quinta-feira, 27 de março de 2025

A quem pertence a memória? Gênero, teologia e a produção do esquecimento

O debate sobre gênero e cristianismo nas origens, embora já consolidado como campo de pesquisa, permanece em disputa. A historiografia tradicional e a teologia dominante seguem operando, com frequência, sob pressupostos patriarcais e epistemologias que naturalizam a ausência das mulheres como dado histórico ou doutrinário. A simples constatação de que mulheres atuaram nas primeiras comunidades cristãs não responde mais aos desafios colocados pela crítica contemporânea. O que está em jogo, em última instância, é a própria produção da memória e a estrutura das narrativas que legitimam exclusões ao longo da história e da teologia cristã.

Três abordagens, com diferentes níveis de complexidade teórica e alcance institucional, podem ser identificadas no atual cenário de produção do saber nesse campo. A primeira opera com uma perspectiva histórico-antropológica aplicada, centrada na reconstituição do contexto sociocultural do mundo bíblico, buscando iluminar o protagonismo feminino no cristianismo primitivo por meio de evidências arqueológicas, registros literários e práticas doméstico-comunitárias. Essa abordagem, com forte vocação pedagógica, visa sobretudo tornar acessível a públicos eclesiais e não especializados uma leitura ampliada da Bíblia, destacando figuras femininas como agentes históricos reais. Sua força reside na capacidade de tradução cultural e na penetração pastoral em contextos religiosos avessos à crítica teórica. No entanto, sua limitação manifesta-se na dificuldade de confrontar abertamente os sistemas de poder teológico que sustentam o apagamento das mulheres, permanecendo, em geral, dentro dos marcos canônicos tradicionais.

Uma segunda abordagem — mais antiga, diga-se de passagem, em termos cronológicos e de consolidação acadêmica — propõe uma reconfiguração radical da hermenêutica bíblica a partir de uma epistemologia crítica feminista, que recusa a neutralidade do método histórico-crítico e afirma o caráter político da interpretação teológica. Aqui, o interesse não está apenas em recuperar mulheres esquecidas, mas em desconstruir os regimes de verdade que permitiram seu esquecimento. Essa proposta exige uma inversão do ponto de partida: a leitura não deve ser feita “do centro para as margens”, mas desde as margens, como lugar de reinterpretação da totalidade. Isso implica não só tensionar os textos, mas também a própria estrutura do cânone, as categorias teológicas dominantes (como igreja, autoridade e discipulado), e os processos históricos de institucionalização da fé cristã. Trata-se de uma abordagem que opera com categorias analíticas originais e complexas — como sistemas de dominação interseccional, críticas à patriarcalização da linguagem teológica e modelos alternativos de eclesiologia — e que se inscreve explicitamente em projetos de libertação.

Por fim, uma terceira abordagem atua no campo da exegese neotestamentária com rigor técnico, aplicando métodos oriundos da linguística, da retórica antiga, da pragmática textual e da análise de discurso, voltados à reinterpretação dos textos do corpus paulino. Aqui, a crítica se desloca das grandes estruturas epistemológicas para o nível microanalítico da linguagem e do contexto comunicativo, mostrando como leituras tradicionais foram marcadas por inferências anacrônicas, erros de tradução e falhas metodológicas. O foco está em demonstrar que a teologia paulina, quando lida em sua complexidade interna e em sua coerência com o conjunto da tradição apostólica, não justifica a exclusão feminina, mas propõe modelos relacionais de autoridade, mutualidade no corpo e superação das hierarquias greco-romanas. Essa abordagem é especialmente potente porque desafia as leituras conservadoras em seu próprio campo argumentativo, revelando que o problema não está apenas na hermenêutica, mas na fragilidade interpretativa dos próprios exegetas que sustentaram tais posições.

O confronto entre essas três vias é inevitável — e necessário. A abordagem pastoral-histórica cumpre importante função formativa, sobretudo em comunidades religiosas refratárias ao vocabulário feminista. No entanto, ao permanecer dentro dos limites interpretativos impostos por uma tradição exegética pouco autocrítica, corre o risco de reforçar, ainda que involuntariamente, os marcos simbólicos que sustentam a desigualdade. Já a abordagem epistêmica crítica desloca o debate para o nível das estruturas de saber e poder, mas enfrenta resistência por parte das instituições eclesiais e do próprio campo teológico, que frequentemente a classifica como ideológica ou militante. A via exegética técnico-científica, por sua vez, alcança interlocução com setores evangélicos e confessionais conservadores, mas ainda luta para ser reconhecida como proposta teológica transformadora — e não apenas como alternativa interpretativa.

É nesse entrechoque que se joga o futuro dos estudos sobre gênero e cristianismo. A memória das mulheres precisa ser mais do que restaurada: ela deve ser reivindicada como lugar epistemológico e teológico. A questão não é apenas quem foi lembrado, mas quem teve o poder de lembrar — e sob quais critérios. A tarefa, portanto, não é repetir nomes ou retomar vozes, mas disputar a gramática da tradição.

Imagem: DALL-E

A teologia que se quer crítica e comprometida com a justiça de gênero não pode se dar por satisfeita com pedagogias adaptativas. É preciso tensionar os fundamentos do campo: os cânones, os métodos, as categorias, as premissas etc. Os estudos bíblicos e teológicos contemporâneos que desejam ser relevantes devem ir além da mediação pastoral e assumir o risco da ruptura conceitual, ainda que isso implique perdas institucionais, desconfortos devocionais ou o isolamento acadêmico. O tempo das sínteses fáceis parece ter passado. O que se impõe é reabrir os conflitos — entre memória e exclusão, entre tradição e transgressão, entre o que se disse e o que ainda precisa ser dito.

Concluindo, é possível — e, mais do que isso, necessário — tomar partido teórico diante das abordagens em questão. Entre elas, aquela que mais radicalmente tensiona os fundamentos epistemológicos da tradição cristã e dos estudos bíblicos é, sem dúvida, a que se inscreve explicitamente no horizonte do pós-estruturalismo. Trata-se de uma perspectiva que desconstrói as pretensões de neutralidade da exegese histórico-crítica, deslegitima a lógica binária dos sistemas de dominação e desestabiliza o próprio cânone como artefato de poder. Elisabeth Schüssler Fiorenza, por exemplo, não apenas denuncia a exclusão das mulheres da narrativa cristã; ela interroga os próprios regimes de verdade que sustentam essa exclusão, desafiando os dispositivos simbólicos que produzem e naturalizam a marginalização. Nesse sentido, sua proposta não se limita a uma hermenêutica alternativa: configura-se como uma ruptura teórica deliberada com os alicerces modernos da teologia ocidental. Assumir tal filiação é reconhecer que o debate sobre gênero e cristianismo não deve ser conduzido apenas como demanda por inclusão, mas como intervenção crítica na própria produção do saber teológico — onde a disputa não é apenas pelo lugar das mulheres, mas pela gramática da fé e pelas condições de possibilidade do discurso teológico em si.

Referências
RUETHER, Rosemary Radford. Sexism and God-Talk: Toward a Feminist Theology. Boston: Beacon Press, 1983.
SCHÜSSLER FIORENZA, Elisabeth. In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins. New York: PublishDrive, 1994.
TRIBLE, Phyllis. Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives. Philadelphia: Fortress Press, 1984.
WESTFALL, Cynthia Long. Paul and Gender: Reclaiming the Apostle's Vision for Men and Women in Christ. Grand Rapids: Baker Academic, 2016.

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