu princípio de simplicidade divina, encontra-se às voltas com uma vontade que, ao ser dita, já se apresenta como partida. Essa fissura na “voluntas Dei”, longe de ser uma heresia a evitar, pode ser pensada como condição discursiva da própria teologia: uma fala sobre o Uno que só pode ocorrer por meio do múltiplo, uma tentativa de afirmar a unidade de Deus que acaba por revelar, de maneira inescapável, os traços de sua ausência. O que se apresenta como vontade cindida não é um defeito da doutrina, mas uma janela para os modos como o desejo divino, uma vez lançado ao campo da linguagem, se torna jogo de forças, campo de disputa, e talvez até, um sujeito escorregadio — que, como nós, fala sempre a partir de sua própria falta.

Convém assinalar que esta reflexão opera sob o marco epistemológico da teoria do discurso, em especial na confluência entre a análise do discurso de orientação pós-estruturalista e os estudos da linguagem aplicados à teologia. Compreende-se, assim, que a doutrina da vontade divina — mais do que uma estrutura metafísica plenamente acessível — constitui-se como um objeto discursivo, isto é, como efeito de linguagem produzido em determinados “regimes de saber”, sujeitos às mediações do tempo, da tradição e da interpretação. Essa perspectiva não visa invalidar os aportes da exegese ou da dogmática histórica, mas deslocar o olhar: da ontologia da vontade para sua inscrição no discurso, dos atributos imutáveis de Deus para os modos pelos quais Deus é dito e pensado ao longo da história. A tensão entre unidade e cisão da vontade divina, tal como explorada nesta breve provocação, emerge, portanto, menos como proposição teológica normativa e mais como um fenômeno de leitura que revela as fraturas do significante teológico no próprio ato de enunciar o divino.

Referências
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

Nem igualitarismo, nem complementarismo: por uma ruptura epistemológica no campo teológico

O debate contemporâneo acerca das relações de gênero no campo teológico deve ser compreendido não como fenômeno emergente ou extemporâneo, m...