A Vontade Divina e o Silêncio da Linguagem
A obra “Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation”, de Richard A. Muller, representa um dos esforços mais significativos da historiografia teológica contemporânea para repensar a tradição reformada a partir de uma análise rigorosa de fontes primárias e das complexas trajetórias do pensamento teológico entre os séculos XVI e XVII. Em oposição às interpretações que veem a teologia reformada como rígida e monolítica, Muller defende a existência de um desenvolvimento plural, polifônico e profundamente contextualizado dessa tradição, recusando tanto o mito de um “Calvino fundador” quanto as caricaturas dicotômicas que opõem “Calvino aos calvinistas”. Sua leitura propõe uma reavaliação da doutrina da vontade divina à luz das tensões que emergem nas discussões sobre expiação, eleição e graça, com especial atenção para as formulações de teólogos como Moïse Amyraut (1596–1664), John Davenant (c. 1572–1641) e Pierre Du Moulin (1568–1658). O debate sobre o chamado “universalismo hipotético”, examinado nos capítulos 4 e 5 da obra, oferece um campo fértil para compreender os limites da unidade volitiva de Deus tal como expressa na tradição reformada.
A tradição reformada clássica sempre se empenhou em preservar a simplicidade de Deus, isto é, a ideia de que em Deus não há partes, contradições ou qualquer tipo de mudança interna. Essa concepção sustenta a unidade absoluta da vontade divina e orienta a forma como os teólogos reformados interpretam os textos bíblicos que parecem sugerir tensões ou ambivalências na ação ou no desejo de Deus. Nesse contexto, tornou-se comum a distinção entre a chamada “voluntas decretiva”, vontade eficaz e secreta de Deus, e a “voluntas preceptiva”, vontade revelada por meio da lei e da pregação. Tal distinção, embora mantenha a ideia de uma única vontade, reconhece expressões distintas dessa vontade no plano da revelação histórica e da experiência humana.
No entanto, durante os debates teológicos dos séculos XVI e XVII, essa distinção foi tensionada de maneira significativa. A figura de Moïse Amyraut destaca-se como representante de uma tentativa de afirmar, com base em textos como Ezequiel 18:23 e 1 Timóteo 2:4, que Deus possui um desejo sincero de salvar a todos, ainda que apenas os eleitos sejam efetivamente salvos. Amyraut propõe que a vontade de Deus deve ser compreendida como dual: uma vontade antecedente, de caráter hipotético e universal, pela qual Deus deseja a salvação de todos os seres humanos, e uma vontade consequente, eficaz e particular, pela qual Ele salva somente os eleitos. Tal formulação insere na teologia reformada uma tensão entre intenção e realização que desafia diretamente o princípio da vontade divina una e simples.
Richard Muller, ao analisar essa proposta, recusa qualquer leitura que atribua duplicidade real à vontade divina, argumentando que Amyraut incorre em um equívoco ao sugerir que Deus deseja salvífica e sinceramente aquilo que, segundo seu próprio decreto, não realizará. Para Muller, João Calvino (1509–1564), embora reconheça a suficiência universal da obra de Cristo e a universalidade da pregação do evangelho, nunca endossou uma estrutura teológica que atribuísse vontades conflitantes ou hierarquizadas a Deus. A exegese de Ezequiel 18:23, por exemplo, é por ele interpretada como expressão do caráter misericordioso de Deus e não como indicativo de um desejo frustrado pela incredulidade humana.
Ainda assim, mesmo dentro do contexto da teologia reformada ortodoxa, a necessidade constante de explicar, distinguir e qualificar os diversos modos de manifestação da vontade divina acaba por indicar, ainda que de forma implícita, a presença de uma fratura conceitual que insiste em se fazer notar. A tentativa de negar qualquer cisão interna na vontade de Deus não elimina, mas frequentemente reforça, por contraste, a percepção de que há na linguagem teológica um jogo irresoluto entre o uno e o múltiplo, o eficaz e o frustrado, o particular e o universal.
![]() |
Imagem: DALL-E |
Sob a ótica de uma leitura pós-estrutural, essa insistência na unidade volitiva pode ser compreendida não como reflexo da ontologia divina, mas como operação discursiva que busca recompor aquilo que a linguagem fragmenta. A teologia, enquanto prática de nomeação e significação do divino, está inevitavelmente submetida aos limites da linguagem e à lógica do significante. O discurso teológico sobre a vontade de Deus não escapa, em termos derridianos, ao movimento de diferenciação e defasagem que caracteriza toda construção discursiva. Assim, a vontade divina, ao ser dita, é desde sempre dividida: marcada por uma tensão entre o que é ordenado e o que é decretado, entre o que é proclamado ao homem e o que é reservado ao conselho divino. A cisão não está apenas no objeto da fala — Deus — mas emerge como efeito da própria estrutura da linguagem religiosa, que opera por duplicações, substituições e silêncios constitutivos.
Convém assinalar que esta reflexão opera sob o marco epistemológico da teoria do discurso, em especial na confluência entre a análise do discurso de orientação pós-estruturalista e os estudos da linguagem aplicados à teologia. Compreende-se, assim, que a doutrina da vontade divina — mais do que uma estrutura metafísica plenamente acessível — constitui-se como um objeto discursivo, isto é, como efeito de linguagem produzido em determinados “regimes de saber”, sujeitos às mediações do tempo, da tradição e da interpretação. Essa perspectiva não visa invalidar os aportes da exegese ou da dogmática histórica, mas deslocar o olhar: da ontologia da vontade para sua inscrição no discurso, dos atributos imutáveis de Deus para os modos pelos quais Deus é dito e pensado ao longo da história. A tensão entre unidade e cisão da vontade divina, tal como explorada nesta breve provocação, emerge, portanto, menos como proposição teológica normativa e mais como um fenômeno de leitura que revela as fraturas do significante teológico no próprio ato de enunciar o divino.
Referências
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário